Verbete “Jorge de Sena” no Dicionário de Historiadores Portugueses

Diante de obra tão extensa e multifacetada como a de Jorge de Sena, um dos aspectos que mais raramente vem à baila é a sua atuação como historiador da cultura e a sua relação com a historiografia, sobretudo a literária. Neste verbete, disponível no site da Biblioteca Nacional de Portugal, Paulo Rodrigues Ferreira expõe as diversas relações que Sena manteve com os estudos históricos ao longo da sua vida, particularmente a sua preocupação com a metodologia científica e o seu foco na reflexão acerca da cultura portuguesa.

Paulo Rodrigues Ferreira

Jorge de Sena teve uma vida marcada por experiências profissionais que ajudam a compreender uma produção intelectual eclética pautada pela busca do conhecimento nas suas diversas perspectivas. Para reflectirmos sobre a relação do autor com a história e com a historiografia, é necessário enfatizar os sentidos sociais e humanistas dos seus escritos. Ainda que nunca tenha abdicado da independência ideológica, Sena recorrentemente se mostrou motivado por preocupações político-sociais próximas do marxismo. O poeta fez parte de uma geração que se impôs no universo literário nos anos 50 e foi marcada por valores baseados no humanismo e na noção do escritor comprometido com causas sociais. É sintomático que, no ensaio “Marx e o Capital”, preste justiça ao pensamento marxista, sublinhando a necessidade de encarar o conhecimento como algo não meramente teórico que contribui para transformar a sociedade (Maquiavel e Outros…). Uma das suas preocupações é a procura de modos de superar a separação entre o pensamento e a acção, o conhecer e o fazer, o pensar e o sentir, a cultura e a técnica (Lourenço, O Essencial Sobre…,p.32). No fundo, é a partir da percepção desta dialéctica entre o conhecer e o agir que detectamos influências marxistas no pensamento de alguém que não vislumbrava antagonismos entre a criação artística e o estar no mundo.

A revisitação de alguns elementos biográficos de Jorge de Sena permite constatar o seu apego à liberdade, nas suas dimensões pessoais e colectivas. Filho de Augusto de Sena, comandante da marinha mercante, e de Maria da Luz Telles Grilo de Sena, nasceu em Lisboa, no seio de uma família burguesa de linhagem aristocrática. Depois de frequentar o Liceu Camões, aos 17 anos, seguindo a vontade paterna, ingressou na Escola Naval para seguir a carreira da Marinha de Guerra. Porém, a Guerra Civil Espanhola e a inadaptação à disciplina militar foram determinantes para que abandonasse a Armada (Idem, p.18). Em 1938, matriculou-se na Faculdade de Engenharia do Porto, instituição na qual, cerca de seis anos mais tarde, concluiria a licenciatura em Engenharia Civil. Embora afastado de partidos políticos, desde jovem que Sena se envolveu em movimentos de oposição ao salazarismo. Ao dar expressão pública a visões políticas que contrariavam o funcionamento antidemocrático do Estado Novo, passou a ser alvo da fiscalização da censura e de pressões que culminariam no exílio. Em Outubro de 1945, um grupo de democratas, no qual Sena se incluía, reuniu-se no Centro Escolar Republicano Almirante Reis com a intenção de pedir ao governo o adiamento das eleições, a extinção da PIDE e o cancelamento dos serviços de censura. Daqui surgiu o Movimento de Unidade Democrática (MUD), que teria existência legal até 1948. Entre 1948 e 1959, data em que se exilou no Brasil, Sena exerceu as funções de engenheiro da Junta Autónoma de Estradas. Durante esse período, conheceu Portugal “como poucos o conhecerão, porque poucos terão usado de uma tal oportunidade com as preocupações de vê-lo culturalmente” (“Falando com Jorge de Sena…”, p.415). Também ao longo dos anos em que trabalhou como funcionário público, traduziu obras que, de certa maneira, propagavam valores igualitários e libertários, tais como Fiesta (1954), de Hemingway, Um rapaz da Georgia (1954), de Caldwell, ou mesmo A Condição Humana (1958), de Malraux. Sena colaborou igualmente em relevantes periódicos da época, como A Presença, o Unicórnio, a Seara Nova, a Vértice ou os Cadernos de Poesia, responsáveis pela publicação de Perseguição (1942),o seu primeiro livro de poemas. As eleições presidenciais de 1958, que desencadearam uma onda contestatária em Portugal, assim como o seu envolvimento na Revolta da Sé, tentativa de golpe de Estado prevista para Março de 1959, contribuíram para que Jorge de Sena abandonasse o país (Vasques, Jorge de Sena, Uma Ideia de…, pp. 231-232).

