Remetentes e destinatários: “Caríssimo Jorge”, “Querida Sophia”

A correspondência trocada entre Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen é um dos livros mais conhecidos desses escritores. Motivada pelo exílio de Sena em 1959, a correspondência se estendeu até a morte do poeta em 1978, com períodos mais intensos e outros mais esparsos. Marcada pelo clima de censura, a saudade da convivência, as opiniões literárias e poéticas, essa troca de cartas é um importante documento histórico do século XX português. Partindo daí, Lucas Laurentino procura analisar os poemas-cartas de Sena e Sophia, seu significado à luz das cartas “verdadeiras” e para a poética geral dos autores, assim como o seu sentido histórico de resistência aos “tempos sombrios” do salazarismo.

Lucas Laurentino de Oliveira

Todas as cartas…
(Fernando Pessoa/Álvaro de Campos)

Estamos em 2019 e, ao que tudo indica, o gênero epistolar se encontra em desuso. Sendo um gênero cujas primeiras manifestações remontam ao século IV a.C. (VASCONCELOS, 2008, p. 374), é possível pensar que as últimas gerações, a partir das que nasceram em torno das décadas de 1980 e 1990, sejam as primeiras em mais de dois mil anos a crescerem num ambiente cultural em que a troca de cartas pessoais não é uma realidade apreensível. Obviamente uma afirmação como esta corre o risco da generalização homogeneizante, pois a troca de cartas, em épocas anteriores, se restringia a determinadas elites intelectuais e econômicas e a distribuição tecnológica é desigual, levando-nos a pensar que ainda hoje é possível que se troquem cartas pessoais. Se a nossa vivência cultural atual não admite a correspondência epistolar como um meio de comunicação efetivo, isso não significa que este gênero não desperte mais interesse. Pelo contrário, é ele que, além de ter propiciado as formas básicas para novos gêneros (sendo o e-mail o mais representativo), adquire à medida que o tempo passa um valor cada vez mais múltiplo: documental, histórico, literário-artístico, e mesmo de curiosidade. Por se distanciar da facilidade de troca de mensagens que temos hoje, o gênero epistolar carrega consigo os traços marcantes de períodos inteiros, evoca não só a língua utilizada pelos missivistas, como também sua época, seus costumes, inclusive seu modo de conceber o mundo.

Parece ser nesse sentido que vão as palavras de Walnice Galvão em sua entrevista à revista Teresa: “A disseminação do computador acabou com a carta e, na hora em que a matou, descobriram que era um objeto precioso” (GALVÃO, 2008, p. 15). Curiosamente, segundo a autora, o que ocorreu foi como uma “elegia” ao gênero. A consciência da perda fez com que o valor próprio da carta, independentemente da qualidade do seu conteúdo, crescesse de maneira exponencial. Certamente as cartas tinham e têm um valor inegável para os estudos históricos e linguísticos, mas o que se viu foi a crescente atenção para o gênero também nos estudos literários. A preocupação com os “paratextos” dos autores expandiu-se e borrou até mesmo a própria noção de obra.

Se antes era mais ou menos assente que a obra de um autor se limitava aos textos que este se ocupou em publicar, após a valorização dos “paratextos” essa noção se viu bastante complicada. Conforme os questionamentos postos por Foucault em sua conferência de 1969 “O que é um Autor?”: “O que é pois essa curiosa unidade que se designa com o nome obra? De quais elementos ela se compõe? Uma obra não é aquilo que é escrito por aquele que é um autor?” (FOUCAULT, 2009, p. 269). Se o “campo da literatura está se expandindo” (GALVÃO, 2008, p. 21), as consequências disso se desdobram para os diversos níveis dos estudos literários. Mesmo que haja um progressivo movimento de incorporação dos escritos não públicos dos autores às suas obras completas (diários, correspondência, anotações etc.), não é sem problemas que ele ocorre.

