Ainda a propósito do Congresso Internacional “Surrealismo(s) em Portugal”, que transcorre em Lisboa de 18 a 21 de novembro/2013, aqui transcrevemos o “testemunho” que Jorge de Sena redigiu a pedido de Luciana Stegagno-Picchio, que o editou nos Quaderni Portoghesi nº 3. Datado de abril de 1978, é um dos seus últimos escritos, o que lhe confere interesse suplementar.
NOTAS ACERCA DO SURREALISMO EM PORTUGAL, ESCRITAS POR QUEM NUNCA SE DESEJOU NEM PRETENDEU PRECURSOR DE COISA ALGUMA, AINDA QUE, CRONOLOGICAMENTE, O TENHA SIDO, POR MUITO QUE ISTO TENHA PESADO A MUITOS SURREALISTAS, EX-SURREALISTAS, ETC., DO QUE SE NÃO EXCLUEM MESMO EMINENTES PESSOAS QUE CONTAM ENTRE OS MELHORES E MAIS DEDICADOS AMIGOS DO AUTOR
Ao compor este longo título, para corresponder à amiga insisistência da admirável Luciana Stegagno-Picchio que me deseja depoente neste conjunto de textos dedicados ao Surrealismo em Portugal, não sei em verdade o que vai acontecer daqui em diante, ao rápido sabor da máquina, e se as «notas» corresponderão ao título, ou ao que se espera que eu diga ou não diga. A ver vamos.
Como mostrei em artigo que saiu em duas partes no Diário de Notícias de Lisboa, em 10 e 17 de Janeiro de 1974, «A Primeira Referência ao surrealismo feita em Portugal», eu creio ter encontrado (havia muito) e digo então que essa referência, escrita em fins de 1924, apareceu em 1925, na antologia Afonso Lopes Vieira – Prosa e Verso, organizada, com largos comentários, pelo Prof. Agostinho de Campos, notório filólogo e crítico, inimigo de quanto cheirasse a Modernismo (que ele, como muita gente de Direita, equacionava e longamente equacionou com «comunismo » e mesmo, mais cruamente, o temível e horrendo «bolchevismo» que sugeria logo, às almas timoratas, uns sujeitos que comiam crianças assadas, todos ignorantes essa gente, ainda que por certo ele muito menos do que outros, de como, na verdade, a grande parte dos maiores fundadores e propagadores do Modernismo euro-americano não timbrou pelo esquerdismo, e mesmo caíu noutros extremos de simpatia ou adesão ao fascismo, o que tudo em 1924-25, sejamos justos, não era fácil de distinguir), que algures no livro, qual citei naquele estudo, ele atacava, aproveitando o recentíssimo Surrealismo cuja aparição lhe não escapara, e que ele chegava a apresentar por exemplos que terão sido as primeiras traduções portuguesas, ainda que curtas amostras, de textos surrealistas, precisamente quando Breton acabara de proclamar o movimento. Agostinho de Campos, companheiro e amigo coimbrão, que fora, de António Nobre (que o Modernismo português roubaria ao Nacionalismo literário, para considerá-lo um precursor que tanto Pessoa como Sá-Carneiro celebraram notavelmente), no mesmo largo passo, mostra-se todavia altamente informado do que ia por algumas partes: fala em Dadaísmo, em Ultraísmo, etc., e eu perguntava-me e pergunto quantos dos mais modernos dos modernistas, naquele interim do movimento nos anos 20, após o ORPHEU e o Portugal Futurista de 1915-17, estaria mais infor(nado do que ele, a respeito de tudo isso, como ele mostrava estar. E não creio que se tenham preocupado com informar-se, como é tão claro que Pessoa não buscou, e que Almada muito menos, sempre fechado dentro daqueles olhos imensos e profundos, com que ele sabia sempre tudo, sem na verdade saber nada. Naqueles anos 20, a continuidade do Modernismo é mantida, mais ou menos numa relativa clandestinidade literária, em que o movimento se desejava fazer respeitável (ainda que Pessoa & Ca. heteronímica tratassem de equilibrar um pouco a situação com uma que outra escapada escandalosa, para honra da firma), por importantes revistas que raríssimos em verdade liam, ou terão lido hoje: a Contemporânea (1922-26), e a Athena (1924-25) dirigida pelo próprio Fernando Pessoa, nas quais em vão, se me não engano, se encontrará qualquer eco de «ismos» passados ou presentes, e ambas coincidem com o lançamento do Surrealismo. Por essa época, ainda a presença estava nos idos e calendas do futuro, fundada que foi em 1927 para durar intermitentemente até 1940, e tendo imposto criticamente, pelos seus membros mais influentes e activos, o Modernismo. Todavia, ao longo das páginas tão ricas e cheias de surpresas ainda por estudar no sucessivo conjunto que a presença foi, em meio de tanta referência que desejava repor a cultura modernista’ num contexto crítico-literário internacional (ainda que a internacionalidade continuasse, com raros momentos, a chegar toda da França), não há qualquer indicação de que o Surrealismo tocara ou penetrara o reconhecimento dos «presencistas» mesmo maiores. Quem nos anos 30 mantivera, com vários «ismos» inventados e experimentados por ele, algum do fogo sagrado da Vanguarda pela Vanguarda, havia sido António Pedro (1909-66), que veio a ser mais tarde o catalisador essencial do movimento surrealista português, quando ele se conglomerou em 1947, na corrente do efémero renascimento do surrealismo internacional que ao, final