O texto abaixo transcrito constitui o parágrafo final do “Prefácio à Segunda Edição” de Poesia I, datado de um ano antes do falecimento do escritor, o que, além do evidente caráter retrospectivo, lhe atribui valor quase testamentário.
Permitam-me que termine estas linhas citando a definição que dei de mim, quando escrevi o texto que me havia sido solicitado para o Encontro Internacional de Grado, na Itália, e que li em Roma, em Setembro de 1976, encontro esse que precedeu a honra insigne de haver-me sido concedido em Abril deste ano o Grande Prémio Internacional de Poesia Etna-Taormina de 1977, ao conjunto de minha obra, sem que, para tal, se tenham movido as mínimas influências diplomáticas em meu favor (e que aliás seriam descabidas, dada a organização do prémio que é efectivamente uma honra extraordinária que recebi tanto por mim como por Portugal a cuja literatura pertenço). Não é que proponha “explicar-me”. Mas creio que isso resume e ilumina o que eu sou, nas minhas convicções que, pior ou melhor, a minha poesia reflecte. Naquele escrito (que aparecerá em Portugal na reedição ampliada de Dialécticas da Literatura, a qual terá o título de Dialécticas Teóricas da Literatura) eu digo o seguinte: “Sou pessoalmente contra qualquer igreja organizada ou qualquer partido organizado, mas reconheço o direito de qualquer pessoa a ser um membro seja do que for, desde que a minha liberdade pessoal não seja com isso afectada. Religiosamente falando, posso dizer que sou católico mas não um cristão – o que apenas significa que respeito na Igreja Católica todo o velho paganismo que ela conservou nos rituais, nos dogmas, etc., sob vários disfarces, tal como a Reforma protestante não soube fazer. Acredito que os deuses existem abaixo do Uno, mas neste Uno não acredito porque sou ateu. Contudo, um ateu que, de uma maneira de certo modo hegeliana, pôs a sua vida e o seu destino nas mãos desse Deus cuja existência ou não-existência são a mesma coisa sem sentido. Filosoficamente, sou um marxista para quem a ciência moderna apagou qualquer antinomia entre os antiquados conceitos de matéria e espírito. Mas, politicamente, sou contra qualquer espécie de ditadura (quer das maiorias, quer de minorias), e em favor da democracia representativa. Não tenho quaisquer ilusões acerca desta – pode ser uma máscara para o mais impiedoso dos imperialismos. Mas isso também o podem ser outros sistemas. Sou a favor da paz e do entendimento entre as nações, e espero que o socialismo prevalecerá em toda a parte, mantendo todas as liberdades e a democracia representativa. Não subscrevo a divisão do mundo em Bons e Maus, entre Deus e o Diabo (estejam de qual lado estiverem). Apesar de minha formação hegeliana e marxista, ou também por causa dela, os contrários são para mim mais complexos do que a aceitação oportunista de maniqueísmos simplistas. Moralmente falando, sou um homem casado e pai de nove filhos, que nunca teve vocação para patriarca, e sempre foi a favor de a mais completa liberdade ser garantida a todas as formas de amor e de contacto sexual. Nenhuma liberdade estará jamais segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido, ou um grupo de cidadãos hiper-sensíveis, possa ter o direito de governar a vida privada de alguém. Do mesmo modo, não devemos nunca pactuar com a ideia de que qualquer reforma vale o preço de uma vida humana. Mais do que nunca, num mundo onde as vidas humanas se tornaram tão baratas que podem ser gastas por milhões, aos escritores cumpre resistir. Poderemos ter revoluções: mas tenhamos esperança de que nelas as pessoas podem morrer por acidente, mas nunca assassinadas”. E por agora basta, quando Portugal – a quem a minha obra primordialmente pertence – tem de aprender a praticar as ironias democráticas, para sobreviver e ocupar, no mundo, o lugar que lhe cabe de antiqüíssima nação gloriosa: por uma vez, nesse país, que haja, na garantia da liberdade e da justiça, lugar para todos, como tão raras vezes houve. Do país subitamente falei. De lugares na literatura é melhor não dizer mais nada.
Santa Barbara, Julho de 1977