Neste artigo, Sabrina Sedlmayer aproxima os pensamentos de Jorge de Sena e Walter Benjamin a partir das imagens que remetem ao brilho, ao fulgor, ao lampejo, comuns a ambos os autores. Nessa articulação, o testemunho, a interpretação da História, a tarefa social e política do escritor são mobilizados e discutidos em obras como o romance Sinais de fogo, o conto “Homenagem ao papagaio verde” e o poema “Em Creta, com o Minotauro”.
Sabrina Sedlmayer[1]
I. Introdução
O título deste trabalho, alusão direta ao romance de Jorge de Sena, Sinais de fogo, e ao fragmento “Alarme de incêndio”, de Walter Benjamin, pretende marcar como se encontra, no cerne do pensamento estético, literário e histórico de ambos os escritores, o anúncio de uma precipitação de perigo lado a lado a uma advertência sobre o que passou. Os sinais e os avisos de algo luminoso, fulgurante, mais próximos do recurso metonímico do que do regime metafórico, são constituintes do intricado jogo temporal operado por Sena e Benjamin que ora se ampara em algo específico, ora se espraia em esferas mais abrangentes rumo à defesa de uma tarefa que deve ser responsável por “atear ao passado a centelha da esperança” (Benjamin, 2005, p. 65).
É sobre esse gesto que se rebela de chrónos e que possui uma natureza indicial – uma vez que os avisos e os sinais não só possibilitam prever alguma coisa, como também aparecem materialmente conectados com os objetos do passado, estabelecendo com eles uma relação de contiguidade e de semelhança – que Benjamin e Sena, críticos severos da noção da linearidade do progresso e da modernidade, se encontram. Especificamente na figura daquele que lê o indício do passado no presente, e que vê, no momento de perigo, uma imagem furtiva, capaz de interferir no cenário das catástrofes. Esses dois autores de vida curta, de obra inacabada, de pensamentos tortuosos e de uma desconcertante poesia dizem da revolução, do valor da interrupção e do seu caráter subversivo, ao questionarem, mesmo que através de vias diferenciadas, como “apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo” (Benjamin, 2005, p. 65)?
Na Tese VI de Sobre o conceito de história, Benjamin aponta justamente para a possibilidade de captura de uma imagem do passado quando esta se coloca no momento da ameaça. Essas teses, talvez desnecessário lembrar, foram escritas em 1939/1940, num momento de intensa precariedade e embate pela sobrevivência. Nas condições de produção em que o pensador alemão vivia, o substantivo incêndio se torna mais do que um símbolo da necessidade de “avançar os sinais”. Trata-se do alarme diante da presença do fascismo. Se facilmente reconhecemos aí o convite à não sujeição às formas tradicionais de transmissão conformista, por exemplo, a crença no progresso como algo contínuo e interrupto, há, também, o cuidado de se falar da imagem dialética como algo que lampeja num único e fugaz momento, visível apenas no tempo de um relâmpago.
Se o perigo ameaça não somente o conteúdo da tradição quanto os seus destinatários, e, como bem marca Michel Lowy (2005, p. 32), o capítulo “Feuermelder” pode ser tomado como exemplar de toda obra benjamiana, que, como um “sino repica e busca chamar a atenção sobre os perigos que ameaçam os contemporâneos, sobre novas catástrofes que ser perfilam no horizonte”, gostaria, aqui, de articular o pensamento benjaminiano com o exílio de Sena no Brasil, especificamente no período em que se deu a sua naturalização como cidadão brasileiro, e tentar demonstrar como a escrita em prosa desse autor é completamente atrelada a uma espécie de movimento e gesto que servem de previsão do fim do regime democrático em nosso país.
