OS ÚLTIMOS MOMENTOS DE JORGE DE SENA
A noite foi horrível de sofrimento. Pelas seis da manhã telefonei para casa dizendo que era melhor que fossem. A vida fugia-lhe em cada minuto mas crescia a impaciência, a agitação. Agarrava-me constantemente pedindo-me ajuda ou levantava as mãos para mas colocar na minha cara onde às vezes nem forças tinha para chegar – as mãos descaíam-lhe antes de me tocar. A certa altura disse-me com ternura infinita: “Oh my little… little… little flower…”
Os pequenos foram chegando. Ia-os reconhecendo. Quando todos estavam à volta da cama, agarrando-me mais uma vez, perguntou: “So many people… Am I dying?” Disse-lhe que era domingo, todos tinham vindo visitá-lo e, perguntando-lhe se os conhecia foi dizendo o nome de todos até que os olhos se lhe fecharam, ou a distância lhos não permitia reconhecer. Pelas nove horas o sofrimento e a agitação dele eram aflitivos apesar de o pulso se não sentir – o coração, esse sim, via-se pulsar, fortemente. Mandei chamar o médico para que lhe desse algo que lhe minorasse o sofrimento. Demorou e veio a besta-médica que nos olhava como se fôssemos todos pestilentos. Examinou-o brevemente e veio a enfermeira com uma injecção que pouco o acalmou – falava e gesticulava permanentemente, buscando as nossas mãos e depois claramente indicando que lhe incomodavam os tubos, pedia-me que o despisse – undress me.
Pelas dez horas mandei de novo chamar o médico – não podia mais vê-lo sofrer e ordenei que se lhe tirassem todos os tubos e remédios inúteis senão para lhe aumentar o sofrimento. Voltou o animal – já não se sentia o pulso nem quase acusava tensão arterial mas ainda se agitava e falava e ainda, vendo entrar o Panikar, lhe falou em espanhol. O Pedro não suportara mais – tinha que fazer no trabalho… A Mariana acocorara-se no chão. Deram-lhe outra injecção.
O Jorge entrou numa espécie de modorra. Gesticulava ainda uma vez por outra mais fracamente, balbuciava mas nada se ouvia até que comecei a ver-lhe voltar aquela sinistra cor esverdeada que já lhe vira duas vezes e um rictus incrível lhe baixou o lábio do lado esquerdo – vi uma mão que se estendia por sobre cabeças com um Cristo pequeno, de madeira. Coloquei-lho ao lado da cabeça. O P. Huerta tirou-lhe do dedo as alianças e pô-las na minha mão que tinha acabado de fechar-lhe os olhos – a minha vida, essa, foi contigo naquela atmosfera de total suspensão pesada e silenciosa.