Quase com quarenta anos e sem perspectivas de morar num Portugal livre, que lhe oferecesse a carreira de docente com que sonhava, Sena aproveitou o convite do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, organizado pela Universidade da Bahia, para se exilar voluntariamente no Brasil. Pouco depois, aceitou o cargo de professor de Teoria da Literatura na recém-fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, em São Paulo. Do outro lado do Atlântico, continuou a associar-se a movimentos oposicionistas. Também exilado no Brasil, Humberto Delgado participou desses grupos oposicionistas a partir do estrangeiro, tendo reestruturado o Movimento Nacional Independente, que publicava o jornal Portugal Livre. Para além deste movimento, existia o Centro Republicano Português, no qual se integrava o Movimento de Unidade Democrático, dinamizado pelo Comité de Intelectuais Portugueses. Foi a partir da ligação a este órgão que Jorge de Sena iniciou a colaboração com o Portugal Democrático, sedeado em São Paulo. Neste periódico, de cuja redação foi membro durante cerca de três anos, Sena publicou artigos que chamaram a atenção da PIDE. Entre esses textos consta a declaração de apoio ao MUD assinada por oposicionistas portugueses em Outubro de 1961, a qual originou um pedido de captura emitido pelo governo (1962) e a proibição de entrada de Sena em território português- que permaneceria em vigor até 1968 (Santos, “Da arte de ser multiplamente…”, p.66).

Paralelamente ao labor reflexivo de pendor cívico e político, Jorge de Sena investiu na vida académica. Em 1962, terminou Uma Canção de Camões, primeira tese de doutoramento e livre-docência, a qual se viu impedido de apresentar na Universidade de Belo Horizonte. Em 1964, um ano após se tornar cidadão brasileiro, obteve o título de Doutor em Letras e de Docente Livre de Literatura Portuguesa, com uma segunda tese intitulada Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular. Além de situar o poeta no Maneirismo e de privilegiar tanto a sua obra lírica quanto o seu poema épico, nestes e noutros estudos Sena interpretou Camões numa perspectiva histórica, leu-o como se fosse seu contemporâneo, humanizou-o nas suas fraquezas de homem comum, e assim contrariou uma tendência académica para ver o autor de Os Lusíadas a partir do filtro patriótico. Conquanto fosse já um renomado crítico e poeta em Portugal, tendo publicado títulos dos quais destacamos Pedra Filosofal (1950) ou o poema em vinte e um sonetos As Evidências (1955), a transformação que a sua vida tomou com a ida para o Brasil permitiu-lhe aprofundar a sua faceta de ensaísta e concedeu-lhe o tempo e a disponibilidade mental que não encontrara em Portugal para levar a cabo obras que renovaram os estudos camonianos. Deste período no Brasil surgiria também Estudos de cultura e literatura brasileira, livro publicado postumamente (1988) no qual o autor trata, entre outros temas, das relações culturais luso-brasileiras, na sua opinião próximas do “desinteresse mútuo” (Estudos de cultura…, p. 57). Em 1965, o escritor mudou-se para os Estados Unidos da América para ensinar na Universidade do Wisconsin, onde foi nomeado catedrático do Departamento de Espanhol e Português (1967). Entre Setembro de 1968 e Fevereiro de 1969, regressou à Europa para uma série de conferências e, após longo afastamento, visitou Portugal. Em 1970, transferiu-se para a Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, como catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira e de Literatura Comparada, e foi nesta instituição que trabalhou até falecer.

