João Bénard da Costa (1935-2009), intelectual de várias facetas, das quais a paixão pelo cinema talvez seja a preponderante, manteve sólida relação de amizade com Jorge de Sena, como bem revela o testemunho ora transcrito de uma seção “Retratos” do Público Magazine.
Os estudiosos de Jorge de Sena devem-lhe, além do aí mencionado número especial da revista O Tempo e o Modo, o cuidado volume Sobre Cinema, publicado em 1988 sob os auspícios da Cinemateca Portuguesa, quando Bénard da Costa lá exercia o cargo de subdiretor.
1. Conheci Jorge de Sena em 1958 quando o jornal Encontro publicou aquele Soneto que começa: “Como de Vós, meu Deus, me fio em tudo/ mesmo no mal que consentis que eu faça”. Pio XII, Papa, tinha morrido e o soneto era dedicado à memória dele “que quis ouvir, moribundo, o ‘Allegretto’ da Sétima Sinfonia de Beethoven”. Era o primeiro Papa que morria na minha vida consciente e nessa altura — não sabendo o que soube depois — era mesmo o Pastor Angelicus. Comoveu-me que Jorge de Sena, não-católico — ou melhor, como um dia escreveu, um católico que não era nem podia ser católico, apostólico, romano, mas sim e apenas católico porque não era convictamente cristão — juntasse as lagunas dele às nossas e as juntasse nesses versos sublimes.
Essa razão obscura e a clara e luminosa beleza do soneto levaram-me a ler a obra poética anterior de Sena: “Perseguição”, “Coroa da Terra”, “Pedra Filosofal”, “As Evidências”. Li também “Fidelidade” que a Morais publicou em 1958 e que acaba com o “Como de Vós”. Entre 1958 e 1959, descobri o maior poeta português depois de Pessoa. Mais de trinta anos passados, continuo o pensar o mesmo. Embora saiba que esta afirmação continua a ser evidente e não era aceite por Sena que considerava Pessoa e Sá-Carneiro como o seu Sá de Miranda e o seu Bernardim.
“As Evidências” é o livro maior que se publicou em língua portuguesa neste segunda metade do século. Com a eventual excepção de “Metamorfoses”. E o mais belo soneto da nossa história é o soneto XXI de “As Evidências”, escrito a 16 de Abril de 1954. “Perdem-se as letras. Noite, meu amor,/ ó minha vida, eu nunca disse nada./ Por nós, por ti, por mim, falou a dor./ E a dor é evidente — libertada”.
2. Conheci Jorge de Sena em 1959, em casa do António Alçada, numa dessas reuniões clandestinas em que sonhámos fazer a Revolução de 11 de Março. Discutia-se acaloradamente se o primeiro “decreto” a sair era o que acabava com a Pide ou o que acabava com a Censura Jorge de Sena interrompeu com outra prioridade. O primeiro decreto devia era acabar com a Universidade de Coimbra Todos nos rimos muito, mas ele não estava a brincar. Por mim, demorei muitos anos até o perceber.
Também não estava a brincar quando, numa brincadeira de lugares futuros, pediu o de Embaixador em Londres. Para não ter que ficar cá. Muito mais tarde, disse: “Porque o problema não é salvar Portugal, mas salvar-mo-nos de Portugal”. Ele não se salvou.
3. Em Agosto de 1959, aos 39 anos, Jorge de Sena saiu de Portugal e foi viver para o Brasil. Em 1963, escrevi-lhe a convidá-lo a colaborar em “O Tempo e o Modo”.
Foi o começo de uma correspondência regularmente mantida ao longo de sete anos. Para além da espantosa colaboração de Jorge de Sena n'”O Tempo e o Modo”, devo-lhe várias dezenas de cartas (páginas enormes, 40 linhas, escritas a máquina) em que por tudo se interessava, por tudo perguntava. “É que nunca ninguém que me respeite apelou para mim em vão. Às vezes, nem os que não me respeitam”.
4. Em Outubro de 1965, aos 45 anos, Jorge de Sena deixou o Brasil e fixou-se em Madison, Wisconsin, USA.
Em 1968, voltou a Portugal, após uma ausência de cerca de nove anos. Quando ele chegou, estava eu na América e tinha incluído Wisconsin no meu itinerário, de propósito para o visitar.