Organização do pessimismo e recusa ao canto melancólico do fim da experiência é o que aposta Didi-Huberman (2009) a respeito da obra benjaminiana. Para esse pensador, as imagens, apesar de tudo, ainda que modestamente, são capazes de resistir. A esse propósito, cita, em Survivance des lucioles, um conhecido texto de Pasolini, de 1975, em que o cineasta afirma que os vaga-lumes – para ele, o mais cabal exemplo da inocência – desapareceram, na Europa, diante das potentes luzes do fascismo triunfante. O contemporâneo pensador francês se pergunta, então, sobre a capacidade dialética desses seres de luz intermitente, passageira e frágil. Recorre a uma foto, tirada por uma brasileira, na Serra da Canastra, em 2008, e acrescenta que os vaga-lumes formam uma comunidade anacrônica e atópica. Critica a desesperança de Pasolini, no passado, a escatologia apocalíptica de Giorgio Agamben, no presente, mas se ampara em Benjamin para argumentar sobre a imagem do passado. Apesar de não ser possível explorar, neste momento, o embate entre dois pensadores contemporâneos que parecem disputar a herança benjaminiana, gostaria de recuperar, na obra de Jorge de Sena, como se dá, de forma especular, a articulação entre Guerra Civil, em 1936, e a Ditadura Militar brasileira, na década de 60 do século XX, em que Sena escreve fervorosamente a sua obra de ficção.
Para melhor desenvolver esse ponto, gostaria de dividir este meu texto em dois momentos: um, mais dedicado a Sinais de fogo, livro que recria e ressignifica a Guerra Civil espanhola na prosaica cidade portuguesa de Figueira da Foz; outro, numa leitura de um conto de Sena, intitulado “Homenagem ao papagaio verde”, publicado em Os Grão-capitães, livro que, segundo o autor, é “indignado, sarcástico e duro”, e que é passível de se perceber em suas narrativas uma aguda reflexão sobre a experiência de exílio e de testemunho:
Este livro, que consubstancia, sob a capa da ficção, algumas amargas experiências de vida lusitana, e foi escrito no Brasil, por um escritor português que é cidadão brasileiro desde 1963, e que não vive na pátria onde nasceu, e de cuja literatura é parte, nem na pátria que o adoptou na sua identidade civil, é dedicado à memória dos seus mortos luso-brasileiros ou brasileiros, alguns deles já amigos seus desde a juventude, e antes de sair de Portugal, em 1959, e outros que veio pessoalmente conhecer e estimar mais tarde no Brasil ou no largo mundo (Sena, 1986, p. 9).
Tanto o romance quanto o conto comungam traços autobiográficos conciliados a um realismo construído, sensual, prenhe de marcas fenomenológicas. Mas, apesar de as narrativas possuírem alguns pontos de contato, para Sena (1986, p. 35), o que diferencia a narrativa breve de um romance é “a duração estilística que à voz do narrador acrescenta ao tempo próprio da narrativa”. E a voz do jovem Jorge, narrador de Sinais de fogo, possui uma densidade capaz não apenas de ampliar ecos da revolução “nacional” (era assim chamada na Espanha a Guerra Civil) como, de dentro da casa portuguesa, esfumar o que seria puro ou degradante, democracia ou totalitarismo, amor ou lascívia.
Em um outro pequeno texto ensaístico, Sena (1986, p. 26) já alertara para o fato de a exigência de que a literatura de ficção se constituísse apenas como documento humano e como documento social e se imbuísse na transformação da realidade estar sujeita “aos perigos de uma idealização barata”. Tratava-se, assim, para o autor, de se afastar do perigo do neorrealismo, “que se pretende viril e franco” (Sena, 1986, p. 27) e não tentar assumir ou fazer assumir os personagens às pretensões ideológicas alimentadas por quem escreve.
II. Cortinas de chumbo
Nunca antes houvera em Portugal páginas tão incandescentes e irreverentes, tantas “evidências de Eros”, segundo Eduardo Lourenço (1982), quanto às do romance Sinais de fogo. Anteriormente Sena já havia publicado Clarões, título que significativamente demonstra o apreço do autor aos significantes analisados nesse trabalho. Mas o proposital uso em primeira pessoa, o nome Jorge dado ao jovem narrador e protagonista do romance, os detalhes de uma história pessoal entrelaçados a fatos históricos, conjugados a uma linguagem realista de humor libertino, diferente da de Sade, distinta da de Genet, fizeram com que esse texto não somente se colocasse de forma obtusa e dolorosa no panorama cinzento, saudosista e melancólico português como também recebesse uma tardia recepção crítica.