Se bem que não seja historiador de formação, Jorge de Sena produziu obra literária e crítica em que a dimensão histórica está bem presente e que, por outro lado, merece ser analisada a partir de uma óptica historiográfica. Desde logo, a sua vida é em si mesma relevante para o entendimento da cultura portuguesa contemporânea e da história da oposição ao Estado Novo. Além disso, considerando os seus escritos na globalidade, não é exagero afirmar que neles existem elementos, ideias e conceitos fundamentais para a construção de visões de conjunto da produção cultural portuguesa, em momentos historicamente bem precisos. Sena escreveu abundante prosa sobre os mais diversos temas e autores, desde a história, a cultura e a literatura luso-brasileira, sem olvidar a literatura inglesa e norte-americana. A sua obra aglomera conferências, artigos, comunicações, recensões e até meros verbetes. Igualmente de destacar são as compilações de correspondência com figuras cimeiras da intelectualidade portuguesa e os volumes de ensaios publicados numa fase tardia da sua vida (ou organizados postumamente por Mécia de Sena, sua esposa). Acerca de um desses volumes, Estudos de História e de Cultura, constituído deensaios publicados em fascículos a partir de 1963 na revista Ocidente e reunidos em volume em 1967, podemos afirmar que se trata de obra interdisciplinar que encontra na história um veículo para atingir algo mais abrangente e próximo dos interesses do autor, a cultura portuguesa nas suas múltiplas matizes. Entre os documentos dignos de menção constam o ensaio genealógico “A família de Afonso Henriques”, o estudo “O vitorianismo de dona Filipa de Lancaster”, o artigo “Os painéis ditos de ‘Nuno Gonçalves’”, no qual discorre sobre o quinhentismo ibérico e os folhetins de textos críticos que os ditos painéis geraram e, talvez o texto mais importante, “Inês de Castro ou literatura portuguesa de Fernão Lopes a Camões, com uma análise estrutural da Castro de Ferreira, um longo estudo com várias abordagens e aspectos […]”. Dificilmente alguém afirmaria que os ensaios deste livro são produto de uma mente de puro historiador, uma vez que o que transparece da sua leitura é a certeza de estarmos diante de um espírito para quem a cultura era “livre discussão e esclarecimento e conquista pessoal da liberdade de reflexão e expressão” (O Essencial Sobre…,p.30). Uma vez mais fica a sensação de que, da literatura portuguesa e europeia ao teatro do século XVI, do cinema à música, das ciências à filosofia, para Jorge de Sena não existe assunto que lhe seja alheio. Se não é mentira que na sua obra ensaística reside uma forte componente histórica – importa lembrar textos de evocação histórica como “Portugal e a sua história” e “Jaime Cortesão, o historiador” (Rever Portugal…) –, o mais certo seria acrescentar que os seus estudos são de história literária e cultural, e que se focam, na sua maioria, na produção livresca, nas influências de autores estrangeiros em Portugal em diferentes séculos, e até em análises literárias centradas no domínio da teoria literária. Ainda assim, quando pensamos, por exemplo, nos volumes da antologia Líricas Portuguesas (1958), não deixamos de reparar na preocupação do autor com a contextualização histórica da época (1909-1929), com a classificação histórico-literária e com o esboço sociológico dos poetas seleccionados, seguindo variáveis como a sua formação académica ou a origem geográfica.