da Segunda Grande Guerra sucedeu. Mas ainda me lembro bem da mal disfarçada hostilidade dos «presencistas» contra A. Pedro (à excepção , de, mais tarde, Casais Monteiro que veio a ser seu excelente amigo), por o considerarem algo fumiste e «amador», o que esse A. P. que recordo com infinito carinho e saudade na verdade foi em tudo, e é dos mais comoventes e valiosos timbres de quem foi um dos mais distintos poetas do período (em todas as transformações estilísticas que variamente experimentou, sempre com o mesmo pessoal domínio da língua portuguesa que era o seu) e um dos abridores de portas a uma nova pintura portuguesa. Em 1935, publicara Vitorino Nemésio (1901-78) o notável livro de poemas La Voyelle Promise, tudo em francês, o que pareceu muito mal a muita gente, entrando em regular ritmo de publicação do que viria a ser uma das principais obras poéticas portuguesas do século. Em 1937-40, a sua Revista de Portugal, aparecendo quando na verdade a presença estava já praticamente morta como publicação, foi uma imensa abertura em que não houve quase movimento ou personalidade notável (do tempo ou futura) que não colaborasse ou aparecesse. E, no entanto, surrealismos mencionados ou declarados, que a gente veja ou recorde, suponho que não há lá. De resto, a maior parte dos «presencistas» nunca na verdade engoliram muito Nemésio, por razões que deduzo ao mesmo tempo semelhantes e opostas às da relativa aversão a António Pedro. Este, fumiste e «amador», tinha fumos de aristocrata que lhe eram perfeitamente naturais, era bastante rico por filho de uma família estabelecida de roça em Cabo Verde, aonde ele nascera, não precisava de trabalhar para viver – e tudo isso repelia homens que eram membros da mediana burguesia da província portuguesa, com alguma que outra excepção. Citadinos (a não ser mais tarde Casais e Gaspar Simões, estabelecidos em Lisboa, mas Casais sempre com um pé no seu Porto natal e no Entre Douro e Minho das suas quintas), como Pedro o era, nunca em verdade os «presencistas» – sejam os sempre fiéis, os dissidentes, etc. – o foram, apesar de quanto culturalmente estavam ou faziam por estar acima do resto das gens literária. Além de que os «presencistas» estavam apostados em tomar a sério e fazer tomar a sério o Modernismo, e tropelias pelo continuado modelo de 1915-17 pareciam-lhes impróprias, e nada que ajudasse um intenso trabalho de defesa e imposição do que encontrava pela frente uma continuada hostilidade, por parte dos mais diversos sectores da tradicionalidade ou da rotina. É de supor que, para lá de antagonismos meramente pessoais desenvolvidos no meio coimbrão da juventude deles todos, quando estudavam à sombra de um dos estercos universitários da Europa, algo de semelhante se passasse com Nemésio que, além do mais, açoriano decidido a trruntar no «Continente» (como nas Ilhas se diz), se talhava com paciência e persistência uma carreira universitária que, para «presencistas», era, com alguma razão, anátema. Questões de classe, como com António Pedro, não creio que tenha havido. Mas terá havido, em comum com Pedro, um outro aspecto fundamental do Modernismo que Nemésio na poesia praticou desde aquele livro de 1935 até à hora da morte: uma aparente gratuitidade fulgurante na invenção das metáforas, um jogo – entre dramático e risonho – com os níveis de sentido e a articulação ou desarticulação do discurso poético, uma certa versatilidade que se situava na aparência para lá do «humano» que era o que os «presencistas» queriam acima de tudo (com muitas razões dentro de uma literatura que, menos raras obras, era naqueles tempos, um acervo de mediocridades, superficialidades e literatices muito aclamadas pela imprensa). Aqueles funambulismos de Nemésio não eram «sérios» – e o pobre Nemésio por outro lado viu-se doido para ser catedrático de universidade, já que esta considerava inimaginável que aquele «modernista» fizesse parte dos «claustros» insignes de ilustres quadrúpedes que hoje, em grande parte, estão substituídos pelos filhos espirituais, mais sólidos do que eles, por que têm seis pernas em vez de quatro. A contradição é saborosa. Mas o que nos importa é acentuar como não é fácil estabelecer a que ponto Nemésio (que conhecia tudo, mas se dava ares de não conhecer nada) foi sabedor e consciente de «ismos» em geral e de surrealismos em particular. Muito possivelmente foi, como se pode deduzir de alguns aspectos da sua obra (que igualmente se podem deduzir dos numerosos movimentos, grupos, revistas e personalidades poéticas cuja acção imediatamente precedeu a proclamação do Surrealismo por Breton, e a este forneceram o material e o ambiente em que «manifestar-se» de chefe que foi e ficou). Que um Nemésio como um Casais Monteiro conheciam bastante bem esses Réverdys e outros, é verificação minha. Mas o essencial subsiste: Nemésio, como depois Casais em muita poesia ulterior, não absorveram nem estavam interessados em absorver surrealismo algum (o que não é pecado nenhum, e