Em meio às celebrações do centenário de José Saramago, trazemos este artigo de Patrícia da Silva McNeill sobre a presença da écfrase nas obras Metamorfoses, de Jorge de Sena, e Manual de pintura e caligrafia, de Saramago. O diálogo, que por si só é interessante pois aproxima dois dos maiores nomes da literatura portuguesa moderna, se torna mais relevante pelo fato de Saramago ter sido responsável pelo primeiro projeto de publicação de Metamorfoses, que não chegou a se concluir.
Patrícia da Silva McNeill
Institute of Germanic & Romance Studies School of Advanced Studies, University of London
A ocupação do olhar exerceu um fascínio perene sobre Jorge de Sena e José Saramago; um olhar itinerante, questionador e empático adequado aos seus temperamentos inquiridores e às suas formações humanistas. Este olhar possui as características de um ‘gaze’ no sentido Lacaniano, segundo o qual o espectador é simultaneamente sujeito e objecto, porque igualmente transformador e transformado pela contemplação do objecto. O carácter transfigurador do olhar Seniano e Saramagiano é notório respectivamente em Metamorfoses, seguidas de Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena (1963) e em Manual de Pintura e Caligrafia (1977). Estas obras resultam de um interesse comum por parte de ambos os escritores em explorar as relações entre a literatura e as artes plásticas. A primeira parte deste estudo centra-se sobre as afinidades a nível da génese e uso da ekphrasis e outras estragégias inter-semióticas afins em ambas as obras. A segunda parte explorará em maior detalhe as especificidades da poesia ecfrástica de Sena e da prosa ecfrástica de Saramago através da análise comparativa dos poemas ‘Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya’ e ‘Artemidoro’ e excertos do primeiro e último ‘exercícios de autobiografia’ e subsequentes meditações no romance de Saramago.
Metamorfoses é constituido por vinte e sete poemas que estabelecem uma relação de tipo ecfrástico com o que Sena denomina ‘objectos estéticos’ (Sena 1988: 151) – incluindo pinturas, esculturas, construções arquitectónicas e objectos não-artísticos expostos em museus, como a máscara de morte do poeta John Keats em exibição na National Portrait Gallery. No Post-fácio da colecção, Sena atribui a génese da ekphrasis na sua poesia às suas visitas a museus londrinos:
Mas o desejo definido, ainda que impreciso, de meditar poeticamente no sentido, para mim, de determinados objectos estéticos, tenho a impressão que me nasceu em Londres, na minha primeira visita à Inglaterra, em 1952. (…) E a transfiguração súbita do mundo das reproduções e dos álbuns (…) e do estrito ambiente da arte em Portugal, para a opulência selecta e coordenada dos museus londrinos, foi uma experiência inesquecível (…). (ibidem)
Ao associar o aparecimento deste fenómeno na sua escrita a um desejo de ‘meditar poeticamente’ sobre ‘objectos estéticos’ que vira nos museus londrinos, Sena distancia-se deliberadamente da concepção convencional de ekphrasis. De facto, os poemas de Metamorfoses não constituem meras descrições verbais de obras de arte (embora também as incluam nalguns casos) mas vivências estéticas evocadas pela memória (como o próprio Sena sugere no Postfácio), retomando, em parte, o sentido original mais lato do termo como uma descrição vívida e evocativa da experiência de um objecto.
Adicionalmente, os poemas documentam a intenção do poeta de registar a sua resposta emocional ao objecto estético, constituindo deste modo, como Sena observa citando T. S. Eliot, “o ‘correlativo objectivo’ de um estado de alma, e o pretexto para a meditação poética” (ibidem). A vertente subjectiva e hermenêutica da sua empresa está, aliás patente na expressão, ‘meditar poeticamente no sentido, para mim,’ no excerto citado acima. Ao fazer preceder os poemas de reproduções fotográficas dos objectos estéticos que suscitaram essas meditações, Sena ultrapassa o domínio mais estrito da ekphrasis para criar um iconotexto: ‘an artifact [sic] in which the verbal and the visual signs mingle to produce rhetoric that depends on the co-presence of words and images’ (Wagner 1996: 16). O uso das imagens pelo poeta não é gratuito. Por um lado, a apresentação paralela das imagens e dos textos realça a relação intertextual entre a representação visual e a verbal, tornando acessível ao leitor o conhecimento dos objectos estéticos que inspiraram os poemas e permitindo-lhe, assim, tecer o seu próprio percurso interpretativo. Por outro lado, as imagens são usadas como ícones de memória, que pelo seu apelo a uma forma de percepção intuitiva, afectiva e sensual, poderão eventualmente elicitar do leitor uma experiência estética autónoma, que pode ou não coincidir com a do sujeito seniano (apud Horstkotte 2006: 121).