Coincidindo com linha de pensamento que vê no presente português um período de estagnação, atravessado por crises políticas e económicas, que contrasta com o passado dos Descobrimentos, Jorge de Sena revelou-se céptico em relação à evolução da história contemporânea portuguesa. Dotado de espírito cosmopolita, normal em alguém que se adaptou a diferentes países e formas de viver, questiona amiúde a incapacidade portuguesa de tirar partido do legado cultural e linguístico deixado por esse tempo de glória imperial (Alves, “Permanente lucidez crítica”, p.22). Em parte associados à decadência e à ausência de soluções para ultrapassar o marasmo, problemas como o fechamento mental, o provincianismo ou a falta de audácia – características “psicológicas” traçadas também por autores como Teixeira de Pascoaes –, estimulam-no a escrever artigos, ensaios e poemas nos quais sobressai a frustração em relação à situação portuguesa. Considerando, porém, que as críticas de Jorge de Sena às lusitanas maneiras de encarar a vida sobrevêm, em parte, da sua luta pessoal pela consagração artística e académica, é acertado observar que não podemos ler certos textos, por exemplo sobre a “mediocridade” da classe artística nacional, sem termos em conta o seu caráter subjectivo, oposto aos critérios de rigor que os trabalhos académicos exigem. Existe abundante documentação versando sobre as tribulações por que passou o poeta até ser respeitado pelos seus congéneres. Sobre a sua relação com a intelectualidade portuguesa notou Eugénio Lisboa que, de maneira a alcançar a consagração artística, Sena combateu as “clássicas perfídias dos menos talentosos que são quase sempre também os mais mesquinhos” (Lisboa, “Breve Perfil…”, p. 29). Também enfatizando esta compulsão pela denúncia da mediania, afirmou Gaspar Simões que n’O Reino da Estupidez (1961) encontramos a “pátria (…) tão castigadamente estúpida que ainda continua a ser estúpida mesmo depois de ter adoptado por lema a inteligência” (Simões, “Jorge de Sena, O Estrangeirado”, p. 76).

Os volumes d’O Reino da Estupidez contêm muitas das irritações que afligiram Sena. Uma ideia que perpassa o livro é a de que, longe de procurar “adquirir conhecimento”, a intelectualidade portuguesa expõe certezas e vive virada para dentro (O Reino da Estupidez-I, p. 59). É neste registo corrosivo que em copiosos ensaios o poeta insinua que as letras portuguesas foram tomadas por gente inculta, corrompida, que não faz justiça aos nomes do passado. A título de exemplo, a ironia serve-lhe para anunciar que, depois do desaparecimento de escribas “miseráveis” como Camões ou Sá de Miranda, irromperam em solo nacional criadores e críticos literários informados que recorrem a “métodos frutíferos”, como o “silenciosismo”, o “alusionismo”, a “cobardiometria”, a “infâmio-estílistica”, o “gato-por-lebrismo” ou o “apropriacionismo” (Idem, p.70). Acerca do silenciosismo, explica que consiste em nunca fazer “qualquer referência, nem sequer negativa, ao nome ou à obra de qualquer indivíduo cuja atividade seja manifestamente contrária àquela harmoniosa inversão de valores em que indubitavelmente assentam a paz e a glória da República das Letras” (Idem, p. 71). Sabendo, a partir das suas cartas, que o escritor se sentia vítima do desprezo e do silêncio dos seus compatriotas, não espanta que estes textos pareçam tão autobiográficos. Analisando os seus artigos e, principalmente, as cartas enviadas a amigos como José-Augusto França, Sophia de Mello Breyner ou Vergílio Ferreira, verificamos que Sena vivia com a sensação de que “poucos escritores portugueses de relativo mérito deverão tão pouco à crítica como eu” (“Breve Perfil…”, p.13). Da leitura das cartas sobressai a imagem de um exilado que se sente excluído do país amado. Em carta enviada a José-Augusto França, de 3 de Novembro de 1960, queixava-se Sena do silêncio de amigos e editores, dizendo que não lhe recenseavam os livros e que não recebia a atenção merecida (Correspondência Jorge de Sena…, p. 178). Em inúmeras cartas ressalta este tom amargo. Ao Padre Manuel Antunes confidenciaria que a cobardia dos portugueses o agoniava, a cobardia de não lhe atribuírem prémios literários, de o obrigarem a ter manuscritos morrendo na secretária dos editores (Antunes, “Sena, Jorge e Mécia…”, p. 175). Então, ao lermos afirmações como a de que os portugueses não reconhecem os seus grandes homens e que o país é habitado por medíocres e ingratos (O Reino da Estupidez-II, pp.163-166), não evitamos pensar que Sena se está a incluir a si mesmo entre os grandes homens.