não os faz menos grandes), para lá talvez de uma certa libertação do discurso poético que, todavia, por mais desarticulado ou barroco (no caso de Nemésio este último aspecto) que fosse, não perdia contacto com a lógica tradicional expositiva da expressão. Mais duvidoso ainda é o caso de Edmundo de Bettencourt (1899-1973), um dos fundadores da presença e logo dissidente dela, e por muito tempo apenas o prometedor poeta de um livro de 1930, muito na linha «presencista», até que, após anos e anos de obscuridade que ele mesmo desejava e de rara publicação de um que outro poema, se deixou publicar os Poemas de 1963, em que há coisas excelentes, e que foi logo aclamado como um grande precursor de quantas novas Vanguardas havia, e de surrealismos que terão existido nele, se existiram, ao nível literário, de artifício a usar, tal como em Nemésio ou Casais. Cabe aqui um curioso parentese psico-social, que diz respeito praticamente a quase todos os poetas nascidos naqueles anos 20 em que, simbolicamente, o Modernismo português dormia na indiferença do público, e a que escapámos, perdoem-me a presunção, os poetas, quase todos, nascidos entre 1914 e 1919 (ano em que nascemos eu e Sophia de Mello Breyner): a busca de um pai transcendente na geração da presença. Daí para diante, os pais transcendentes e renegados passámos a ser nós, que não tínhamos tido uma presença, não eramos professores de universidade oferecendo aos alunos um entendimento da literatura que ninguém mais lhes dava, nem vivíamos em solene e altivo isolamento como Torga, apesar da tabuleta da sua especialidade médica, ali logo à entrada de Coimbra. Porque esses pais que os grupos continuamente promoviam, para atirá-los uns contra os outros (o meu é o «maior»), o que se pode ver nas revistas literárias dos anos 50 e depois, foram Régio, Torga (outro dissidente da presença mas não menos identificável com muito dela), Bettencourt, Nemésio … (aqui entra o Surrealismo) e António Pedro que foi sol de pouca dura nas divisões e hostilidades em que o incipiente movimento logo se cindiu.
Em 1934, Georges Hugnet, um dos melhores poetas surrealistas franceses injustamente esquecido, havia publicado um livro que teve repercussão decisiva: a Petite Anthologie poétique du Surréalisme, admirável antologia pela informação e pela qualidade e quantidade das selecções. Era como que pôr ao alcance de um mais largo público numerosos textos que jamais haviam sido acessíveis fosse a quem fosse, uma vez que os surrealistas se publicavam em edições restritas, em revistas luxuosas e caríssimas, etc. (tudo sem dúvida muito harmónico com o negócio editorial e plástico que era parte da subsistência de Breton e do seu movimento, mas bem pouco com o carácter de comprometimento político que não tardaria a dividir ainda mais fundamente o que já era, desde o parisiense começo, uma continuada sucessão de excomunhões e denúncias mútuas). Note-se que aquele carácter de inacessibilidade (e as limitações tremendamente «francesas» de tantos deles, e de um homem tão universal como Breton se queria) terá sido o que largamente contribuiu para a escassa difusão (e nunca declarada implantação até muito mais tarde, em qualquer parte) de um movimento cuja influência é inescapável para entender-se a literatura mundial dos últimos cinquenta anos. Em 1935, um dos raros poetas fora da França desse tempo, e um dos raríssimos ingleses a saberem o que o Surrealismo era, David Gascoyne (n. 1916), poeta muito embebido de verdadeiro surrealismo, publicou o que ainda hoje é uma das melhores introduções ao movimento: A short survey of Surrealism, que, é claro, não havia quem lesse em Portugal, ao tempo de a descoberta do grande romance inglês «clássico» e «romântico» e «vitoriano» se processar sob o signo da descoberta francesa. A propósito, cumpre lembrar que o grande Dylan Thomas (1914-53) tem sido referido como muito marcado pelo surrealismo, desde que se estreara em livro em 1934. É possível, mas o caso é muito semelhante ao dos portugueses mais velhos, acima referidos. Já na Espanha, por exemplo, a Geração dita de 27, com Lorca à frente, teve conhecimento do Surrealismo, como não a geração presencista que em Portugal lhes correspondia, e em maior ou menor grau o encorporou à sua criação poética, sem que todavia jamais tenha havido propriamente movimento que, de resto, aqueles anos que se iam dramatizando não propiciavam. Por 1939-40, Tomaz Kim (1915-67), meu companheiro dos Cadernos de Poesia, porta por onde entrei mais abertamente na arena pública dos meus – neste ano se cumprem – quarenta anos de actividade literária, emprestou-me aquela antologia que ele obtivera e o entusiasmava ainda que moderadamente, e o livrinho de Gascoyne, que ele trouxera da Inglaterra de onde o eclodir da guerra o devolvera à pátria (note-se que, pelo nascimento, este meu distante primo pelos Grilos judaicos da Covilhã, que ambos tínhamos no nome completo e no sangue, tinha, como «pátria», Angola onde nascera).