Além da necessária e sempre debatida questão ética relativa à privacidade dos autores, no que toca às publicações póstumas, surge também uma igualmente importante questão estética. Não foram poucos os escritores que se deram o trabalho de organizar a sua obra. Logo, estudá-las valendo-se de tais “paratextos” não é uma tarefa livre de tensões. Como organizaríamos obras que necessariamente se apresentariam múltiplas e por vezes contraditórias, considerando as possíveis versões de um mesmo texto, em que medida elas contribuiriam para a interpretação da versão final? E, do mesmo modo, quando existe mais de uma “versão final”, já que o mesmo poema aparece publicado com alterações em diferentes livros? A mais recente é a mais válida? Como o estudo dos ditos “paratextos” contribuiria para resolver essas questões e que outras questões levantaria? Paralelo a isso, o próprio ato de publicar, tornar algo público, adquire sentidos diversos quando se publica um diário íntimo, por exemplo. Escritores como Maria Gabriela Llansol jogam com essa tensão público-privado ao intencionalmente fazerem de seus textos particulares, os diários e cadernos, a própria obra a ser publicada.

Há que considerar, ainda, o fato de não serem publicadas as correspondências de quaisquer pessoas, mas daquelas que tiveram alguma relevância pública. Grandes poetas, ficcionistas, políticos etc. No entanto, se é legítimo publicar as cartas dessas personalidades, por que não o fazer com todos os missivistas? Seus relatos pessoais, dramas, dificuldades financeiras, problemas familiares não interessam ao público? Mas por que o das personalidades sim? Por outro lado, se as cartas dos ilustres desconhecidos contiverem um evidente ou apreensível valor estético, por que não as publicar também? Conforme Walnice Galvão, “pense nas cartas da Madame de Sévigné, por exemplo. Ela faz parte da história da literatura só pelas cartas que escreveu, já que não deixou qualquer obra literária. […] Escrevia alta literatura” (2008, p. 17).

Neste sentido podemos entender a curiosa ambiguidade atribuída à palavra espólio: ao mesmo tempo o que é tomado à força ao inimigo e o conjunto de bens deixados por uma pessoa ao morrer (cf. ESPÓLIO, 2009). Não é raro nos referirmos à reunião de papéis deixados pelos escritores como o seu espólio. Seguindo, apesar de não ser regra, é relativamente comum que se procure publicar preferencialmente a correspondência e os diários de autores já mortos (no caso da correspondência, pelo menos de um dos missivistas). Seria então esse ato de publicar o que o autor não conseguiu ou não quis também um espoliar? Há certamente os casos, talvez os mais comuns, em que tal esforço é engendrado pelos descendentes da referida pessoa, seus filhos, netos etc., que, como herdeiros, são também proprietários dos papéis, inclusive dos direitos autorais. A partir desta visão dupla do espólio, podemos refletir sobre a possibilidade de que o que produzimos, no momento em que é fixado em um suporte, deixa de ser exclusivamente nosso e adquire uma qualidade pública inerente aos objetos que aparecem no mundo. Esse caráter público, ainda que se encontre em diários íntimos, priva-nos parcial ou completamente do poder que temos sobre os produtos de nossa atividade.

É curioso que o próprio gênero epistolar tenha, nas suas primeiras manifestações, um elemento ambíguo em relação à privacidade. Como afirma Silva:

As cartas de cunho filosófico [de Cícero e de Sêneca], geralmente extensas, eram dedicadas a amigos ou escritas a pedido de amigos. Embora elas trouxessem registrado o nome do destinatário, eram escritas para serem lidas por um público amplo e permitirem a difusão e socialização de ideias (2002, p. 53).

Os modelos de epístolas traziam consigo uma intenção de serem lidos por mais pessoas que os destinatários explícitos. Silva (2002, p. 55) menciona como a troca de cartas entre cientistas e filósofos deu origem aos primeiros artigos científicos, ou seja, uma correspondência privada influenciando a produção do que se tornaria público. E é possivelmente esta ambiguidade inicial do gênero epistolar que nos impulsione a ver na correspondência matéria de grande importância para compreendermos melhor a visão de mundo desses escritores, políticos, artistas, filósofos, e interpretarmos suas obras de modo mais afim com a maneira como eles mesmos as viam.

No entanto, deve-se ressaltar,

a carta missiva vem sempre envolta em sigilo: ora envolvida por uma fita, ora marcada com um carimbo, sinete ou lacre. Hodiernamente, estes foram substituídos pelo envelope fechado, muitas vezes acrescido da observação “confidencial”, não podendo ser abertas por outrem, que não o destinatário; em caso contrário, constitui-se uma contravenção. As cartas têm caráter íntimo e/ou confidencial (VASCONCELOS, 2008, p. 374).

