Carta(s)
a Jorge de Sena
I
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida
III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem –
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como o filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
– Grandioso vencedor e tão amargo vencido –
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos
IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta
in: Ilhas. Lisboa: Caminho, 2004. p. 41-42.
A vida de Camões
Da vida de Camões pouco sabemos
E fantasias de historiadores pouco interessam
Bem mais reais e exactos me parecem
Poemas contos e as convocações
De Super Flumina Babylonis
Onde o inscreveu se inscreveu nos inscreveu Jorge de Sena
De Camões direi que nos é pátria:
Este preciso sabor de exílio
Que há muito nos conhece e há muito conhecemos
in: Jorge de Sena: Ressonâncias & Cinquenta Poemas. (org. Gilda Santos) Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. p.248.