Ambos os livros, com variáveis efeitos, haviam andado nas mãos de José Blanc de Portugal (n. 1914, em Lisboa como eu) e do Ruy Cinatti (n. 1915, e em Londres). Eu, que já andava a catar surrealismos sem bem saber aonde encontrá-los sem bússola, sofri o que não pode descrever-se como um tremor de terra. Aqui e ali, em alfarrabistas, não sei por quais milagres, encontrei preciosos volumes que ainda conservo de Eluard, de René Crevel, Aragon, etc., que por certo os compradores haviam comprado por engano e vendido logo, lavando as mãos com desinfectante. Esse período da minha juventude, como anos e anos ulteriores, foi, lado a lado com o muito juízo de tratar de arranjar o pão que não tinha, de uma dissipação incrível em submundos inimagináveis, o que nunca escondi de ninguém, mas jamais partilhei ou fiz assunto de. conversa com mesmo os meus mais íntimos amigos. Aliás, é – e perdoem-me este traço de retrato – típico da minha atitude em relação a tudo isso, a minha total incapacidade ou repugnância por qualquer aventura que não envolvesse uma pessoa desconhecida que eu passava a «conhecer» só para isso mesmo, e quando se acabava acabou-se. Assim sendo o como eu vivia, o desregramento surrealista estava nas minhas mãos. E as experiências também – apenas sucedia que eu as prosseguia a sós, o que foi uma escola tremenda, e uma lição terrível. Automatismos, transes, etc., tudo tentei praticar e por vezes consegui, da mesma forma que o sistemático deambular delirante pelos desertos urbanos e nocturnos de Lisboa e Porto (o que não é difícil encontrar em muita da minha poesia). Mas comecei, juntamente com o «aprender» lúcido de algo diverso desde dentro, a sentir um terror negro descendo sobre mim (que também está em vária poesia minha). Era, não havia dúvida, um risco de pura e inescapável loucura, por trás da máscara mais ou menos serenamente irónica que era a minha e irritava tanta gente (para mais, não indo eu às capelas literárias do Modernismo, como ia, para beijar devotamente a mão de algum «mestre»…). Por esse tempo lia eu (em tradução, que o alemão ainda me não chegara) Goethe que admiro profundamente e não é mais que obrigação de pessoa decentemente culta, e as distâncias dele em relação ao Romantismo que ele mesmo tanto ajudara a inventar, foram um dos meus caminhos de salvação. Tomei as minhas distâncias, mas fiquei a saber que o surrealismo ou o que este incluíra nos seus programas, por muito que pudesse ser, na velha tradição da mistificação esteticista- modernista, uma divertida brincadeira de arreliar o burguês, não era brincadeira nenhuma.
Em 1942, após várias publicações dispersas de poemas desde 1938, o Portugal, o Cinatti e o Kim cotizaram-se, tendo eu contribuído com simbólica parcela, para editar-se o meu primeiro livro de poemas, Perseguição. Este livro não era apenas posto sob a égide (em 1942!… quem era ele?) de uma epígrafe de René Char, sendo dividido em três partes que tinham epígrafes de Breton, Gide, António Machado. Esta escolha obviamente era muito calculada: eu colocava-me na linha do surrealismo caminhando ao longo dela, e, do mesmo passo, acentuava que a «disponibilidade» do Gide seria sempre uma das minhas linhas de conduta, tal como o grande Machado, com a sua densidade de pensamento e a sua sensibilidade aberta ao dentro e ao «fora», era um dos meus mestres de poesia e de humanidade (têm-me dado outros mestres, e nunca se lembraram deste que ali estava como que declarado). Depois das epígrafes, o que estava era uma selecção de poemas meus, desde os fins de 1938 aos princípios de 1942, a esmagadora maioria dos quais era, e de outra maneira não podia ser entendida, surrealista de forma e fundo e profundo. O que largamente contribuiu para o silêncio confuso e gélido que rodeou tão estranha coisa, e para que um par de criaturas críticas do tempo dissessem dos dislates mais memoráveis sobre uma coisa que eles não entendiam que fosse. Estes dislates deveriam os surrealistas sobreviventes buscá-los e coleccioná-los para a grande antologia da asneira a respeito deles, se não vivessem quase todos na absurda angústia de que eu exista ou tenha existido sem incomodá-los, e criticando-os muitas vezes com uma simpatia que eles têm encontrado falsa em pessoas que tanto mais gostam deles quanto menos surrealistas lhes parecem, ou dando ao gáudio público o triste espectáculo das suas brigas e quezílias com insultos e semelhantes coisas que fazem as delícias de quem não merece a décima parte do respeito que a maioria dos surrealistas, ou ex-idem, merecem. Mas, quando o surrealismo chegou a Portugal em forma de grupos logo multiplicados, em 1947, a máxima preocupação foi suprimir- me, atacar-me, distorcer o que eu acaso dissera, e sobretudo ignorar por completo, ou fazer ignorar, que aquele livro de 1942 tinha alguma vez existido. Sequer o meu velho e grande amigo José-Augusto França, nas tábuas cronológicas dos eventos, em apêndice à sua monumental A Arte em Portugal no Século XX (1974) resistiu, ou o subconsciente o traiu, a não referir, entre os eventos literários daquele ano esse livro, da mesma forma que, em 1946, se esqueceu de registar o meu livro seguinte, Coroa da Terra, o qual, cruzamento de um surrealismo ainda mais ultrapassado, com um neo-realismo sem ranço de aldeia e de semi-analfabetismo, era formado por poemas que tinham sido escritos desde os fins de 1941 aos fins de 1944. Não admira que, noutros lugares, quando eu entro em listinhas de surrealismos,pareça – como convinha – que o meu primeiro livro era Pedra Filosofal, de 1950 …
