Tradição, modernidade e modernismo na lírica portuguesa, de Maria Lúcia Outeiro Fernandes

Lucas Laurentino
(UFRJ/CNPq)

Conforme comentamos na resenha ao livro Ensaios de Sena, de Jorge Vaz de Carvalho, a fortuna crítica sobre o poeta das Metamorfoses vem crescendo consideravelmente nos últimos anos. O presente livro de Maria Lucia Outeiro Fernandes, Tradição, modernidade e modernismo na lírica portuguesa, publicado em 2023, é mais um grande acréscimo à biblioteca dos estudos senianos. Resultado do concurso de Livre Docência prestado pela autora em 2019, a obra compila trabalhos importantes que refletem uma trajetória de quase quarenta anos de estudo e ensino de literatura, em particular a portuguesa.

Vale ressaltar que Maria Lucia é professora associada da UNESP de Araraquara, faculdade que recebeu Jorge de Sena em 1959 e o introduziu ao magistério. Esta associação, que não passa despercebida pela autora, é realçada pelos cinco ensaios dedicados ao poeta, unindo postura crítica e homenagem.

Aliás, o livro conta com um belo prefácio assinado por Rodrigo Valverde Denubila, ex-aluno de Maria Lucia, que enfatiza a articulação, na estrutura dos textos, de atenção crítica, preocupação pedagógica e amor ao ofício. Desse modo, nas palavras do prefaciador, “Maria Lúcia Outeiro Fernandes nos conduz pelos caminhos da lírica portuguesa de ontem e de hoje e faz o complexo parecer simples, quando perspectiva a tradição, a modernidade e o modernismo”. Esse gesto de conduzir, como num passeio, aponta para a maneira como devemos encarar a obra, uma viagem pela lírica portuguesa novecentista guiada por professora comprometida e afetuosa, que segue a lição seniana expressa em “Amor da literatura”: “Não se pode conhecer, nem estudar, nem ensinar, nem viver, aquilo que, no fundo e em verdade, se não ama”. Assim, em cada ensaio é visível o amor da autora pelo que faz.

Em termos de conteúdo, Tradição, modernidade e modernismo na lírica portuguesa, como o próprio título indica, não é inteiramente dedicado a Jorge de Sena. Na verdade, são cinco os poetas que figuram ao longo dos seus onze ensaios: Fernando Pessoa (diretamente e via Saramago), António Botto, Sophia de Mello Breyner Andresen, Luís Miguel Nava, além do já citado Sena. O que conecta essa reunião de escritores tão próximos e díspares ao mesmo tempo é a questão, expressa na “Apresentação”: “Se a modernidade é um conceito que se afirma a partir da noção de ruptura, como pôde ter formado uma tradição tão forte e legítima que já dura bem mais de um século?” (Fernandes, 2023, p. 13). Dessa forma, a “Introdução” e o primeiro capítulo, que recebe título homônimo ao do livro, constituem a necessária contextualização histórica e mobilização teórico-crítica para situar os pontos principais da discussão.

Embora a obra percorra quase um século de poesia (e alguma prosa) portuguesa através dos poetas referidos, a presença de Jorge de Sena é, sem dúvida, a mais marcante. Isto porque, dos onze ensaios, cinco têm por objeto de estudo a sua obra, totalizando nada menos que cem das trezentas páginas que compõem o volume (levando-se em conta os paratextos). Sem descuidar da importância dos demais capítulos, e reconhecendo a sua significativa contribuição para os estudos dos respectivos poetas, nos concentraremos em comentar aqueles em que Sena é o foco.

Em “A metamorfose da terra na poesia seniana”, a autora propõe que “uma energia telúrica anima a criação poética de Jorge de Sena” (Fernandes, 2023, p. 141). Tomando por corpus os três primeiros livros do poeta, a saber, Perseguição (1942), Coroa da terra (1946) e Pedra filosofal (1950), o ensaio destaca como a terra, materialmente entendida, atravessa a obra seniana, revelando traços fundamentais da sua concepção de mundo e de arte. Jorge de Sena liga-se ao universo sensorial, materialmente experienciado, e se afasta de concepções abstratizantes da realidade, mitificações que desconectam o ser humano do seu entorno. É digno de nota que o ensaio se debruce sobre os primeiros livros do autor, que costumam receber menos atenção dos estudiosos.