Se as questões teóricas a respeito da publicação de textos escritos sem essa intenção não encontram uma resposta inteiramente satisfatória, no âmbito legal é necessário que se assuma uma posição mais pragmática. É por isso que temos leis de direitos autorais, por exemplo, e no Brasil está previsto no inciso XII do artigo 5.º da Constituição de 1988 a inviolabilidade da correspondência e de outros dados de comunicação (Art. 5.º, BRASIL, 1988). A tarefa do Estado é garantir que esse direito seja respeitado para toda a população. Mas e quando é o próprio Estado que o viola?

É a partir desta problemática que adentramos o livro Correspondência 1959-1978 (ANDRESEN; SENA, 2010), cuja primeira edição é de 2006. Este volume reúne as cartas e postais trocados pelos poetas portugueses Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena desde o momento em que Sena se exila no Brasil até a sua morte, em 1978. Quando sai a primeira edição das cartas, os dois autores já se encontram mortos, Sena há quase trinta anos, Sophia há apenas dois. É a Mécia de Sena, viúva do poeta, em parceria com a filha mais velha de Sophia, Maria Andresen de Sousa Tavares, que se deve a organização do volume e é da sua nota introdutória que destacamos o motivo já visto antes e em outros textos: “Em primeiro lugar, a importância da preservação e edição deste tipo de escrita pois, como se sabe, quer o género epistolar, quer a forma de comunicação por carta morreram” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 16). Assim, um dos principais motivos para a publicação é a preservação do estilo de um gênero. Mas nesse caso não é o único e talvez não seja o mais relevante. Como Maria Andresen afirma logo a seguir, “há uma beleza nesta Correspondência entre dois gigantes humanos, senhores de uma palavra que aqui surge na rudeza de uma imediaticidade cuja hubris por vezes é maravilhada, por vezes é truculenta” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 17). Desta forma, não só o caráter documental e de pesquisa, mas também e principalmente o testemunho de uma amizade entre grandes figuras, que fizeram da troca de cartas uma verdadeira experiência poética, é o que motiva a publicação desta correspondência.

Essa correspondência surge de uma cisão, uma circunstância socioeconômica alheia às vontades dos missivistas. Isto porque a troca de cartas só se inicia depois do exílio a que Jorge de Sena se vê forçado devido a perseguições políticas e à falta de emprego (tinha sete filhos quando veio para o Brasil). É assim que a primeira carta de Sena efetivamente destinada a Sophia tem como endereço a cidade de Assis, em São Paulo. É relevante ainda indicar como Sena a inicia: “Esta carta não é ainda a de ‘novas’ do Brasil, a cuja liberdade até nos custa a habituar, de anquilosados que chegamos aqui” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 30). Nota-se como a primeira menção na carta é à liberdade, visto que nesse momento Portugal vivia sob o salazarismo e o Brasil ainda era um país democrático. A falta de liberdade em Portugal, a sensação de sufocamento, de opressão de um regime que àquela altura já se estendia por quase trinta anos, é oposta à liberdade brasileira, e Sena reiterará isso várias vezes ao longo da correspondência.

Nesse espírito, a resposta de Sophia é marcada pela expectativa em relação ao amigo, pelo desejo de que ele desfrute essa liberdade para exercer seu ofício de poeta: “Espero que aí encontre tempo, paz, liberdade e disponibilidade para poder antes de tudo trabalhar na sua obra. Que você possa escrever a ‘obra do meio da vida’” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 33). É digna de nota essa primeira troca de cartas porque ela marca não só o primeiro contato após o afastamento, mas também a ânsia de liberdade buscada pelos poetas.

Sena se exilou do país com a família por causa da ditadura e seus desdobramentos, ao passo que Sophia lá permaneceu com o marido e os filhos durante todo o período, no qual ela viajou para a Grécia, Roma, França, Algarve, Brasil, entre outros lugares. A sua permanência, no entanto, não foi inteiramente livre de problemas. A Pide (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) oferecia um perigo real e bastante próximo à poeta, que não se furtava a envolver-se em questões políticas. Consequência disso é a carta de 11 de outubro de 1962, na qual ela relata que a “P.[I.D.E.] esteve em nossa casa revistando e levou todas as suas cartas” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 65). O confisco das cartas de Sena é um momento marcante para a correspondência, visto que após esse evento Sophia não mais se sentirá segura para falar abertamente qualquer coisa que envolvesse a política nacional (ainda que pouco já fosse falado explicitamente nas cartas).