Voltemos ao 1942 do princípio do parágrafo anterior. Nesse ano, e foi quando primeiro o conheci, António Pedro que estava na Inglaterra ao serviço da BBC (e como tal era pessoa mal vista das entidades oficiais que todavia o não perseguiram nunca pelas muitas ligações e amizades que ele tinha dos seus tempos juvenis de nacionalismo literário, e íntimo amigo do admirável e malogrado Guilherme de Faria, 1907-28, com cuja poesia a primeira de Pedro se identifica muito) fundou em Lisboa uma revista luxuosamente «moderna», Variante, em que colaborei, e de que saíram apenas dois números. Manda a justiça que se diga que a revista não reflecte, de modo algum, ou faz qualquer propaganda do surrealismo. E, no entanto, António Pedro nesse mesmo ano publicava uma das grandes obras-primas da prosa e da ficção portuguesas, e sem dúvida uma das mais admiravelmente conseguidas tentativas de novela surrealista em qualquer língua, Apenas uma Narrativa. Mas era realmente «surrealismo», pelo menos na completa consciência literária dele? Há que sinceramente pôr reservas, aliás altamente reveladoras da sua complexa personalidade. Porque este livro estilisticamente e estruturalmente revolucionário transbordava de um prazer tradicional que Pedro praticava com as delícias de quem saboreia um manjar que tem tradições lusitanas desde as pompas de prosa de um João de Barros quinhentista: o gosto de explorar os efeitos da língua pelo gosto de usá-la com sumptuosa riqueza e inventiva capacidade, para ficar-se uma pessoa aí mesmo. Não sem funda razão era a obra dedicada a Aquilino Ribeiro, grande escritor que precisamente simbolizava isso, e sempre foi para modernos, para lá das suas ocasiões superiores, a perfeita imagem do que boa prosa e boa ficção não deveriam ser. Todavia, e recuando um pouco, registemos que, em 1940, António Pedro com António DaCosta (que recebia aclamação como promissor pintor de uma renovada Vanguarda) havia realizado uma exposição de pintura, num modesto andar sem os espaços das exposições que davam brado. Mas a gente «moderna» foi toda ver, e alguma dela podia perfeitamente entender que, se eles não eram declaradamente «surrealistas», eram pintores que tinham visto reproduções ou obras dos homens ligados ao movimento surrealista.
E assim chegamos, saltando um pouco, a 1947, quando se dá a formação do grupo surrealista português, sem que eu deseje demorar-me na história incerta dos anos 1942-47, que muitos têm contado cada qual à sua maneira (o que com desculpa da franqueza, considero altamente indigno da categoria deles que não precisariam de recuar-se tanto no tempo, e, além do mais sendo feiamente provinciano, é o oposto do Surrealismo, mesmo que este seja misturado com o chamado e praticado Abjeccionismo que conviria reservar para zurzir apenas a abjecção que de Portugal se apoderou, e é muito mais importante que as abjecções privadas ou públicas de cada um, por mais talento que desbaratem do que realmente têm). Quando o grupo se formou, com António Pedro de galinha dos ovos de ouro para os pintainhos que não eram na verdade da ninhada dele, ninguém me contactou para ser parte de tal coisa, nem eu busquei que o fizessem. Aquilo era realmente uma coisa de gente mais jovem que eu, a que eu não pertencia. Além de que não tinham de facto (embora já tenha sido dito que eu fui membro do Grupo Surrealista …) a mínima intenção de que eu o fosse, com aquelas inconveniências de 1942 e 1946, e o próprio António Pedro, e que a sua memória e sua amizade me perdoem, ressentia muitíssimo a minha atrevida coincidência no tempo, o que nunca impediu as nossas boas relações, e a nossa estreita colaboração em mais de uma iniciativa (como aquelas, de que me orgulho, que contribuíram para renovar o moribundo teatro português e dar aos palcos portugueses de hoje alguns dos seus maiores actores). Em Janeiro deste 1947 foi a exposição modesta mas sensacional (apesar de quanto havia de tremendamente incipiente) do «grupo» mais ou menos em força, porque já as dissidências se realizavam. E em Junho a magna 1ª. Exposição dos Surrealistas. Nesse tempo, eu colaborava na Seara Nova, aonde fazia sobretudo crítica de teatro, e os «seareiros» achavam que eu era um horrendo «comunista» que vigiavam com racionalista dedicação. Eu decidi escrever uma série de artigos sobre a exposição, e foi um bico de obra conseguir convencer aquela gente a deixá-los sair, como depois foi obter da Censura que saíssem tão integralmente quanto possível, uma vez que as Direitas rabiosas faziam griteiro reclamando polícia e o diabo. Mas saíram. E sem vaidade penso que foram do mais sereno, mais atento e mais cúidadosamente observado e escrito por alguém que sabia do que falava, que os «surrealistas» jamais receberam por muitos anos. É claro que estes artigos têm sido suprimidos e ignorados de bibliografias. E na ocasião e depois eu fui alvo de sessões públicas de insulto, com ataques de toda a ordem, etc. E que não se podia, ou o grupo então existente não podia aceitar de mim um generoso e inteligente «reconhecimento» que corresponderia a reconhecerem-me a existência. Um dos cavalos de batalha, se não me engano, era um poema com que os artigos terminavam, Ode ao Surrealismo por Conta Alheia, que considero dos melhores e mais sérios poemas que já escrevi e foi considerado um perverso ataque satírico (vindo depois das páginas que eu publicara … ). Esse poema foi depois incluído em Pedra Filosofal (1950). Todavia, o caso dos artigos era mais complicado. Com toda a seriedade da maioria dos surrealistas (seriedade que um António Maria Lisboa levou às últimas consequências terríveis), o caso é que, para alguns deles, o Surrealismo era na verdade (como de certo modo para António Pedro) uma magnificente piada que permitia uma nova originalidade, sem que a vida se jogasse nisso. E eu dissera (refiro de memória) que o surrealismo não era brincadeira nenhuma, e que as pessoas só tinham nele os seguintes caminhos: acabar em papas como o Breton, em fiéis sacristães do papa como Péret, em chefões políticos como Aragon, em loucos como Artaud, ou em suicidas como Crevel. Ou em poetas sem mais, como aconteceu com Eluard ou René Char, com comunismo ou sem ele. Ora estas não direi previsões, mas realidades perfeitamente visíveis em 1947, sobretudo a quem estivera à beira do suicídio ou da loucura (o que, é claro, não era público nem publicado), não eram exatamente o que aqueles jovens queriam ouvir. E sempre o compreendi. Menos, devo dizer, o feroz antagonismo de um Cesariny de Vasconcelos, que sempre – jamais provocado – me pareceu a coisa mais inconcebível do mundo. Porque, por pequeno, reles e mesquinho que Portugal seja, creio que cabemos perfeitamente lá todos, e tanto mais quanto eu, há tantos anos, nem sequer vivo lá regularmente, e não faço competência a ninguém nos cafés que já nos anos 50 não tinha tempo para frequentar. Isso de ter aflições com sombras não é próprio de quem não é dos que não projectam sombra, como a personagem do conto famoso do Chamisso, romântico alemão (e bastante «surrealista», por aquele critério do Breton que consistia em proclamar surrealista, desde a fundação do universo, o último sujeito que ele por acaso lera, naquela tão irremediavelmente tão francesa maneira de descobrir a pólvora a toda a hora, com as pólvoras dos outros), personagem que vendera a sombra ao demónio, e depois se viu em chatices medonhas.
A terminar estas notas, registemos ainda algumas significativas efemérides editoriais, críticas ou semelhantes, do presente autor, relacionadas com o Surrealismo e os seus aderentes directos ou distanciados. Em 1944, naquele intervalo de 1942-47, em que haviam aparecido Perseguição e Coroa da Terra, publiquei eu, no jornal O Globo que o Casais Monteiro fazia com ajuda minha, como órgão muito perseguido por polícia e censura, e que estava ao serviço dos chamados Aliados e sobretudo da Resistência Francesa, uma página que há muito eu desejava fazer algures, e não havia naqueles anos sinistros algures aonde o fizesse, e era uma apresentação do Surrealismo, com traduções de diversas figuras do movimento originário. A página fez-se, e as traduções publicadas eram de textos de Breton, Eluard, Péret, Georges Rugnet (as quais muito em breve espero que possam ser lidas na ‘minha colectânea de traduções de poetas deste século, Poesia do Século XX, no prelo há anos). Algures creio ter contado como Casais brigou amigavelmente comigo acerca do título da página e da tradução da palavra, por achar que surrealismo era uma coisa bárbara que ele só deixou que saísse sobrerealismo; e, se havia nele simpatia ou condescendente aceitação da minha mania, posso afoitamente dizer que não havia pelo «surrealismo», nele, mais interesse e curiosidade do que ele tinha por tudo, para estar ao par, como esteve da crítica e criação deste mundo e do outro até à morte. Assim, naqueles anos, e sem que necessário seja sequer recordar os livros que publiquei, há que reconhecer que o Surrealismo foi publicado em Lisboa. Mas, valha a ‘verdade, quem poderia tê-lo lido? O jornal, em sua difusão, era perseguido pelos poderes públicos do Salazarismo, empenhados em não desagradar à Alemanha Nazi que, essa sim, publicava com luxo, e cópia de ilustre colaboração católica e das vizinhanças do velho nacionalismo literário rançoso de banha de cobra (foi, creio, por esse tempo, que um verrinoso criaturo que era um dos grandes eruditos autênticos do tempo, sem cujos estudos ainda hoje se não pode passar, Alfredo Pimenta, que começara anarquista e um dos mais curiosos e audaciosos poetas «decadentes» na viragem do século, inventou aquela famosa palavra que pela sequência sucessiva até parecia alemão, e que simboliza acertadamente as confusões mentais que fizeram nacionalistas respeitáveis, católicos fanáticos, etc., aceitar as ideologias nazis, não só em Portugal, mas por toda a parte e na própria Alemanha: tudo era efeito e resultado de uma magna conspiração muito complicada que metia tudo no mesmo saco, na mais incrível das misturadas – o «anarco-sindicalismo, social-comunista, demo-liberal, judeo-maçónico» …); o jornal era pobre de fundos que nunca chegavam ou não chegavam mais que escassamente, e não tinha força para segurar-se e distribuir-se decentemente; e não gozava das protecções e difusões de certa extrema- esquerda que, se convidada a colaborar e participar, o boicotava bastante, porque queria em verdade fazé-lo, e isto não ajudava também à difusão de um periódico, aonde, para mais, a literatura ocupava um lugar necessariamente de favor. Os literatos ou anti-literatos, ou não leram, ou não fizeram caso de tais maluqueiras metafóricas, ou sendo os futuros surrealistas, estavam quase todos ainda a mudar adolescentemente de pele, largando o neo-realismo em que alguns haviam andado envolvidos, e em busca de outra pele que ainda lhes não aparecera, além de, como fica dito, não terem ainda idade ou ambiente para notarem aquela perdida página. Claro que mais tarde, ao historiarem-se, não podiam de modo algum, nem os seus fiéis cronistas, referir tão insignificante coisa.
