Em outubro de 2013, Eugénio Lisboa lançou o 3º volume de suas memórias — Acta est fabula — , desta vez revisitando pela escrita a sua Lourenço Marques entre 1955 e 1976 (abaixo, áudio com a apresentação do próprio autor). Das várias personalidades recordadas nesses vinte anos conta-se Jorge de Sena, que, lembremos, esteve em Angola e Moçambique em 1972. No capítulo a seguir transcrito (gentilmente facultado pelo autor), o foco incide sobre o encontro e a amizade entre essas duas marcantes personalidades da cultura portuguesa.
Ainda antes do suicídio de Montherlant, ocorrera, em Lourenço Marques, um acontecimento de vulto: a visita a Moçambique, de Jorge de Sena, acompanhado de sua mulher, Mécia, a convite da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra. Chegou no dia 7 de Julho e partiu em 31 ou 1 de Agosto (a 2, já estava em Luanda e em 30, ainda estava em Lourenço Marques).
Na altura em que visitou Moçambique, Jorge de Sena estava já, como Professor, em Santa Barbara (California), para onde se mudara, em 1970, deixando a Universidade do Wisconsin. E tinha, a seu crédito, uma obra importante, abarcando a ficção, a poesia, o teatro, o ensaio e a crítica. Vinha precedido de uma reputação de homem temível, de difícil abordagem… As reputações são o que são: a de Sena parecia-se muito com a de um homem talentoso com uma ponta de génio, mas insaciável e mesmo à beira do intratável.
Esperei para ver. O velho bardo de Stratford, no seu Henrique V, punha-nos de sobreaviso, em matéria de reputações: “A reputação é um instrumento de sopro que é posto a ressoar pelas suspeitas, os ciúmes, as conjecturas.” O Cisne sabia do que falava.
Durante a sua estadia em Moçambique, Sena conferenciou em mais de um local. Se bem me lembro, falou uma noite, na Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra. Depois de uma visita à Ilha de Moçambique, iria, apresentado por mim, no “Teatro Gil Vicente”, no dia 25 de Julho, dissertar sobre o vocabulário de Os Lusíadas, e, depois, no dia 30 faria uma conferência na Universidade de Lourenço Marques, apresentado por Maria de Lourdes Cortez.
Mas, antes de tudo isto, tive ocasião de conversar com Jorge de Sena e sua mulher, em nossa casa e em casa do Rui Knopfli. Falado, Jorge de Sena nada tinha de um dragão: pelo contrário, não só era um brilhante conversador, como era, também, um verdadeiro charmeur. Era de uma extraordinária subtileza, no modo como dividia a sua atenção por todos os presentes, não esquecendo ninguém, nem as crianças.
Quando, certa feita, telefonou, uma manhã, para nossa casa, a Geninha, que andava na fase de “ser ela a atender ao telefone”, pegou no dito e encontrou, do outro lado da linha, o Jorge de Sena. Este, em vez de lhe pedir logo que lhe passasse o pai, esteve uns bons minutos de conversa com ela, antes de lhe pedir, por fim, o favor de lhe passar “o paizinho”. A Geninha, é claro, achou aquilo o máximo e ficou a adorá-lo: na reunião, em nossa casa, com o casal, não prescindiu de estar presente e era toda ouvidos. Ela era muito sensível ao brilho das conversas e o brilho irresistível – e solidamente fundamentado, não superficial – do escritor fascinou-a por completo (a Geninha tinha nesta altura 13 anos incompletos). Muito mais nova, a Manucha também não arredou pé e também com ela Jorge de Sena partilhou a sua atenção.
A “conversa” de Sena não era uma conversa qualquer e o seu “brilho” não era um foguetear vazio. Sena convocava, com mestria e leveza, todo um imponente aparato erudito com que enriquecia – sem a tornar pesada – a sua conversa. Raramente tenho conhecido um conversador deste gabarito. No livro Entrevistas – 1958/1978, recentemente publicado, poder-se-ão ler as várias entrevistas que deu, durante a sua estadia em Moçambique, muito em especial, a que concedeu ao Rádio Clube de Moçambique, em 19 de Julho. Ela dá uma ideia do que era e de que era feita a “conversa” de Jorge de Sena, embora, à “leitura”, falte a enorme vitalidade da sua impressionante presença física. É que Jorge de Sena tinha uma impressionante presença: era alto, bem-parecido e tinha uma voz admirável e extremamente bem colocada. Era um grande senhor da língua portuguesa e era um grande senhor tout-court. Estas qualidades não “aparecem” todas, necessariamente, nos textos escritos, às vezes de uma agressividade e contundência quase intoleráveis e veiculados, por uma sintaxe impecável, sim, mas cheios de circunvoluções, de subordinações, de apartes, de interpolações, que os tornam muito menos atraentes do que a sua conversa solta e bem apimentada. De qualquer modo, foi um privilégio e um imenso prazer conhecê-lo. Era um homem extremamente generoso com o seu tempo e com a partilha do seu saber. Creio que deixou, em Moçambique, além de admiradores, amigos que o não esquecem (muitos não estarão já a viver ali).