Um pouco mais adiante no Post-fácio, Sena explica mais detalhadamente o surgimento do seu desejo de meditar poeticamente sobre objectos estéticos:
Ao deambular repetidamente pela National Gallery, a Wallace Collection, a Tate Gallery, o Victoria and Albert, e o British Museum, não foi, porém, a arte como actualidade perene o que me tocou apenas, mas, conjuntamente, com essa ilusão cultural e de gozo estético que os museus suscitam, a comovente historicidade da natureza humana, que palpita e vibra naquelas antologias que o acaso, o bom gosto, e às vezes só a mania arqueológica, recolheram das épocas pretéritas. (Sena 1988: 151-52)
A recepção, por parte de Sena, de obras de arte patentes nos museus citados neste excerto deriva em grande parte da sua experiência de deambular pelas suas exposições, compreendendo alusões frequentes à forma de apresentação das peças em exibição. Posteriormente, Sena alargou a colecção, incluindo poemas sobre objectos estéticos vistos em museus de outras cidades europeias, como o Museu de Arte Antiga de Lisboa, o Museé Nacional d’Art Ancien de Bruxelas, o Prado e o Louvre, assim como monumentos, tais como o Mosteiro de Alcobaça e a Mesquita de Cordova.
Por conseguinte, os poemas ecfrásticos de Metamorfoses constituem o registo da itinerância do poeta por vários museus e cidades da Europa, sublinhada pela reprodução de imagens dos ditos objectos estéticos com indicação da sua proveniência. Esta estratégia confere uma dimensão espacial à colecção de poesia como um mapa topográfico da errância cultural do sujeito seniano. Jorge Fazenda Lourenço propõe uma leitura de Metamorfoses como theatrum mundi, estabelecendo uma analogia com o sentido original do museu como ‘gabinete do mundo’ (Lourenço 1998: 185).[1] Bebendo nas mesmas fontes que Lourenço, poder-se-ia estabelecer uma analogia igualmente produtiva com o Teatro da Memória de Camillo (Hooper-Greenhill 1992: 105), realçando por seu turno a dimensão temporal. Assim, Sena tentaria criar por meio da sequencialidade das imagens e dos textos uma temporalidade quase narrativa, realçando deste modo a componente autobiográfica de Metamorfoses. Contudo, esta memória não é apenas pessoal mas colectiva, pois a ordenação maioritariamente cronológica das imagens evoca a história não só da produção artística ocidental, nomeadamente da pintura, mas da própria civilização humana enquanto produtora de artefactos.
A associação entre o registo autobiográfico e de viagem que subjaz implicitamente à génese da ekphrasis em Metamorfoses, está presente de modo mais explícito em Manual de Pintura e Caligrafia. A certo passo da narrativa o protagonista e narrador homodiegético (um pintor medíocre chamado H. que é o alter ego do autor) começa a escrever o relato da sua viagem à Itália. Estas memórias de viagem fragmentárias que o narrador denomina significativamente de ‘exercícios de autobiografia’ registam a sua experiência de visitar os monumentos e deambular pelos museus de Milão, Veneza, Florença e Roma entre outras cidades italianas. Numa tentativa de explicar a sua empresa ao leitor no primeiro ‘exercício’ o narrador afirma:
Decerto não se espera de mim um guia ou um roteiro de obras de arte, e muito menos uma contribuição proveitosa para confirmar ou contestar ideias já feitas, directas ou de segunda via. Mas um homem avança por espaços que a arquitectura organizou, por salas povoadas de rostos e figuras – e certamente não vai sendo o que era ao entrar, ou mais lhe valera ter passado ao largo. (Saramago 1983: 138-39)
Segundo o narrador, estes textos não possuem a qualidade impressionista da escrita de viagens convencional nem constituem crítica estética, mas têm uma qualidade distintamente autobiográfica, documentando a transfiguração que ele experimentou ao contemplar os monumentos dessas cidades e as obras de arte nos seus museus.