Assim, retomamos a questão anterior: E quando é o Estado que viola a privacidade da correspondência? A ausência de liberdade num regime ditatorial não implica apenas a falta de eleições gerais, amplas e honestas, nem a impossibilidade de manifestar-se publicamente contra a situação política, mas também a progressiva perda de espaço próprio, de um ambiente privado. A vigilância constante cria um estado de coisas em que não se tem certeza do que deve ser dito, como isso será interpretado caso alguém indevido ouça/leia, e a palavra pouco a pouco perde seu espaço, tende a se limitar ou criar um sistema de códigos em que tudo passa a significar outra coisa, como forma de burlar a censura.

A violação de correspondência se mostra em franca oposição ao próprio caráter da carta pessoal, conforme Silva indica: “o remetente […] pressupõe que o que é dito se dá em privacidade ou em ‘segredo’, isto é, o que se diz na carta restringe-se àquele(s) que, através dela, interage(m)” (2002, p. 103). Não há como se sentir seguro em um ambiente que não respeita o aspecto privado dos seus escritos e, mais do que isso, ainda pode usá-los como “prova” contra o autor. Desse modo, o que é dito na correspondência aparece quase sempre sob o risco de não chegar ao destinatário, de que as palavras sejam interditadas em seu trânsito.

Sena responde com certa ironia à notícia dada por Sophia: “Nunca imaginei que a P[IDE] se tentasse com meus autógrafos…” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 68-69). A suspeita decorrente da situação política portuguesa adquire uma materialidade incontestável diante deste evento e por isso os missivistas passam a tomar ainda mais cuidado na troca de informações, especialmente Sophia, que, a título de exemplo, não menciona as prisões sofridas pelo marido em decorrência de sua atividade política antissalazarista (CASTRO, 2016).

Com efeito, conforme consta em uma nota de rodapé, uma carta de Sena a Sophia, datada de 4 de junho de 1962, fora encontrada nos arquivos da Pide (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 58). A poeta, meses antes, havia participado de um congresso de escritores na Itália e da França remetera a carta para o amigo. Lá, pôde falar abertamente sobre seus posicionamentos políticos, inclusive mencionando o caráter antifascista do evento. Ao indicar a intenção eminentemente política do congresso, Sophia ainda diz que a Agustina Bessa-Luís, com quem fora para a Itália, não pôde dar maiores explicações antes, pois “como só falou por carta, num país de correspondência vigiada nada [pudera] dizer” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 53). Por sinal, sua desconfiança é patente ao longo de toda a carta. Vemo-la ainda em mais duas passagens: “Peço-lhe a maior prudência quando me escrever. Não sei o que será a minha volta a Portugal” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 55) e “Peço-lhe que me diga imediatamente e discretamente que recebeu esta carta” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 56). Talvez seja por isso que a resposta de Sena venha com um P. S. pedindo a acusação imediata de recebimento e o seu conteúdo pouco verse sobre o que Sophia lhe dissera a respeito do congresso. A carta seguinte àquela em que Sophia informa sobre as apreensões da Pide explicita seu “medo de que o correio esteja muito vigiado agora” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 66).

Dada uma situação como esta, em que não é seguro que sua privacidade epistolar seja garantida e as palavras precisam ser contidas, medidas, cuidadosas, sentimos em cada linha, em cada situação, o profundo desejo de comunicação que os autores alimentam, sua necessidade de dizer, de informar o outro do que pensam em termos de literatura, de vida, do trabalho, de tudo o que possa aproximá-los de alguma forma. A carta, enquanto tecnologia de comunicação, é um meio de disjungir o tempo e o espaço, de subverter a necessidade de presença dos falantes para que possam se comunicar. E neste caso as cartas servem também para que expressem a admiração mútua, que procurem dar seu parecer a respeito das respectivas obras e do que cada um andou vendo e conhecendo.