Especificamente sobre o projeto de escrita desse livro de mais de 500 páginas, e que ficou inacabado devido à morte do autor em 1978, o escritor já havia antecipado para o amigo Vergílio Ferreira, em carta de 1965, que trabalhava febrilmente em uma obra longa, dividida em vários volumes, cujo primeiro tomo iria:
tratar da vida portuguesa, vista através de um narrador (que todo mundo vai dizer que sou eu e não sou), desde o estalar da guerra da Espanha até ao grande desfile de 28 de Maio de 1937. Pela violência das situações, pela franqueza realista da linguagem, pelas personagens em que abundam as prostitutas, os pederastas, pelas evocações do ambiente político, é impublicável aí (Sena, 1987, p. 145).
Numa outra carta, destinada a José-Augusto França, em 1965, confessa não conseguir sair do “rebentar” da Guerra Civil espanhola, e que já havia escrito cerca de 200 páginas, desejava que o livro terminasse com os “vivas” e “morras” e o monumental desfile da Mocidade Portuguesa (MP), em 1937, no Terreiro do Paço, com o estabelecimento da ditadura em Portugal, os atos violentíssimos do governo na “revolta dos barcos”, que abarcasse o discurso de Salazar em 31 de outubro de 1936, mas que, contra o seu empenho, não conseguia sair do enredo da guerra.
Quando começou a escrever Sinais de fogo, Sena havia acabado de se tornar doutor honoris causa e se naturalizado brasileiro para ter direito a fazer o concurso de livre-docência. Havia conseguido certa estabilização em termos acadêmicos, depois de ter sido recusado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que “por questões burocráticas” não aceitou a sua tese intitulada Uma canção de Camões, mas já tinha sido contratado em Assis, para ser professor, e posteriormente em Araraquara.
Uma ampla e divulgada história epistolar dá conta de como o autor esteve à mercê do fascismo beato português, e como, ao se exilar no Brasil, abandonou definitivamente a carreira de engenheiro e se tornou docente. Desse tempo, em que defendeu vociferadamente a necessidade de um maior diálogo entre Brasil e Portugal, Sena conseguiu se dedicar mais à prosa, no intervalo de 1958 a 1965, e redigiu ensaios incontornáveis sobre a poesia de Camões e Pessoa, entre outras dezenas de traduções.
Para Mécia de Sena (1984, p. 6), Sinais de fogo contempla o “ponto de viragem do panorama político e social europeu”. E poderíamos acrescentar que toda a produção literária que envolve o romance, contos e traduções são atravessadas por uma situação de urgência política e histórica diante do Golpe de 1964, e são tentativas de articulação entre o passado e o presente.
A saída do liceu e o que seria um dolce far niente nas férias de verão do jovem Jorge são rasgadas por uma violenta iniciação política, amorosa, e poética:
De repente, ouvi de dentro da minha cabeça uma frase: “Sinais de fogo as almas se despedem, tranqüilas e caladas, destas cinzas frias”. Olhei em volta. De onde viera aquilo? Quem me dissera aquilo? Que sentido tinha aquela frase? Tentei repeti-la para mim mesmo: Sinais de fogo… mas esquecera-me o resto. Com esforço, reconstitui a seqüência: sinais de fogo os homens se despedem, exaustos e espantados, quando a noite da morte desce fria sobre o mar…” (Sena, 1984, p. 113).
As reverberações da Guerra não só quebram a antinomia entre pureza e degeneração, como também a descoberta de que “a causalidade é que criava o dilema da autonomia ou da fatalidade”, pois “onde não há causas, nem motivações, não há relação necessária entre o gesto que desencadeia e o processo desencadeado” (Sena, 1984, p. 219), como se observa nesta passagem:
Senti, em mim, uma tristeza que me empalidecia ou escurecia a claridade da bem-aventurança. Não que esta diminuísse. Mas a tristeza era rodeada por ela que se insinuava lentamente por ela dentro, e eu quase que lhe distinguia os veios escuros que se ramificavam, como quando, num copo de vidro, vemos o café avançar, antes de misturado com o leite. Não era a depravação da vida o que me chocava e me entristecia. Nem que a pureza me parecesse uma cidadela ameaçada e inatingível. Precisamente uma das coisas que eu, por experiência, ia aprendendo era que ambas coexistiam da maneira mais insólita e nas situações mais inesperadas. Havia assomos de pureza profunda, em seres e em momentos de degradação total; e as pessoas puras nunca o eram tanto, que alguma degradação as não rodeasse, que elas aceitavam. O que me doía e me inquietava não era isso, mas que a pureza e
a degradação se misturassem tão inextricavelmente, dependessem tão intimamente uma da outra, que às vezes se
pudesse não saber não só se as motivações de uma não seriam as logicamente da outra, mas também a que ponto uma não era a outra. […] Era como se, não a pureza e a depravação fossem dois mundos diferentes, mas as pessoas os acabasse formando: de um lado, os que podiam fazer de tudo, sem que o mal os marcasse; e, do outro, os que, ao mínimo gesto que fizessem, ficavam marcados irremediavelmente (Sena, 1984, p. 174).
