Na revista LER de outubro/2012, a crônica-testemunho de Onésimo Teotónio Almeida relembra, com seu habitual bom-humor, o que seria o último encontro de Jorge de Sena e João Gaspar Simões, felizmente efusivo, durante o 1º colóquio internacional sobre Fernando Pessoa, em 1977. E, generosamente, o cronista cede-nos a foto que menciona. A completar o clima de confraternização que desta ressuma, sugerimos a leitura do artigo, com menções pessoanas, que JGS dedica a JS, já depois do falecimento deste. (ver em Jorge de Sena “Estrangeirado”)
Arriba-me um e-mail com pedido. Alguém de longe quer dados sobre o relacionamento entre Jorge de Sena e João Gaspar Simões. Dirige-se-me por saber que estiveram ambos em Providence, no que foi o primeiro colóquio internacional sobre Fernando Pessoa, em outubro de 1977, a última aparição pública de Sena. Procura memorabilia, fotos, se existirem, e estórias. Destas tenho q.b., pois fui motorista e guia deles por estas paragens. Gaspar Simões, já na casa dos oitenta, farto de ouvir o respeitável e supererudito Sena que, ensinando obsessivamente, não dava tréguas aos ouvidos de ninguém ao seu redor, segredou-me ao fim de dois dias: «Já não posso mais! Vamos aí a um centro comercial ver umas moças!»
Íamos a caminho de New Bedford para uma entrevista na rádio portuguesa local, a WJHJ-EM, e eu bem que espreitava uma aberta para explicar «Aqui vive a maior comunidade portuguesa», «Ali em Dighton há um monumento que assinala a suposta primazia lusa», e Sena, ininterrupto, seguia explicando a Simões tudo sobre a literatura da Nova Inglaterra. Eu mencionava New Bedford e ele lembrava Melville, eu Boston e ele Henrv James, eu apontava o verde denso das matas e ele, Henry David Thoreau e o Walden. A Mécia, sua mulher-e-seu-tudo repetia-lhe insistente e suplicante «Jorge cala-te! Não te podes cansar assim tanto e sabes isso muito bem!», e o Jorge sem nunca fazer caso.
Já cá estava Gaspar Simões quando Sena chegou. Levei-o connosco quando, com o George Monteiro e outros colegas, fomos esperá-lo ao aeroporto. Ao encontrar-se com Sena, caíram nos braços um do outro (não se falavam há muito, suponho que por via de uma nicada de Simões em crítica no Diário de Notícias, onde pontificava às quintas-feiras).
O abraço de paz redundou em conversa fiada entre ambos; Sena no controlo perene do verbo na proporção de 10-1 desancando na pátria, e ambos nos ausentes, como só os portugueses sabem fazer porque no estrangeiro caem em amplexos e saltam de imediato a descascar no Retângulo, que amam e odeiam com carinho e devoção. Nós, circunstantes, resignadamente calados à espera de eles perceberem ser tempo de irmos à vida, mas tive de ser eu, malcriado já na altura, a interromper o enleio.
Dei notícia ao meu correspondente internético de termos emoldurada na sala de conferências do Departamento uma foto dos dois em abraço e recebi a reação satisfeita num e-mail, no momento em que ia para a mesa de almoço com um amigo de engenharia, de literatura apenas amador. Não surgiu qualquer razão para lhe falar no caso. No final, ao despedir-me, parou-me porque quase se esquecera de algo. Queria entregar-me uma fotografia. Tinha-a lá em casa há décadas e achava que, se alguém poderia ter interesse nela, seria eu: era do conferencista que abriu o simpósio sobre Pessoa na Brown, precisamente João Gaspar Simões. Agarrei no iPhone e abri-o para lhe mostrar a mensagem que, nem de propósito, acabava de receber a pedir memorabilia. E quando, horas depois, emailei ao George a inquirir se guardara correspondência, reagiu imediatamente, estupefacto, porque ainda naquela mesma manhã, ao preparar uma coletânea de textos para um livro, decidira escrever justamente sobre esse evento.
E para fechar: porque o simpósio pessoano ganhou relevo, o Senado de Rhode Island resolveu declarar «Dia de Fernando Pessoa» o da abertura do dito. Quando telefonaram a perguntar se o Sr. Pessoa já tinha chegado de Portugal, pois gostariam que dirigisse umas palavrinhas ao Senado, ficaram desapontados ao saber da morte do poeta 42 anos antes. Mas não houve problema. A americana, decidiram democraticamente alterar o nome no diploma, declarando aquele dia o João Gaspar Simões Day. Contente, o crítico levou o papiro de souvenir.
Chronicae non fingo, concluo eu a parafrasear Newton, que dizia não inventar hipóteses.