A descrição, por parte do narrador saramaguiano, da sua experiência de apreciação estética neste excerto traduz uma transformação que se assemelha à ‘transfiguração súbita’ que Sena afirma ter experimentado ao visitar os museus de Londres na primeira citação. De modo semelhante às ‘meditações poéticas’ de Sena, a prosa ecfrástica dos ‘exercícios de autobiografia’ no romance de Saramago combina passagens descritivas com outras que possuem uma qualidade meditativa sobre ou a partir das obras de arte contempladas. O termo ‘exercícios’, aliás, sublinha a sua função como ensaios, tanto no sentido etimológico de tentativas (reflectindo o facto de que o narrador tenta escrever a sua autobiografia) como de textos que expõem o ponto de vista do narrador. Além disso, cada exercício é seguido de uma reflexão meta-textual, quer desenvolvendo assuntos nele abordados em registo mais intimista que frequentemente evoca episódios biográficos, quer reflectindo sobre o próprio processo de escrita autobiográfica. Neste sentido, a prática ecfrástica dos exercícios autobiográficos constitui uma estratégia de superação da crise de identidade e do bloqueio criativo do narrador-pintor (e por extensão do próprio autor), que por meio deles retoma o controlo da sua vida e da sua arte.
A reflexão que sucede ao primeiro ‘exercício’ começa da seguinte maneira:
A isto que escrevi, chamei (primeiro) exercício de autobiografia (…). (…) Por mim, tendo notado, tão bem quanto sou capaz, a inanidade do método clássico de (me) biografar, preferi lançar sobre a transparência do vidro que (me) sou os mil pedaços da circunstância. (Saramago 1983: 143)
Este excerto de uma passagem mais longa – que inclui alusões às Confissões de Rousseau, a Robinson Crusoe de Daniel Defoe e às Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar – reflecte a preocupação do narrador com biografia e o seu desejo expresso de encontrar um modo apropriado de escrever a sua autobiografia. Na sua opinião, para um homem do seu tempo a autobiografia apenas pode ser alcançada de modo fragmentário, ecoando a dissociação do sujeito encapsulada no verso pessoano ‘Quebro a alma em pedaços’ de ‘Deixo ao cego e ao surdo’ (Pessoa 1997: 168). Similarmente, continua o narrador: ‘este feltro pisado e repisado que é a cultura, que é a ideologia, que é também isso a que chamamos civilização, compõe-se de mil e um pequenos estilhaços que são heranças, vozes, superstições que foram e assim permaneceram, convicções’ (Saramago 1983: 145). Nesta passagem, o domínio cultural é descrito como umtecido heterogéneo de textos-memória numa alusão implícita a Barthes. Consequentemente, os exercícios autobiográficos constituem memorializações com o objectivo de recuperar ‘a
pré-história da sociedade humana, a pré-história do indivíduo como parte da sociedade humana (…) e outra vez a pré-história do indivíduo que seria o tempo da sua vida pessoal’ (idem: 235).