Quando, em 1951, e em 1952-53, o surrealismo era obras individuais e algumas brigas públicas entre os vários autores, e outros «grupos» com diversos fitos se haviam entretanto formado, foi que, por iniciativa minha, reapareceram os Cadernos de Poesia de 1940-42. Aos fundadores que me haviam acolhido e publicado naquele tempo, e a mim mesmo, veio juntar-se um grande amigo que havia sido um dos surrealistas da primeira hora, José-Augusto França. Nessa reaparição, o critério antológico da 1.ª série dera lugar ao que já havia sido o plano de uma 2.ª que nos anos 40.não chegara a fazer-se, e a nossa preocupação era apresentar livros (ainda que «cadernos» apenas) de novos autores que nos pareciam destacar-se seriamente, ou substanciais selecções de outros em «cadernos» colectivos. Assim foi que Alexandre O’Neill publicou o seu primeiro livro de poemas, Tempo de Fantasmas (1951), aonde estavam alguns dos seus melhores versos de sempre, e que Fernando Lemos deu à estampa o seu admirável Teclado Universal, cujo valor e significado ainda não foi devidamente reconhecido a quem é um dos grandes artistas plásticos portugueses. E, com perdão de relembrar uma história esquecida, ou ignorada, Mário Cesariny de Vasconcelos não teve publicação substancial nos Cadernos, porque, e nunca soube nem quis saber porquê, estando ela já composta na tipografia, ele mesmo lá foi, se não estou em erro, destruir a composição.
Nos fins dos anos 50, ganhei uma pequena mas demorada batalha com a Portugália Editora, e que era a proposta de que, para actualizar as séries das antológicas Líricas Portuguesas que tão inestimáveis serviços prestaram (a Primeira, devida a José Régio, e a Segunda, a João Cabral do Nascimento que havia sido um dos iniciadores da ideia dos Cadernos de Poesia, dos quais, por mais velho, recusou sempre directorialmente fazer parte como nós insistíamos – e ambas criticadas ao tempo pelo autor destas linhas, c.f. o recentíssimo volume de ensaios, Régio, Casais, a «presença» e outros afins, Porto, 1977), se organizasse uma Terceira Série, na qual se incluíssem alguns poetas que não haviam entrado na Segunda e suas reedições, e que trouxesse a poesia portuguesa desde o Casais com que terminava essa Segunda até vinte anos depois (o que era altamente razoável como limite, já que, saído o livro, teriam cerca de trinta anos os mais jovens dos incluídos). Não cabe aqui a história tragi-cómica do que foi a preparação dessa antologia, com meio-mundo a recomendar-me poetas, dezenas de poetas invadindo-me de livros que jamais me haviam remetido em reconhecimento da minha existência, e numerosas pressões directas ou indirectas, para que eu não incluisse, fulano ou cicrano, sob pena de o Snr. Beltrano se recusar ofendido. Cheguei a receber uma solene embaixada política que protestava contra o facto de constar que eu não ia incluir certo poeta e escritor que· sempre me mereceu respeito e estima (e cujo papel reconheci depois, incluindo-o com muitos mais, na reedição revista e ampliada que é outro dos dramas editoriais da minha vida, com o 1.º o volume aparecido com atraso incrível, e o 2.º ainda por sair anos passados), que eu devia incluir, porque ele já tinha sido preso três vezes! Também não cabe aqui a pequena história dos equívocos ou malignidades de que a antologia foi vítima por parte de críticos que não tinham a mínima intenção de leras minuciosas e completas explicações dadas no prefácio. O caso é que, desde os fins de 1958, quando o livro saiu, ele, como nunca imaginei, tem servido para colar rótulos a toda a gente, estritamente copiados das minhas notas bio-críticas aos poetas incluídos. Claro que, entre os poetas seleccionados, os surrealistas ocupavam, como deveria ser, lugar de relevo (embora, como sucedeu com outros «grupos», a antologia não fosse «deles», e não tivesse portanto de inserir todos os amigos e simpatizantes dos principais). Assim foi que António Pedro teve largo espaço na Primeira Parte complementar da dita Segunda Série em que não entrara antes, e que, na antologia propriamente dita, figuram com relevo representativo e crítico Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O’Neill, Fernando Lemos, e António Maria Lisboa. Creio não pecar por vaidade se disser que, fora dos círculos afectos ao surrealismo que prosseguia mais ou menos em volta de Cesariny, eu terei sido a primeira criatura não-surrealista a proclamar a grandeza de António Maria Lisboa, há vinte anos. E, após tantos anos, não será indiscreto recordar que, ao tempo de procurar obter eu dos autores os dados biográficos e outras informações que alguns negaciavam ou negociavam, Mário Cesariny me deu a honra de, acompanhado de Goulart Nogueira, penetrar no antro do, como se dizia em ataques, o «Velho do Reste1o» (ou piores palavras em vez de «velho», . quando eu não cumprira os quarenta anos), creio que para comunicar-me os dados, e reiterar-me a sua aceitação de entrar na antologia aonde era mais do que óbvio que ele tinha de estar. Noite educadamente cordial.