Quando nos propomos a analisar Jorge de Sena do ponto de vista historiográfico, sabendo que o autor não escreveu trabalhos centrados nesse campo científico, temos de perceber em que proporções a sua vida e obra contribuem para a interpretação da história portuguesa. Desse ponto de vista, livros e cartas como as citadas levam-nos a constatar que, independentemente do género literário ou do tema tratado, o pano de fundo da obra seniana é a análise das maneiras de ser do povo que amou e odiou. Contudo, pelo que referimos anteriormente, fica claro que, apesar do fascínio pelo destino português num contexto cultural, Jorge de Sena evita cair em patriotismos ou caracterizações psicológicas elogiosas. Poderíamos até afirmar que a sua obra é uma “procurada atenção contra os mitos culturais estabelecidos” (O Essencial Sobre…, p. 58). É precisamente essa atenção contra os mitos estabelecidos que encontramos em O Indesejado (António, Rei) (1951), tragédia histórica em verso na qual sobressai a negação do misticismo sebastianista por via da caracterização do agónico destino de D. António, o Prior do Crato (1531-1595), filho do infante D. Luís e candidato à sucessão de D. Sebastião. Ao apresentar D. António como figura indecisa e receosa que em vão busca o reconhecimento dos seus compatriotas para salvar o reino da dependência dos Filipes, Sena faz-nos crer que, despojada de engrandecimentos patrióticos, esta incursão histórica não destoa daquele registo pessimista com que noutros escritos definiu o panorama cultural português. Afinal, sendo um homem cujo destino é definido pela condição de ser bastardo e temeroso, D. António não pode ascender a herói.

Paralelamente à produção teatral, a obra ficcional de Jorge de Sena permite-nos alcançar uma dimensão mais aprofundada das suas perspectivas históricas. Referiu-se acima o apego do poeta a valores igualitários e democráticos, e a uma quase existencialista obsessão pela liberdade. Dado que este vocábulo tem vários sentidos, e não se restringe à liberdade individual, mas à capacidade de cada sociedade para viver de acordo com as suas potencialidades e de procurar abundância material e equidade, talvez seja apropriado salientar que a preocupação de Sena com a liberdade está associada à vontade de estudar o homem na sua essência. No fundo, se quiséssemos converter a frase anterior em questões, que significa estar no mundo? Qual a missão do homem para consigo mesmo e para com os outros? O conto “Defesa e Justificação de um Ex-Criminoso de Guerra”, incluído em Novas Andanças do Demónio (1966), é importante para apreender o pensamento de Jorge de Sena. Embora a inspiração seja o julgamento de Adolf Eichmann, neste conto não encontramos menções directas aos crimes do oficial nazi ou a massacres em campos de concentração. O que o escritor nos serve são as suas reflexões sobre a condição humana. Sena segue uma linha de pensamento explorada em “Maquiavel e O Príncipe” para defender que, arredado da proteção divina e sendo a única medida de si próprio, para o bem e para o mal, o homem está entregue a si mesmo e é responsável por todas assuas acções (Maquiavel e Outros Estudos, p. 48). Porém, este ex-criminoso de guerra não segue qualquer ideal humanista, antes se baseia na “ética germânica”, na convicção de que, com esforço e planeamento, certos povos conseguirão sobreviver e conquistar civilizações rivais. Por esse motivo, a mentalidade nazi e as crenças no determinismo biológico e na superioridade racial contrariam essa fé no homem que nos responsabiliza pelo que fazemos (Monteiro, “Jorge de Sena’s “Eichmann Story”, p. 13). Mais do que inspirar-nos a sentir repugnância pelo nazismo, Sena procura entender a mente de alguém que, como observou a filósofa Hannah Arendt em Eichmann in Jerusalem (1963), acreditava na lei superior do Führer. O que temos então neste conto é uma perspectiva de liberdade que contrasta com a do próprio autor, que era, como afirmámos, uma liberdade democrática, de responsabilização total dos indivíduos no tocante à intromissão no espaço alheio (O Reino da Estupidez-I, p.134).