Os mesmos princípios subjazem a Metamorfoses, na qual, como afirma Sena na segunda citação, (cf. supra) o desejo de ‘meditar poeticamente’ sobre ou a partir de objectos estéticos não se limita à apreciação estética (embora também a inclua) mas surge associado a uma preocupação com a ‘historicidade da natureza humana’ (Sena 1988: 152). Este interesse pode ser caracterizado como sendo tanto arqueológico como antropológico, pois envolve o escrutínio de vestígios materiais de civilizações passadas, nomeadamente os artefactos e monumentos que inspiraram os poemas. De facto, vários poemas da colecção versam sobre genealogia, identidade racial e actividade humana no passado. Entre eles, ‘Artemidoro’, um poema inspirado pela múmia de Artemidoro em exibição permanente no Museu Britânico, destaca-se pelo seu conseguido e complexo tratamento destes temas. Sena salienta a perda por parte de Artemidoro da sua individualidade resultante da morte e da mumificação:
Secaste assim serenamente, enquanto
quem tu eras se perdeu depressa
nas memórias humanas que habitaste. (…)
A múmia que ficou de ti (só ressequida pele
rasgada aqui e ali, mostrando os ossos
por onde as sujas ligaduras se soltaram)
não se distingue das outras na fileira
envidraçada em que há decénios de pó,
um fino pó, será de ti ou Londres. (idem: 71)
Por contraponto, a sua representação pitórica na tampa do sarcófago assegura-lhe a perenidade da sua memória até ao tempo presente do sujeito poético que a contempla:
Importa o teu caixão, ou mais, a tampa
em que, segundo os usos do teu tempo,
um pintor cujo ofício principal seria
retratar os mortos te compôs um rosto. (…)
que seria esse olhar tão líquido e profundo que me fita
envidraçado pela morte e pelas crenças todas
e também pela vidraça que, interposta,
nos não separa menos do que os séculos? (idem: 71-72)
Neste excerto, Sena enfatiza a separação entre a múmia e o sujeito que a contempla, quer em termos físicos ou espaciais (a vidraça que se interpõe entre eles), quer a nível temporal (os séculos que se interpõem entre eles) e cultural (as diferentes crenças de Artemidoro, um cristão copta, e do sujeito poético, herdeiro da tradição cristã ocidental).
Igualmente, no romance de Saramago, o narrador medita sobre uma múmia que vira num museu do Vaticano após o último exercício autobiográfico:
É, em carne preservada para além da putrefacção, uma proximidade. Separa-nos só aquele centissegundo em que me obstino a acreditar. Se o guia oficial do museu me vier dizer que entre este corpo e o meu corpo estão dois ou três mil anos, não duvidarei, uma vez que é obrigação dos guias saberem destas matérias. Mas não consigo representar-me o que sejam três mil anos, se o corpo está aí, resolvida pelo silêncio a questão da ignorância da língua e estabelecido outro diálogo. As mãos, com os seus longos e afilados ossos cobertos de carne que é só fibra e de uma pele negra, sem suor, que solicita o tacto doutras mãos, pouco lhes falta para que se movam, já meio fora da arca mortuária, mas ainda não fora da caixa de vidro que encerra o corpo. As unhas, vivíssimas, não tardarão, humildemente, humanamente, a catar a caspa dos vivos. (Saramago 1983: 237; meu sublinhado)
A meditação de Saramago ao contemplar a múmia apresenta óbvias diferenças em relação ao poema de Sena, sendo talvez a mais notória a sua insistência na proximidade física e humana (porque potencialmente imbuida de expressão comunicativa e afectiva, como sugerido pelas expressões sublinhadas) entre a múmia e o narrador. Apesar das aparentes diferenças de perspectiva, ambas as meditações se centram sobre a dialéctica entre a perenidade material do corpo alcançada através do processo de mumificação e a realidade perturbadora da mortalidade humana que as múmias simbolizam. Estes aspectos denotam uma preocupação comum com a morte, que constitui o tema principal da colecção de poesia de Sena e do romance de Saramago, como é aliás, declarado no Post-fácio de Metamorfoses e na meditação que segue o primeiro exercício autobiográfico do Manual de Pintura e Caligrafia.
Saramago conclui o parágrafo sobre a múmia com a seguinte observação:
Eis a longa história (não a pré-história) da continuidade material dos homens. Durante milhões de anos, milhões de milhões de homens nasceram da terra e para ela voltaram. O húmus terrestre já é muito mais poeira humana do que crosta original, e as casas em que vivemos, feitas do que da terra saiu, são construções humanas, no sentido rigoroso de humano, feitas de homens. (ibidem)
Esta preocupação arqueológica, partilhada por Sena como disse anteriormente, radica num conceito de memória semelhante ao de W. G. Sebald em The Rings of Saturn: “the idea of archaeological strata as a model for memory […]. According to this model, the past is not ‘another country,’ but is co-present with the here and now: it is simply buried at a deeper layer” (Horstkotte 2006: 123). Este conceito de memória cultural realça a continuidade (como
diz Saramago acima) entre o passado e o presente, assentando para tal na actualização do passado individual ou colectivo no presente histórico (apud Horstkotte 2006: 124).[2] Por conseguinte, a ekphrasis enquanto processo radicado na noção de enargeia – ‘a capacidade de produzir na mente do leitor uma imagem suficientemente
vívida’ (Conrado 2001: 119) – permite justamente este tipo de actualização. De facto, as meditações ecfrásticas de ambos os escritores sobrepõem frequentemente eventos históricos a outros que ocorreram no tempo das suas vidas, traçando paralelos inesperados entre eras passadas e a presente.