Foi em Dezembro de 1968, havia neve e um frio bom. Jorge de Sena não estava mas estavam Mécia de Sena e os nove filhos que tinham tido. Pessoalmente, não conhecia ninguém, mas fui recebido como se se tratasse de alguém da família. Naquela casa cabia muita gente e jantares de 10 e 15 pessoas pareciam fazer parte do quotidiano. Foi lá que conheci Adolfo Casais Monteiro. Salvo erro, foi ele quem levou um dia, como presente, o “Dido e Eneias” de Purcell, na gravação EMI dos Mermaid de Geraint Jones, com a Flagstad e a Schwarzkopf. Desde essa noite, o “Remember” é, para mim, um sinal de união indissolúvel com eles. Revivi isso tudo há poucos anos — já depois da morte de Jorge de Sena — quando, pela primeira vez, vi a ópera, em Paris, com Jessye Norman no papel de Dido.
“Diz-me assim devagar coisa nenhuma/ o que à morte se diria, se ela ouvisse,/ ou se diria aos mortos se voltassem.”
5. Voltei no Natal de 68, ainda Jorge de Sena estava em Lisboa. Lembro-me de um almoço na Gôndola com o Vasco Pulido Valente. E lembro-me da sala cheia da Sociedade Nacional de Belas Artes para uma conferência que ele lá foi fazer. Já tinha saído o número especial de “O
Tempo e o Modo” (Abril de 68) em que se dizia na cinta que seria disputado no futuro a peso de ouro. Foi durante a conferência que reparei que Jorge de Sena não se sentia à vontade, com aquela reviravolta de imagem face àquele ambiente delirantemente consagratório que eu concelebrara. Essa conferência, sobre Portugal na América ou Portugal no mundo, já não me lembro bem, parecia ser feita de propósito para contrariar os meus “clichés”.
Grande parte dos ouvintes eram jovens e —1968—contestatários. No final, reagiram com apupos e provocações ao jeito do tempo. A festa pareceu-me estragada e saí dali com uma enorme incomodidade. Jorge de Sena, não. Olhou-me a rir, nada zangado e perguntou-me se eu continuava a achar que as coisas tinham mudado. “Daqui a vinte anos” — disse-me ele — “vão ser iguais aos outros ou piores”. Era tão estúpido que não o tomei muito à letra. Não foi preciso esperar tanto tempo.
6. De longe em longe, voltei a vê-lo nos anos 70, quando cá vinha, antes e depois do 25 de Abril. Depois, a notícia da doença. Depois, mais nada.
Lembro-me de ter ouvido alguém contar que pouco antes de morrer perguntou à Mulher: “Ainda falta muito?”. Treze anos antes, em 1965, escreveu-me no dia da morte de Eliot. E dizia: “Você, que é jovem, não sabe ainda o que isto é de ter-se mais de quarenta anos e começar a ver sumirem-se aqueles que foram as luzes vivas da nossa juventude”. Quando Jorge de Sena morreu, eu tinha mais de quarenta anos. Tinha quase a idade que Jorge Sena tinha quando Eliot morreu. (E Deus) “Não nos aguarda — a mim, a ti, a quem amaste/ não nos aguarda, não. Por cada morte/ a que nos entregamos el’ se vê roubado,/ roído pelos ratos do demónio/ o homem natural que aceita a morte/ a natureza que de morte é feita”.
Para trás, ficaram seis instantâneos em forma de retrato. Mas como fazer de outra maneira? Quando preparei o tal número especial de 1968, pedi um retrato a Jorge de Sena. E ele respondeu-me (da América): “Fui tirá-lo de propósito, porque já estou farto dos velhos retratos de sempre. O pior é que, nesta América, ou se vai a um fotógrafo de arte, que custa uma fortuna, ou a gente fica com cara de director de banco”.
Não sendo fotógrafo de arte (nem por uma fortuna) estes instantâneos foram a forma que encontrei de não ficarmos — nem ele nem eu — com cara de director de banco.