Em tal projeto de ficção planejado aqui, em São Paulo, Sena imaginou escrever um ciclo de textos ao redor desse romance, como forma de contemplar a infância e primeira adolescência de Jorge. No entanto, esse intento não se realizou porque os ares se tornaram “peculiares”, aqui, no Brasil, em 1964, daí ter decidido aceitar a cátedra de literatura portuguesa nos Estados Unidos e se exilado novamente.
Assim, o que seria a infância de Jorge, Sena conseguiu deixar poucos, mas reveladores contos de como, para ele, os problemas políticos estavam completamente entrelaçados aos problemas morais. Se não se reconhece em Sinais de fogo a idealização da luta revolucionária espanhola, nem uma crítica contundente à legitimação do regime antidemocrático de Franco, visivelmente se percebe uma voz rapsódica que se recusa a cantar uma história coesa da pátria portuguesa e intercepta outros lugares, além da língua, pele, sexo – índices de referencialidade tradicionalmente utilizados para fundamentar o conceito de identidade cultural – e segue rumo à construção de uma transnacionalidade que suspende e interpela as cristalizadas noções de raças e geografias, como se pode observar na leitura do conto a seguir.
III. Exílios e peregrinações
O conto “Homenagem ao papagaio verde”, escrito ao longo do mês de junho de 1962, apresenta-se como uma das mais ternas e ao mesmo tempo irônicas e inquietantes reflexões sobre a relação da ex-metrópole portuguesa com o Brasil e a África. Se à primeira vista esse texto memorialístico nos conta do abusado e opressor mundo dos adultos na vida de uma criança, da amizade entre um enclausurado filho único e um exuberante animal de estimação, no gesto da leitura, outras narrativas rapidamente se cruzam, dinamizam esse enunciado e nos arremessam para bem longe da casa portuguesa, rumo a uma complexa trama que se constrói num cambiante jogo memorialístico capaz de tencionar barbárie e civilização, o mesmo e o outro, alegria e nostalgia, amor e ódio, Brasil e África.
E o que une o menino narrador com outras terras é um papagaio. Ou melhor, dois papagaios: um, o papagaio verde, o brasileiro; o outro, o papagaio cinza, o africano. O primeiro é descrito como um “ser maravilhoso”, uma “ave grande”, “vistosa”, “corpulenta”, “transbordante de presunção e dignidade”; o outro, o angolano, “cinzento”, de “cores baças”, sem “humor involuntário”, “retraído”, “friorento”, que “tinha apenas de simpático o olhar nostálgico, melancólico, e a mansidão muito dócil do resignado e acorrentado escravo” (Sena, 1978, p. 28).
Nessa altura, provavelmente Sena já havia lido Macunaíma. Rira talvez da “Oropa”, do elogio ao plágio e do trapaceiro papagaio narrador, testemunha debochada que conta e repete os feitos do nosso herói sem nenhum caráter. Identificou-se talvez com a sátira corrosiva, e suspeitou que essa ave “sem pouso e identidade, que desconstrói a visão estagnada de cultura e desconfia das idéias fixas e dos lugares comuns” (Souza, 1999, p. 14), além de metaforizar a identidade brasileira, a repetição mimética, possuía, paradoxalmente, aguda afinidade e extrema diferença com o que sentia em relação a sua própria origem, a sua própria pátria.