Assim sucede com ‘Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya’, um poema epistolar inspirado pelo quadro de Goya, O Tres de Maio de 1808 em Madrid, o qual homenageia a resistência espanhola ao exército de Napoleão durante a ocupação de 1808. Segundo Jorge Fazenda Lourenço, o quadro de Goya ‘é visado mais como documento do que como objecto de arte, já de si, neste caso, testemunhal (…)’ (Lourenço 1998: 170). Por conseguinte, a qualidade testemunhal do quadro mais do que a sua plasticidade constitui o foco central do poema, patente no seguinte excerto:
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois umelo (ou não sereis)
de ferro e de suor e de sangue e algumsémen
a caminho do mundo que vos sonho. (Sena 1988: 124)
Neste excerto, Sena usa o deítico ‘este(s)’ para sugerir proximidade física e emocional, evocando a experiência de estar defronte do quadro no museu do Prado e, ao mesmo tempo, denotando uma empatia para com os eventos documentados no quadro. Contudo, as suas considerações não são descritivas, mas antes reflexivas. Sena entende os acontecimentos retratados no quadro de Goya como um ‘episódio’ específico ilustrativo do esforço e do sofrimento que domina a história humana e que une homens de diferentes eras, sublinhando esta continuidade através da metáfora de que cada vida humana (incluindo a dos seus filhos) é um elo na corrente do tempo.
A escolha deste ‘episódio’ em particular (de entre as mil escolhas possíveis mencionadas no poema) para ilustrar a sua meditação pessoal sobre o sofrimento humano e a injustiça não é fortuita. Como o quadro de Goya, o seu poema celebra a resistência heróica ao exercício de poder injusto e funciona em si mesmo como uma forma de resistência à situação política em Portugal na altura em que Sena escreveu o poema, nomeadamente o regime dictatorial de Salazar, que levou Sena ao exílio. De acordo com Fernanda Conrado:
‘o paralelismo da real situação de injustiça política contra a qual o poeta se revolta e a cena evocada pelo quadro de Goya é tal, que, se não podemos considerar ekphrástico este poema que constitui como que uma recapitulatio da temática desenvolvida através dos poemas anteriores, ele é, certamente, um Bildgedicht, na medida em que é uma meditação sobre um quadro, ou a partir dele’. (Conrado 2001: 126)
Da mesma forma, depois de descrever ecfrásticamente obras de arte no Castello Sforzesco, nas Pinacotecas di Brera e Ambrosiana e A Última Ceia em Santa Maria delle Grazie, o narrador do romance de Saramago conclui o primeiro exercício autobiográfico com uma cena a que assistira nas ruas de Milão:
Milão só pode ser isto para mim. E também, à noite, os grupos de pessoas na Galleria Vittorio Emmanuele, jovens discutindo com adultos, carabinieri vigiando, inquietação. E as paredes dos prédios, ao longo da Via Brera, cobertas de dísticos: ‘Lotta Continua’, ‘Potere Operàio’. Alguns dias depois, quando eu já andar pela Toscana, a polícia milanesa entrará na Università degli Studi, haverá violência, feridos, prisões, gases lacrimogéneos. E toda a imprensa das direitas, conservadora, fascista ou fascizante exultará. (Saramago 1983: 141-2)
Consequentemente, os grafitti comunistas que o narrador vira nas paredes dos edifícios na via Brera (em vez das obras de arte expostas dentro da Pinacoteca) tornam-se o assunto da sua meditação, numa reinterpretação da ekphrasis que se coaduna com a sua declarada intenção de descrever experiências autobiográficas e de cotejar o passado e o presente. O narrador evoca este episódio da história moderna italiana na meditação que segue o exercício autobiográfico, tecendo uma analogia com a situação política em Portugal contemporânea com a narrativa, que era nessa altura o regime autoritário de Marcelo Caetano: ‘Em Milão, algumas paredes falavam, diziam palavras para mim insólitas, proibidas no meu país de desgosto e medo: “luta continua”, “poder operário”’ (idem: 148). Seguidamente, o narrador evoca a sua experiência pessoal de injustiça política num breve excurso autobiográfico que narra a sua prisão injusta pela PIDE devido a uns ‘papéis’ com palavras inflamatórias, que diz ter encontrado por acaso (provavelmente uma alusão biográfica a uma vivência pessoal do próprio autor).