Já em “A transfiguração da vida em poesia e a metamorfose do homem: o Camões de Jorge de Sena”, o poema camoniano “Sôbolos rios que vão” é articulado ao conto de Sena “Super Flumina Babylonis”, que encena o poeta quinhentista nos momentos que antecedem a redação das famosas redondilhas. O pano de fundo, evidentemente, é o Salmo 136, que inspira Camões e é analisado no verbete “Babel e Sião”, que o contextualiza biblicamente e acompanha as suas leituras e releituras até chegar na camoniana. Além disso, conto e poema são postos lado a lado com o fim de realçar suas várias conexões temáticas, como as reflexões sobre exílio, pátria, experiência de vida e amor. Os textos que procuram investigar as obras de Sena e de Camões conjuntamente em geral obtêm resultados muito interessantes e reveladores das poéticas de ambos. Este não é diferente, pois mostra como Sena se apropria de Camões e o recria, lançando luz sobre aspectos novos de um autor tão largamente estudado.

“Entre o histórico e o mítico: as relações tempo-espaço na narrativa de Jorge de Sena” continua a tratar de “Super Flumina Babylonis”, agora com destaque para a construção textual do conto, desvelando um estilo da narrativa seniana que pode ser encontrado em outros textos, como o romance Sinais de fogo. A autora parte novamente do poema de Camões e desenvolve seu ensaio tendo por base os eixos estruturantes da narrativa, tempo e espaço, para investigar como Sena os constrói enquanto elementos significativos. Assim, a casa que serve de cenário do conto, e principalmente as escadas, as oposições entre passado e presente, o protagonista e sua mãe, o corpo e o espírito, e as reflexões sobre experiência e arte recebem especial atenção por parte da ensaísta.

“O testemunho dos sentidos na poesia de Jorge de Sena” retorna à poesia seniana para realçar três aspectos fundamentais de sua composição: “o discurso dialógico, o rapto do sujeito e a simbiose entre o ser humano e os elementos da natureza” (Fernandes, 2023, p. 207). Neste ensaio, que também se debruça nos primeiros livros de Sena, a autora mostra como a vocação dialógica do poeta se estende para além de interlocutores humanos, por vezes dirigindo-se diretamente à poesia para interrogá-la. Além disso, o elemento marcadamente sensual dessa poesia é abordado a partir da noção de “simbiose homem/natureza”, que, ao contrário de poéticas como a de Alberto Caeiro, por exemplo, se processa na humanização da natureza, no reconhecimento do significado da intervenção humana no ambiente que o cerca.

Por fim, “Elogio da vida monástica: modernidade estética & modernidade burguesa” é o ensaio que se insere mais explicitamente na proposta geral do livro, de discutir modernidade e modernismo na poesia europeia e portuguesa novecentista. Partindo da problemática em torno do conceito de modernidade, com foco na contribuição de Baudelaire e Gautier à compreensão do sujeito urbano moderno, e passando pela sua recepção e transformação em Portugal ainda no século XIX, pelas mãos de Antero de Quental, Camilo Pessanha e Cesário Verde, a autora chega à obra de Sena para discutir o estatuto do sujeito “antimoderno”, tal como delineado por Antoine Compagnon, aquele que estaria tão implicado nos desafios da modernidade que, por isso mesmo, conseguiria se distanciar e refletir sobre os seus rumos. O texto analisado mais longamente é o poema “Elogio da vida monástica”, presente em 40 anos de servidão.

Desse modo, o livro de Maria Lucia Outeiro Fernandes deixa claro que é impossível discutir a moderna e contemporânea literatura em língua portuguesa sem considerar o papel da obra seniana para o seu desenvolvimento. De fato, Jorge de Sena enfrentou questões cruciais do seu tempo e do nosso com extrema consciência e apuro estético. Sua obra, poética, ficcional, ensaística, permanece fundamental para nos entendermos hoje e compreendermos nosso passado recente.

Assim, o livro de Maria Lucia Outeiro Fernandes, ao aliar clareza didática, embasamento teórico e leitura atenta, é uma contribuição importantíssima aos estudos literários. Tanto críticos em formação quanto os já experientes encontrarão ricas reflexões nessas páginas, que os farão (re)ler ainda mais apaixonadamente as obras dos autores elencados.

Terminamos citando um trecho da “Introdução” do volume:

“A poesia moderna, tal como configurada nos poetas focalizados nos diferentes artigos deste livro, constitui incessante expressão do choque de existir e do instante radiante de invenção, capaz de suprimir o contemporâneo. Por abrigar contradições que traduzem as perplexidades do homem, no mundo gerado pelo capitalismo, em seus múltiplos desdobramentos desde o Século XIX, a modernidade estética continua sendo a principal referência para a produção poética. Em termos de linguagem, realiza-se como uma desconcertante e complexa simbiose entre o fascínio pelas conquistas da ciência, pelos avanços da tecnologia e pelos mistérios místicos e mágicos do cosmos, entre as profundezas de um ser fragmentado e disperso e os compromissos éticos com o outro e a vida social, entre o rigor construtivo e a emoção, entre o eterno e o transitório”.