Em 1969, em traduções de Pedro Tamen, a Morais Editores preparava-se para publicar uma muito completa colectânea dos escritos doutrinais de André Breton, Manifestos do Surrealismo, e da obra poética de Lautréamont. E escreveram-me a solicitar prefácios para ambas as edições que nesse mesmo ano apareceram. Procurei, o mais objectiva e imparcialmente possível, segundo as mais actualizadas informações e obras correlatas, situar Breton e os seus manifestos, bem como a personalidade e a obra do genial criador de ·Maldoror. Foi uma tempestade num copo de água: lá estava eu, incorrigivelmente, uma vez mais ao longo de vinte e sete anos, a imiscuir-me na propriedade privada dos surrealistas. Parecia que as reservas que eu fazia e hoje geralmente se fazem a Breton (para lá do papel decisivo que ninguém lhe nega) eram assim como que ataques ao próprio surrealismo, e à sacrossanta inviolabilidade física e intelectual dos seus sacerdotes titulares: do que não se encontra um traço naquele prefácio meu aos «manifestos», aliás, permitam-me que diga, das coisas seriamente sucintas que têm sido ditas sobre o assunto, não só em francês, mas noutras línguas que não esta eterna servidão do intelectual português, por muito que a gente ame (e eu amo) a cultura francesa, porque a conhece, e não porque leu as últimas macacadas importadas de Paris que nem sequer representam de verdade a França, mas hoje uma data de gurus universitários, todos a darem-se ares de iluminados para os centenares de alunos que vão dormir a sua marijuana ouvindo-lhes os sermões psicanalíticos, estruturalistas, etc.
Naqueles anos 60, andei eu às voltas com preparar a reedição já referida das Líricas Portuguesas – 3.ª série, e à distância, por interpostos amigos, contactei necessariamente surrealistas para as actualizações necessárias. Não é minha culpa que, pela idade, tenham todos ficado no 2.º volume que nunca mais sai.
Só voltei a reincidir em assunto surrealista, creio eu, naquele estudo que referi no início destas Notas, publicado em 1974. Não recordo se suscitou ecos. Mas, apesar de eu acentuar as qualidades de penetração e informação actualizada do Agostinho de Campos, o surrealismo lusitano (falo genericamente) assaltou-me de um sector inesperado, os respeitáveis descendentes do ilustre professor. Julgo que estavam mesmo dispostos a levar-me a tribunal por difamação e outras coisas medonhas, e eu, não por isso, mas por me dar pena uma reacção tão despropositada, parece-me que cheguei a escrever uma «resposta» emoliente. Pouco importa. Mas que tal acção não tenha ido por diante, julgo que é, por mero acaso, o único favor que devo às chamadas Revoluções de Abril.
Quando principiei, ao correr da máquina, e mal parando para verificar alguma coisa neste ou naquele volume, não era intenção minha escrever tanto, e muito menos dar-me a recordar incidentes que não contam, porque o que conta são as obras que ficam. Mas a «petite histoire» tem o seu interesse, tratando-se de uma pessoa tão suprimida ou difamada como eu tenho sido. E creio ter referido tudo, sem que alguém possa ou deva sentir-se picado ou ofendido, e serenamente, desapegadamente, sem azedume algum. Há um par de anos que me habituei a viver em estado de «licença graciosa», como se dizia no serviço público português, o que me trouxe um grande desapego que não é menos desejo de estar presente e activo, como sempre estive. E, agora, tendo escapado a um ataque de coração, segundo a intensidade e violência do qual eu tecnicamente e respeitosamente deveria ter morrido como toda a gente que sofre tal tremor de terra e de carne, sucede que estou empenhado em lutar – e espero que vencer ou protelar – com um mal mais terrível e insidioso que os médicos deixaram que impunemente se instalasse em mim. Jamais, no orgulho e dignidade (alguns amigos chamam-lhes «estóicos», e não me soa mal) que sempre foram os meus, e em caso algum, solicitei a piedade de alguém, sim o respeito a que sempre tive direito e que, por isso mesmo, me foi e é negado tantas vezes. O caso é que estou infinitamente ocupado em terminar o que anos de administração universitária e numerosas actividades pelo mundo adiante me impediram de desenvolver, e tenho mais que fazer. E, se as pessoas não puderam na sua falta de humanidade deixar-me puramente em paz (quem jamais foi deixado em paz em Portugal, a menos que notório, admirado e respeitado filho da puta?), que ao menos tenham a esperança e a paciência de contarem que eu possa ser vencido e não durar muito. De qualquer modo, e isto vai dirigido expressamente aos surrealistas e aos seus amigos directos e dilectos, lembremo-nos de que, estando uns aí e eu por exemplo aqui, estamos todos no mesmo barco, Portugal, que jamais nenhum de nós desejou imaginar que fosse mais surrealista (com a mais brutal e analfabeta violência política) que o Surrealismo que transformou as letras e as artes. Pelo que os que sabemos alguma coisa de surrealismo (concedam-me isso …), estamos na verdade mais unidos que nunca, na luta contra esse surrealismo de borra, que surgiu, misturado às esperanças de um povo, das cIoacas de Portugal. Seja surrealista o país, se é esse o seu espantoso destino secular – mas não o sejam os políticos e os seus escribas, insultando (se não se reformam e não actuam) não só uma nação cujos destinos têm nas mãos, mas o surrealismo intrínseco dessa nação, e o surrealismo particular de Breton, de Mário Cesariny, ou de quem quer que seja. E que a todos nós, um dia, a terra nos seja leve.
Santa Barbara, 16 de Abril de 1978
In: Estudos de Literatura Portuguesa -III, Lisboa, Ed. 70, 1988 p. 245-260