A formação humanista de Sena e de Saramago introduz uma dimensão ética nas suas práticas ecfrásticas, que se traduz no desejo de ‘identificação heteropática’ com os objectos estéticos contemplados: “a ‘heteropathic identification’ respects the difference of the other without rejecting it and thus enables a subjectivity which can approach the other without usurping its position” (apud Horstkotte 2006: 118). Esta faceta da sua escrita
é especialmente evidente no poema ‘Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya’ de Sena e nas passagens sobre a violência política em Milão do romance de Saramago. Nestes textos, ambos os escritores criam algo comparável ao que Marianne Hirsch denomina de ‘memória heteropática’ ou ‘projectada’, segundo a qual a distância temporal, espacial e cultural com o sofrimento de outros é superada imaginativamente (Hirsch 1999: 9). Este conceito de memorialização engendra um sentimento de empatia universal com seres humanos de outras épocas, lugares e culturas. Neste sentido se deve entender o seguinte excerto de ‘Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya’:
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram. (Sena 1988: 124)
Ainda versando sobre ‘a continuidade material dos homens’ no último exercício de autobiografia, Saramago expressa esse sentimento de empatia universal de forma mais directa do que Sena mas igualmente abrangente, incluindo os vivos e os mortos:
Despeço-me dos mortos, mas não para os esquecer. Esquecê-los, creio, seria o primeiro sinal de morte minha. Além disso, após esta viagem de escrever tantas páginas, fez-se-me a convicção que devemos levantar do chão os nossos mortos, afastar dos seus rostos, agora só osso e cavidades vazias, a terra solta, e recomeçar a aprender a fraternidade por aí. (Saramago 1983: 238)
Em conclusão, embora pertençam a géneros diferentes, os poemas de Metamorfoses e exercícios de autobiografia de Manual de Pintura e Caligrafia constituem exemplos semelhantes de ekphrasis inspirada por monumentos ou por obras de arte nos museus de várias cidades europeias, funcionando como registos das itinerâncias de ambos os escritores. Acrescidamente, constituem reflexões pessoais sobre a ‘historicidade da natureza humana’ (nas palavras de Sena) que resultaram da contemplação de objectos estéticos. Estas reflexões, significativamente intituladas por Sena de ‘meditações aplicadas’ são descritas no Post-fácio de Metamorfoses como ‘o especular emocionalmente para além das obras, com a emoção complexa de um espírito culto, para quem a História tem de estar presente na compreensão da própria e pessoal humanidade com a qual lhe é dado compreender a dos outros (…)’ (Sena 1988: 156). De igual modo, referindo-se aos museus do Vaticano, que diz não terem fim, o narrador saramaguiano afirma no último exercício autobiográfico:
Avança-se por dezenas de enormes salas e galerias, de rotundas, de stanze, e sempre com o remorso de estar deixando para trás, talvez para sempre, o quadro, o fresco, a escultura, o livro iluminado que provavelmente nos ajudariam, à boa paz, a compreender melhor este mundo e a vida que fazemos nele. (Saramago 1983: 228)
As observações de Sena e de Saramago denotam uma intenção semelhante de documentar (ou arquivar no sentido Barthesiano) os fragmentos da história da sociedade humana encapsulados pelos artefactos, e ao mesmo tempo estabelecer paralelos significativos entre o passado e o presente. Estes paralelos não dizem respeito apenas à História colectiva mas incluem igualmente testemunhos da sua vivência pessoal, como ilustrado pelas passagens autobiográficas do Manual e por um poema como ‘Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya’.