Antes de desenvolver este ponto de discórdia relacionado aos exílios voluntários, há muito trabalhado produtivamente pelos estudos senianos, gostaria de marcar algumas questões no âmbito do enunciado desse conto. Primeiro como a afinidade eletiva do menino com o papagaio brasileiro se deu, paulatinamente, através de uma aproximação corporal. A dedicada e veemente amizade, capaz de criar um ponto de fuga no neurótico romance familiar europeu, é uma contraposição à casa triste e soturna.
A solidão acorrentada, a incapacidade de comunicar, o isolamento estudioso, tudo se resolvia no entendimento e na camaradagem de olhares cúmplices entre menino e bicho. Justamente nesse ponto, o conto e o célebre poema “Em Creta, com o Minotauro” se espelham e se iluminam reciprocamente. Esse poema, escrito três anos após o conto, em 1965, bem perto de Sena partir para os Estados Unidos, é emblemático para entender como o exílio em sua obra se dá tanto em termos temporais quanto espaciais, e como, para muitos críticos, a sua obra é o “resultado de uma cristalização das viagens e do exílio do poeta” como também “experiência e autobiografia” (Jackson, 2002, p. 180), que, em permanente errância, após o salazarismo, colecionou “nacionalidades como camisas se despem” (Sena, 1989, p. 75).
“O Minotauro compreender-me-á”, diz o eu lírico do poema (Sena, 1989, p. 75) e é o que parece dizer o menino sobre a ave brasileira. Tal como os adultos do conto, tidos como “caprichosos”, “volúveis”, “imprevisíveis”, “ilógicos” e “hipocritamente cruéis” (Sena, 1978, p. 27), o Minotauro, metade boi e metade homem, é quem entende o poeta em Creta. O papagaio e o Minotauro, na assimetria da língua, da cor, da raça, dos índices de pertencimento, comungarão o necessário cotidiano:
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver
vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos (Sena, 1989, p. 75).
Conto e poema trafegam, assim, entre o coloquial e o lírico numa dramatização disfarçada em relatos de viagem. Como bem notou David Jackson (2002, p. 180), Peregrinatio ad loca infecta é uma “dramatização – mítica, filosófica, retórica, metafórica – de uma profunda consciência poética que questiona a verdadeira natureza das nossas crenças e instituições, em cena de viagens peripatéticas, mas politicamente necessárias, ao poeta”.
Jackson (2002, p. 184) remete o poema a uma atualização de temas camonianos, como o exílio, o encontro com seres mitológicos do mundo das viagens, além de certo fundo barroco, contraposição de contrários, permeado por um erotismo sadoerótico (como também é marcante na relação entre o pai e a mãe do menino do conto):
A natureza híbrida do Minotauro – “metade boi e metade homem, como todos os homens” – funciona como metonímia com a qual o poeta exprime a sua profunda decepção “com a pouca humanidade do mundo”. Os “inimigos da vida” incluem não só as bestas que violam e devoram virgens, mas também os sábios e “toda esta merda douta que nos cobre há séculos”. O narrador rejeita a pretensa cultura literária, que serve apenas para embelezar uma “langue” e distancia-se dos heróis, todos, como Teseu, “um filho da puta”. O Minotauro substitui os homens desumanos e civiliza-se, trocando o cru para o cozido. “Aprende a tomar café e é o único ser capaz de compreender o poeta”.
No final do conto, o menino demonstra que aprendeu a língua do matreiro linguajar do brasileiro papagaio. O conto poderia, assim, estar incluído no Peregrinatio ad loca infecta. Convém lembrar que esse título é uma provocadora subversão do título de outro livro Peregrinatio ad loca sancta, um guia do peregrino na Terra Santa. Para compreendermos essa peregrinação poética de Sena, fundamentada em Camões e Rimbaud, torna-se necessário lembrar que Peregrinatio ad loca infecta significa, segundo o escritor português:
Em latim, infectus não quer dizer o que passou a dizer em português, mas sim “inacabado”, “não atingido”, “infactível”,
“impossível”. Eu deixei que a palavra sugerisse ao leitor português desprevenido o que na verdade não significa como
equivalência para uma coisa mais complexa: a dificuldade de existir-se em estado de exílio (estado de que nem mesmo um regresso nos salva e recupera) (Sena, 1988, p. 76).