Sophia, na primeira carta que remete a Sena, diz: “você sabe que eu tenho a maior vocação para falar ao telefone e nenhuma vocação para escrever cartas” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 33). Se podemos encontrar um componente de verdade nesta afirmação, a partir da leitura das suas cartas, nas quais os assuntos se sucedem de modo pouco ordenado e há encerramentos abruptos, como reagimos diante de um poema como “Carta aos amigos mortos”, presente em Livro sexto (1962), ou mesmo “Carta(s) a Jorge de Sena”, presente em Ilhas (1989)?

Neste passo, nos deparamos com um dos poemas mais famosos de Sena, “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, de Metamorfoses (1963), datado de 25 de junho de 1959, às vésperas da sua partida para o Brasil. Sem contar o fato de que ambos os poemas são publicados em coletâneas cronologicamente próximas, deve-se destacar que eles parecem manter uma relação estreita com a prática da correspondência. De fato, Sena escreve a sua “Carta a meus filhos…” quando está prestes a sair de Portugal, enquanto Sophia, que não tinha por costume datar os próprios poemas, parece ter escrito a sua “Carta aos amigos mortos” após começar a correspondência com Sena.

Com isso, temos dois poetas que, além de se corresponderem, se não profusamente, com admirável dedicação, também resolveram intitular poemas próprios de “cartas”. Em relação a Sena temos o seguinte: o único poema cujo título segue a estrutura “carta a X” é o referido “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”. Além deste, temos um intitulado “Tendo lido uma carta acerca de um livro que oferecera”, presente em Post Scriptum, coletânea de poemas que foram publicados no volume Poesia I (1961). Um outro poema também merece atenção, “A Sophia de Mello Breyner Andresen enviando-lhe um exemplar de ‘Pedra Filosofal’”, presente em Peregrinatio ad loca infecta (1969), porque além de ser dedicado à poeta, é inserido na Correspondência pelas organizadoras, como que abrindo o diálogo poético que se dá entre os autores. Deste modo, em Sena, temos somente um poema que se apresenta explicitamente como uma carta.[1]

Quanto a Sophia, além do já mencionado “Carta aos amigos mortos”, temos “Carta de Natal a Murilo Mendes” e “Carta a Ruben A.”, ambos presentes no volume O nome das coisas (1977), o também referido “Carta(s) a Jorge de Sena”, presente em Ilhas (1989) e no mesmo volume “Carta a Maria do Carvalhal Alvito”. Além destes, temos “Dedicatória da terceira edição do ‘Coral’ ao Ruy Cinatti” e “Dedicatória da segunda edição do ‘Cristo Cigano’ a João Cabral de Melo Neto”, também os dois aparecendo em Ilhas, “Para o Ernesto Veiga de Oliveira no dia de sua morte”, presente em Musa (1994) e o poema V da seção “Deriva” de Navegações (1983), que, segundo a autora, “é uma glosa livre da Carta de Pêro Vaz de Caminha” (ANDRESEN, 2015, p. 62). À diferença de Jorge de Sena, Sophia tem cinco poemas apresentados explicitamente como cartas, todos eles endereçados a pessoas mortas. Neste artigo, vamos nos ater aos poemas que dialogam explicitamente com os autores, a saber, “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, “Carta aos amigos mortos” e “Carta(s) a Jorge de Sena”.

Primeiramente, há que perguntar: por que carta? É necessário, antes, indicar a especificidade do gênero epistolar. Quanto a isso, temos com Marcuschi (apud Silva, 2002, p. 29) que os gêneros

São formas textuais estabilizadas, histórica e socialmente situadas. Sua definição não é lingüística, mas de natureza sociocomunicativa. Poderia dizer que os gêneros são propriedades inalienáveis dos textos empíricos e servem de guia para o produtor e o receptor.