As afinidades patentes dos seus projectos podem talvez ser explicadas pelo facto de que Saramago tinha conhecimento extensivo de Metamorfoses enquanto editor-em-chefe da Estúdios Cor (a editora que pretendera inicialmente publicar a colecção de poesia de Sena, não tendo podido fazê-lo por falta de verbas). Esse conhecimento é corroborado pela existência de cartas de Sena a Saramago discutindo detalhadamente a preparação do manuscrito para publicação. Consequentemente, as Metamorfoses poderão ter sido o modelo e fonte de inspiração para a experimentação com a ekphrasis em Manual de Pintura e Caligrafia, uma prática recorrente, embora mais marginalmente, nos romances subsequentes de Saramago, onde adquire um valor emblemático de chave simbólica da narrativa, como sucede em O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) e Ensaio sobre a Cegueira (1995). Sena, por sua vez, continuou a praticar a ekphrasis na sua obra poética, expandindo as fronteiras deste processo de transposição intersemiótica ao explorar a ekphrasis musical na sua colecção de poesia seguinte, Arte de Música (1968). A ekphrasis funcionou como um catalista nas obras de Sena e de Saramago de umestilo de escrita que dialoga com outras formas de arte. Adicionalmente, a ekphrasis introduziu um hibridismo nas suas obras que lhes permitiu expandir as fronteiras genéricas da sua produção poética e ficcional, contribuindo dessa forma para reinvigorar a literatura portuguesa contemporânea.
Notas
[1] Lourenço baseia-se na obra de Eilean Hooper-Greenhill, Museums and the Shapping of Knowledge, London, Routledge, 1992.
[2] “As Mark Freeman has pointed out in an article on ‘tradition and remembrance of the self and of culture,’ such a presence of the past is not an objective given but has to be constantly actualized by perceiving subjects (32). One has to realize the past in the present, in other words, and in order to do so, one needs to have brought something from the past—some form of memory or historical knowledge—into the present.” (meu sublinhado)
Bibliografia
Conrado, Fernanda (2001), “Ekphrasis e outros processos de trânsito intersemiótico em Jorge de Sena: ‘O Dançarino de Brunei’”, in Jorge de Sena. Vinte anos depois. O colóquio de Lisboa, Outubro de 1998, Lisboa, Edições Cosmos / Câmara Municipal de Lisboa: 117-131.
Hirsch, Marianne (1999), “Projected Memory: Holocaust Photographs in Personal and Public Fantasy”, in Mieke Bal, Jonathan Crewe, Leo Spitzer (eds.), Acts of Memory. Cultural Recall in the Present, Hanover, Dartmouth College, University Press of New England: 3-23.
Hooper-Greenhill, Eilean (1992), Museums and the Shapping of Knowledge, London, Routledge.
Horstkotte, Silke (2006), “Visual Memory and Ekphrasis” in W. G. Sebald’s The Rings of Saturn, English Language Notes, vol. 44, n° 2: 118-130.
Lourenço, Jorge Fazenda (1998), A Poesia de Jorge de Sena: Testemunho, Metamorfose, Peregrinação, Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian.
Pessoa, Fernando (1997), Poesias Inéditas (1919-1930), Lisboa, Ática.
Saramago, José (1983), Manual de Pintura e Caligrafia, Lisboa, Editorial Caminho [1977].
Sena, Jorge (1988), Poesia II, Lisboa, Edições 70 [1963].
Wagner, Peter (ed.) (1996), Icons, Texts, Iconotexts: Essays on Ekphrasis and Intermediality, Berlin, de Gruyter.
REFERÊNCIA: McNeill, P. (2011) «Transfigurações do olhar viajante: Metamorfoses de Jorge de Sena e Manual de Pintura e Caligrafia de José Saramago», Cadernos de Literatura Comparada, (24/25). Disponível em: https://ilc-cadernos.com/index.php/cadernos/article/view/143 (Acedido: 2 Setembro 2022).