Na apresentação que dele fiz, no Gil Vicente, terminava com estas palavras, que aqui quero deixar transcritas: “Resta-me apenas, como moçambicano – perdoe-se-me a momentânea insolência de usar esta pestiferada palavra –, como moçambicano cuja pátria é também a língua portuguesa, agradecer ao Professor Jorge de Sena, ao escritor Jorge de Sena e, também e muito particularmente, ao Jorge de Sena de todos os dias, o privilégio da sua visita a Moçambique, com tudo quanto ela nos trouxe: ensinamentos – e de que modo! –, convívio de uma vivacidade e de um estímulo, como nunca conheci nenhum, brilho, apetência de viver e conhecer e, sobretudo, a imensa vergonha em que ficamos todos, por vermos como trabalha por todos nós, lá fora, um homem que deixámos fugir. Como diria o delegado do Ministério Público de um seu poema escrito há onze anos, “[ … ], a extensão do crime escapa-nos!”.
Na conferência que fez na Universidade, com a sala a deitar por fora (literalmente), Jorge de Sena foi apresentado, com a subtileza e minúcia que caracterizam a sua escrita (e também a sua fala), por Maria de Lourdes Cortez, para cima de quem foi atirado o ónus dessa tarefa (politicamente ingrata?). Mais uma vez, Jorge de Sena fez uma demonstração prática daquela afirmação do ficcionista francês Barbey D’Aurevilly, segundo o qual, “estar acima do que se sabe é coisa rara.” Para uns, segundo o autor de Une Vieille Maítresse, a erudição era “um fardo”, e ficavam abaixo dela; para outros, era, por assim dizer, “um pedestal”, e ficavam em cima dele. Este segundo caso era o de Sena.
Não vou deixar passar o registo de um incidente que decorreu no dia em que fez a conferência por mim apresentada no Gil Vicente, por ser revelador de um outro lado do grande escritor: a sua profunda vulnerabilidade à crítica, sobretudo se vinda de um personagem insignificante (já Valéry observara que qualquer rafeiro nos pode infligir uma ferida mortal). Na véspera da conferência – dia 24 – recebera a notícia da morte, no Brasil, do seu velho amigo Adolfo Casais Monteiro, o que o deve ter deixado um tanto deprimido. No dia da conferência, de manhã, salvo erro, alguém lhe telefonou de Lisboa, informando-o de que um escriba qualquer mordiscara, levianamente, no seu livro de traduções de poesia – Poesia de 26 Séculos – há pouco saído. Sena ficou a ferver o dia todo e, ao fim da tarde, entrou no “Teatro Gil Vicente”, em estado de profundo nervosismo.
Era aquele o primeiro espaço público de que dispunha, para um ajuste de contas. E aproveitou-o! Após a minha apresentação, que agradeceu cavalheirescamente, em vez de “entrar em tema”, como se diz, apropriou-se de uma boa fatia do tempo de que dispunha, para dar escape à sua fúria contra o escrevinhador lisboeta… O público, é claro, ficou perplexo e, pouco afeito àqueles submundos da República das Letras, pouco terá entendido do que se estava a passar. Despejado o saco, Sena lá sossegou e fez uma conferência sobre Camões, como ele sabia fazer. À saída, fintou habilmente os que o queriam cumprimentar e dirigiu-se, ansioso, para o sítio onde se encontrava a sua mulher, inquirindo-a com o olhar. E só quando ela, discretamente lhe deu a bênção (“Andaste bem”), é que ele, descontraído e sossegado, se aprestou a receber as devidas homenagens.
Durante toda a viagem por Moçambique, Sena falou claro e vicentino, embora não se entregasse a provocações de carácter político. Mas disse sempre o que tinha a dizer. Aliás, logo numa entrevista dada ao Notícias, no dia 16 de Julho, teve o cuidado de informar: “Não estou aqui integrado em comemorações nenhumas. Não venho em romaria. Estou em Lourenço Marques a convite da Associação dos Estudantes de Coimbra, o que considero uma atenção especial.”
Depois desta visita, encontrei-me duas vezes com Jorge de Sena: em Londres e em Paris. E, de ambas, pude confirmar a impressão que dele colhera, em Moçambique: a de uma das mais carismáticas e impressivas figuras da nossa cultura e, ao mesmo tempo, a de um homem de grande encanto pessoal e de extrema generosidade.
Fiquei sempre a sentir por ele um grande afecto, o que não quer dizer que tenha sistematicamente concordado com tudo o que fez, disse ou escreveu. Nem tinha que estar: se alguma lição forte ele nos deixou, foi a de um espírito de grande independência. Ser igualmente independente é a melhor maneira de lhe prestar homenagem. (Já de regresso aos Estados Unidos, Jorge de Sena escreveu-me, perguntando-me se quereria ir para Cardiff, como leitor de Português. Seria só um ponto de passagem: a seguir, ele arranjaria maneira de me fazer ir trabalhar com ele, em Santa Barbara. Fiquei lisonjeado, mas não aceitei. Dei-lhe uma desculpa qualquer, mas a verdade é que não estava ainda preparado para deixar Moçambique: demasiadas coisas ali me prendiam.)
In: Lisboa, Eugénio. Acta est fabula. Memórias III – Lourenço Marques Revisited (1955 e 1976). Guimarães, Opera Omnia, 2013 p. 405-410