Também no pensamento itinerante de Benjamin, expressão cunhada por Blanchot para descrever a eleição da forma fragmentária por Nietzsche, a realização da obra não busca a totalidade, como nos românticos de Iena. Nesse tipo especial de escrita, há uma exigência de descontinuidade e de inacabamento: “a interrupção é necessária em toda a seqüência de palavras; a intermitência torna possível o devir; a descontinuidade assegura a continuidade do pensamento” (Blanchot, 2001, p. 132). O intervalo, assim, é que permite a alternância do diálogo. Nesse sentido, encontramos também referência aos surrealistas, a premissa da necessidade do despertar, a importância dos sonhos e, claro, o antissubjetivismo. Em Benjamin, vale negritar, a questão do gênero encontra-se completamente associada à questão do sujeito, logo, à enunciação.
Não é à toa que Sena utiliza-se tanto da primeira pessoa, e a data como um traço que intervém no corpo do enunciado poético e ficcional. 1964 joga luz na década de 30 do século das catástrofes. Não responde empaticamente à história, mas, como agudamente pontua Jorge Lourenço (2002, p. 412), propositalmente usa o calendário:
A data dos poemas, em Jorge de Sena, não é um elemento ficcional e sim um radical de temporalização do poema, isto é, da sua radicação num contexto referencial associado a um vivido existencial. A datação dos poemas é um procedimento da poética seniana do testemunho, cuja ancoragem referencial tem como elemento complementar o espaço, ou o lugar.
Até essa etapa da pesquisa, não encontrei nenhuma notícia de que Sena chegou alguma vez a ler Benjamin. Mas, em comum, sei que foi o primeiro autor que levou não só a poesia surrealista como os textos teóricos, prenhes de aspectos técnicos, para Portugal. Leu Marx e rejeitou a concepção positiva de história. Desassossegadamente, através de uma ironia mordaz e uma lucidez satírica, optou por construir uma obra em que os semáforos poéticos tivessem força de intervenção e de resistência. E articulou tempos e espaços para que ambos, passado e presente, sejam passíveis de serem reinventados.
Referências
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LOWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, (tradução das teses) Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Muller. São Paulo: Boitempo, 2005.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. Tradução Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Survivance des lucioles. Paris: Les Éditions de Minuit, 2009.
JACKSON, David K. Em Creta com o minotauro. In: Século de ouro: antologia crítica da poesia portuguesa do século XX. Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga: Ângelus Novus; Cotovia, 2002.
LOURENÇO, Eduardo. As evidências de Eros. Colóquio Letras. Lisboa, n. 67, maio 1982.
LOURENÇO, Jorge Fazenda. Sobre esta praia. In: Século de ouro: antologia crítica da poesia portuguesa do século XX. Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga: Ângelus Novus; Cotovia, 2002.
LOWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, (tradução das teses) Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Muller. São Paulo:
Boitempo, 2005.
SENA, Jorge de. Homenagem ao papagaio verde. In: Os grão-capitães: uma seqüência de contos. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1978.
SENA, Jorge de. Poesia III. Lisboa: Edições 70, 1989.
SENA, Jorge de. Sinais de fogo. (Monte Cativo -1). 4. ed. Lisboa: Edições 70, 1984.
SENA, Jorge de. Sobre o romance. Ingleses, Norte-americanos e outros. Lisboa: Edições 70, 1986.
SENA, Jorge de. In: LOURENÇO, Jorge Fazenda. Um século de poesia (1888-1988). Lisboa: A Phala, 1988.
SENA, Jorge de; FERREIRA, Vergílio. Correspondência. Organização e notas Mécia de Sena. Introdução de Vergílio Ferreira. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1987.
SENA, Mécia de. Introdução à terceira Edição. In: SENA, Jorge de. Sinais de fogo. (Monte Cativo -1). Lisboa: Edições 70, 1984.
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
NOTAS
1 Professora do curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: sabrinasp@terra.com.br
FONTE: SEDLMAYER, Sabrina. “Sinais de fogo, aviso de incêndio: ideias estéticas, históricas e literárias em Jorge de Sena e Walter Benjamin”. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê, Nov. 2010. Disponível em: http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie05/