Num registo completamente diferente, Sinais de Fogo, projecto idealizado como o primeiro volume de um grande ciclo romanesco mas publicado postumamente (1979), trata do tema da Guerra Civil Espanhola e das formas como em Portugal se encarou a eclosão deste conflito. Tendo como protagonista Jorge, jovem que relata a sua adolescência em Lisboa e depois na Figueira da Foz, esta narrativa tem enorme relevância histórica, dado que nos permite ter um conhecimento aprofundado do que foi a vida estival da Figueira da Foz, localidade ligada à presença de espanhóis, os quais em 1936 eram mais refugiados do que veraneantes. Seria, no entanto, simplista dizer que este livro trata apenas das reações à eclosão do referido conflito, porque na verdade Sinais de Fogo tem diversos sentidos e retrata exemplarmente as pessoas, as mentalidades e os comportamentos da época. Trata-se, igualmente, de obra na qual Jorge de Sena, profundo conhecedor da vida espanhola – escreveu mais de quarenta artigos e ensaios sobre a literatura e cultura do país vizinho – explora estereótipos sobre os espanhóis desde há séculos disseminados em Portugal. Um dos mitos presentes no romance é o de que, contrariamente aos portugueses, melancólicos e soturnos, os espanhóis são barulhentos e festivos, esbracejam, tratam-se por “dons” e fazem-se notar onde quer que estejam (Sinais de Fogo, p. 78). Reproduzindo as percepções populares e o anedotário nacional sobre o povo do país vizinho, o autor pinta um cenário habitado por prostitutas, bailarinas e outras sensuais mulheres espanholas (Gago, “Sinais de Espanha…”, p.278). Somos levados a acreditar que Sena quis neste romance entrar no quadro mental daqueles anos da sua juventude e oferecer ao leitor uma imagem completa da sociedade. Portanto, com realistas descrições da Guerra Civil, da vida em ditadura e do medo sentido em Portugal, e até com a exploração dos “mitos” em torno do povo espanhol, este romance ganha relevância para todos quantos se sintam impelidos a investigar sobre temas ligados à Guerra Civil Espanhola, especialmente sobre a sua relação com Portugal.

Se temos dificuldade em rotular Jorge de Sena somente como poeta, ficcionista ou crítico, o motivo tem que ver com o facto de ter atingido a excelência em diferentes áreas. Conquanto esta seja razão suficiente para que o autor mereça ser lido por estudiosos ligados à história, ainda não dissemos tudo acerca do “Jorge de Sena historiador”. Da leitura de certos ensaios decorre a percepção de que, mais do que uma ferramenta que lhe serve para contextualizar trabalhos artísticos, a história emerge na sua obra como parte de uma metodologia crítica multidisciplinar que lhe permite fundamentar teses, alargar a sua compreensão e questionar conceitos (“clássico”, “simbolista”, “barroco” ou “naturalista”) e tradicionais periodizações. Afinal, Sena historiou o que de mais relevante se publicou em Portugal no que à literatura respeita, tanto em tempos antigos como modernos, e bastaria atentar nas suas análises sobre o Modernismo, o Romantismo ou o Renascimento, em textos como “Tentativa de um Panorama Coordenado da Literatura Portuguesa de 1901 a 1950” (Estudos de Literatura Portuguesa-II), ou até nas suas investigações sobre Maquiavel e Marx, para constatarmos que, através da pesquisa histórica, alcançou visões de conjunto e interligou a literatura com os modos de vida de cada época e lugar. Seguindo a premissa de que a literatura portuguesa foi em larga medida uma literatura “oficial”, herdeira de uma mentalidade feudal e oligárquica sobrevinda da Idade Média (Estudos de Literatura Portuguesa – I, p. 11), Sena adentra-se na história literária nacional motivado pela busca de inovadores sentidos de interpretação para temas que a academia portuguesa, no seu entender dada a dogmatismos e avessa ao pensamento crítico, dava como inquestionáveis. Para dar exemplos, sobre o Romantismo, “glorioso cadáver insepulto”, afirma que “defini-lo é como definir o que toda a gente julga que sabe o que são… e correr o risco de (…) nos ser demonstrado que não existe ou que é exactamente o contrário do que havia sido definido” (Idem, p. 83). Não dissociando a obra de arte do meio sócio-político e cultural em que é produzida, Sena reinterpreta tradicionais conceptualizações, e no caso específico do Romantismo defende que este movimento se manifestou tardiamente em Portugal e que, sob muitos aspectos (o “cepticismo sexual” de Garrett que se opõe ao erotismo idealizado do movimento, a ironia e realismo caricatural de Camilo, a “impessoalidade esteticista” de Júlio Diniz, contrária ao subjectivismo romântico, etc.) se assumiu como um Contra-Romantismo. Raciocínio semelhante sustenta acerca do Renascimento do século XVI: quando, após uma fase de modificação das estruturas sócio-culturais, se difunde da Itália para o resto da Europa e chega a Portugal, já não falamos de Renascimento mas de Maneirismo (Idem, p. 100). Para além da redefinição de conceitos e de periodizações históricas, detectamos em ensaios, como aqueles coligidos nos volumes de Estudos de Literatura Portuguesa, uma apetência pela reinterpretação de obras como as de Oliveira Martins, Bernardim Ribeiro, Antero de Quental ou Sá de Miranda a partir dessa luz poliédrica que mergulha no saber histórico com o intuito de apreender novos sentidos e conferir rigor à teoria literária. Em “Sobre Gil Vicente”, refuta perspectivas perfilhadas por António José Saraiva, que havia destacado o carácter progressista e brechtiano de Gil Vicente, e descreve o pensamento do dramaturgo nascido no século XV como “de reacção a todo o espírito moderno” (Idem, p. 32). Com este exemplo reforçamos a tese de que Sena entendia que nenhuma obra de arte poderia ser dissociada do seu tempo, e que, para a absorver nas suas complexidades, era necessário entender as formas de pensar, a cultura, a política e as estruturas sociais que influenciaram a sua produção, em vez de fazer analogias com obras de arte e fenómenos ocorridos no presente. Então, aceitando que a história é indispensável para compreender a arte, não causa estranheza que, em ensaio intitulado “A viagem de Itália”, Sena explique as razões pelas quais as viagens realizadas por Sá de Miranda a Itália, entre 1521 e 1526, contribuíram sobremaneira para a renovação operada no século XVI na literatura portuguesa (Idem, p. 59).

Jorge de Sena não escreveu apenas ensaios de interesse historiográfico. Deu também à estampa textos que, explicando a importância de estudar história quando se escreve sobre literatura, auxiliam na compreensão da sua postura enquanto crítico e historiador da literatura. Num desses textos, assinala que a limitação dos estudos literários aos factores linguísticos, sem uma integração cultural da linguagem, das personalidades e das circunstâncias histórico-biográficas, num aprofundamento filosófico e num exame histórico, não convida o estudioso à pesquisa correlata da sua própria visão do mundo e concepção da história com as implícitas na obra de um autor em estudo (Dialécticas Teóricas, p. 27). Em “Sobre o Perspectivismo Histórico-Literário”, ensaio que é simultaneamente uma apologia da história e uma crítica aos investigadores que se dedicam ao entendimento do presente, ignorando o passado, argumenta que o homem que se confina ao presente e volta as costas ao passado sucumbe às falácias que o passado legou ao presente e, por conseguinte, “provincianamente” acredita que a sua aldeia é o mundo inteiro (Idem, p. 205). Refere ainda que a historiografia literária do século anterior, desprovida de uma visão do passado, abraçou metodologias e critérios evolucionistas e, consequentemente, fixou-se em simplistas periodizações e datou rigidamente movimentos ou escolas literárias muitas vezes contemporâneas umas das outras (Idem, p. 206). Para além da errada periodização e catalogação de autores, diz Sena que essa tal crítica literária destituída de visão histórica persistiu em engrandecer os vultos literários, relegando ao esquecimento artistas de talento, e em integrar autores em diferentes géneros literários, quando esses mesmos autores cultivaram vários géneros. Esta defesa da perspectiva histórico-literária serve-nos, aliás, de pretexto para sintetizar algumas das razões que nos levam a crer que Sena perfilhou convicções que à historiografia são familiares. Em primeiro lugar, acreditava que só no conjunto de todas as suas manifestações poderia uma época ser compreendida. Depois, recusava-se a simplificar o passado, ou a encará-lo como menos complexo do que o presente, e a ver as “escolas” artísticas como individuações separadas. Finalmente, rejeitava que a história ensinasse a viver o presente (Idem, p. 210). Assim, concluímos dizendo que a obra ensaística, poética e ficcional de Jorge de Sena é de enorme pertinência para a historiografia, e que é mais do que é apropriado considerar esta figura maior das letras portuguesas um historiador da literatura e da cultura que deverá ser estudado por todos quantos desejem perceber como a arte, e mais particularmente a literatura, evoluiu (e se relacionou com as conjunturas político-sociais) em Portugal e na Europa ao longo dos séculos.

Bibliografia Activa: O Reino da Estupidez-I, Lisboa, O Tempo e o Modo, 1961; Estudos de História e de Cultura, Lisboa, Revista Ocidente, 1963-1967; Uma Canção de Camões, Lisboa, Portugália, 1966; Dialécticas Teóricas da Literatura, Lisboa, Edições 70, 1973; Maquiavel e Outros Estudos, Porto, Paisagem, 1974; Líricas Portuguesas, Lisboa, Portugália, 1977 (1ª ed. 1958); O Reino da Estupidez-II, Lisboa, Moraes Editores, 1978; Antigas e Novas andanças do demónio, Lisboa, Edições 70, 1978; O indesejado (António, Rei), Porto, Paisagem, 1980 (1ª ed. 1951); Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular, Lisboa, Edições 70, 1980 (1ª ed. 1969); Estudos de Literatura Portuguesa-I, Lisboa, Edições 70, 1981; Estudos de Literatura Portuguesa-II, Lisboa, Edições 70, 1988; Estudos de cultura e literatura brasileira, Lisboa, Edições 70, 1988; Estudos de Literatura Portuguesa–III, Lisboa, Edições 70, 1988; Poesia do século XX (De Thomas Hardy a C. V. Cattaneo), Coimbra, Fora do Texto, 1994 (1ª ed. 1978); Sinais de Fogo, Lisboa, Mil Folhas, 2003 (1ª ed. 1979); Correspondência Jorge de Sena-José Augusto França, Lisboa INCM, 2007; Rever Portugal. Textos políticos e afins, ed. Mécia de Sena e Fazenda Lourenço, Lisboa, Guimarães, 2011; Correspondência 1959-1978 de Jorge de Sena e João Sarmento Pimentel, Lisboa, Guerra & Paz, 2020.

Bibliografia Passiva: ‘“Falando com Jorge de Sena”, in O Tempo e o Modo, 59, Abril de 1968, pp. 409-430; “Sena, Jorge e Mécia (Remetente e destinatário)”, in Obra Completa do Padre Manuel Antunes, tomo VI, Lisboa, F.C. Gulbenkian, 2010, pp. 101-143; ALVES, Ida, “Permanente lucidez crítica: a prosa reflexiva de Jorge de Sena”, Colóquio: Letras, nº200, 2019, pp.14-27; GAGO, Dora, “Sinais de Espanha na obra de Jorge de Sena”, Hispania, vol. 94, nº 2, Junho 2011, pp. 273-284; LISBOA, Eugénio, “Breve Perfil de Jorge de Sena”, Estudos Sobre Jorge de Sena, ed. Eugénio Lisboa, Vila da Maia, INCM, 1984, pp.29-42; LOURENÇO, Jorge Fazenda, O Brilho dos Sinais: Estudos Sobre Jorge de Sena, Porto, Edições Caixotim, 2002;  LOURENÇO, Jorge Fazenda, O Essencial Sobre Jorge de Sena, Lisboa, INCM, 2019; MONTEIRO, George, “Jorge de Sena’s “Eichmann Story”, Modern Language Studies, vol. 20, nº1, 990, pp.11-23; SANTOS, Gilda, “Da arte de ser multiplamente português num exílio brasileiro”, in Jorge de Sena vinte anos depois – O Colóquio de Lisboa, ed. AA.VV, Lisboa, Cosmos, 1998, pp. 61-72; SIMÕES, João Gaspar, “Jorge de Sena, O Estrangeirado”, Estudos Sobre Jorge de Sena, ed. Eugénio Lisboa, pp.72-78; VASQUES, Eugénia, Jorge de Sena, Uma Ideia de Teatro (1938-71), Lisboa, Cosmos, 1998.