Se os gêneros não são apenas categorias segundo as quais classificamos os textos, mas propriedades textuais, indissociáveis do contexto sociocomunicativo do qual emergem, pode-se pensar numa plasticidade e mobilidade que possibilitam a junção de gêneros diferentes num mesmo texto. Desse modo, não é absurdo pensar em poemas com a forma de receitas culinárias ou propagandas que simulam conversas por SMS. E sendo assim, chamar um poema de carta não soa nem mesmo estranho, muito menos absurdo. No entanto, deve-se considerar a intencionalidade que motiva esse tipo de nomeação. Poemas há que se intitulam “poema” e demonstram uma autoconsciência de serem o que são, poemas, integrando um rol de produções ditas poéticas, comportando determinados elementos e características que nos fazem identificá-los como tais. Não precisamos, no entanto, de um poema que tenha por título “poema” ou algo do tipo para interpretá-lo enquanto produção poética, do mesmo modo que não nomeamos cartas de cartas. Com isso, não leremos “Carta a meus filhos…” ou “Carta aos amigos mortos” como pertencentes ao gênero epistolar. Mas por que não? O que há nesses textos que não nos permite lê-los como lemos as cartas trocadas entre Sophia e Sena, por exemplo? Sabemos que elas estão permeadas de momentos poéticos, inclusive com referências a poemas que tinham acabado de ser escritos e de rascunhos do que futuramente serão poemas. Dizer apenas que é porque estão dispostos em versos não parece suficiente, visto que ambos os poetas escreveram poemas em prosa, e afirmar que é porque estão em livros de poesia também aparece com igual insuficiência. Mas será?

Se os gêneros são situados histórica e socialmente e abrimos um livro que contém diversos textos do gênero poesia, talvez a nossa primeira leitura seja a de vê-los como poemas mesmo. Até porque a publicidade, no sentido de coisa pública, dada ao poema que se quer publicado, o distingue bastante do objetivo da carta pessoal, com o sigilo, a privacidade. No entanto, há um tipo de carta que tem por fim justamente a publicização: é a carta aberta. “Esse gênero tem como finalidade discursiva publicizar algo — seja para difamar ou para promover, por exemplo, uma pessoa pública, o serviço ou proposta política de uma empresa, de um órgão estatal ou não” (SILVA, 2002, p. 73).

Nesse caso, seria mais apropriado pensar nos poemas como “Carta [aberta] a meus filhos…” ou “Carta [aberta] aos amigos mortos”? Apesar do endereçamento explícito contido nos dois textos, a presença deles em um livro faz com que adquiram importância pública, e circulem por leitores que os remetentes nem conheçam. É neste sentido que os “filhos”, pessoas que podem ser empiricamente referidas, aos poucos se expandem em termos de alcance e se tornam todos os potenciais destinatários do texto, inclusive aqueles não humanos. “Meu muito bem-amado filho entre outros” (SENA, 2009, p. 18) é como Jorge de Sena se refere ao personagem do físico da novela O físico prodigioso quando da sua reedição independente, e por extensão, à própria novela enquanto obra literária. Desta maneira, é possível que ele viesse a ver textos seus como “filhos” no sentido que conferiu à palavra no poema. Interessante também é ver que no poema dedicado a Sophia temos o primeiro verso “Filhos e versos, como os dás ao mundo?” como que irmanando os filhos-humanos e os filhos-poemas num só questionamento, respondido com certa confiança na mesma nota introdutória à reedição d’O físico prodigioso:

E basta de explicações, uma vez que O Físico Prodigioso, ao que posso deduzir da fé que tenho nele e que outros igualmente têm tido, sabe perfeitamente viver ou morrer (para mais viver) inteiramente por si mesmo, sustentado pela força do amor que tudo manda, e pelo ímpeto da liberdade que tudo arrasa (SENA, 2009, p. 21).

Este “bem-amado filho” se junta aos outros, talvez como nota de esperança em resposta à profunda amargura e incerteza com que Sena desenvolve sua “Carta”. É precisamente a insegurança em relação ao futuro, um futuro biograficamente turbulento, marcado por duas “fugas”, a primeira para o Brasil e a segunda para os EUA, de afastamento dos amigos próximos, como Sophia, mas também um futuro de humanidade pós-Segunda Guerra, que precisa lidar com as tecnologias científicas e políticas que criou e que não desaparecerão, cujos riscos não podem ser simplesmente ignorados. É a consciência atormentada de um pai/mãe que assume implicitamente a falha da sua geração e a herança que lega para a posteridade. É também a consciência de que “nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento” (ARENDT, 2016, p. 28), segundo as palavras de Hannah Arendt citando René Char na abertura de Entre o passado e o futuro (1968):

O testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para um futuro. Sem testamentos ou, resolvendo a metáfora, sem tradição […] parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem (ARENDT, 2016, p. 31).

No caso de Sena, não só sua geração é das que receberam a “herança sem testamento”, num Portugal marcado por sucessivas convulsões políticas, desde a instauração de uma República “às pressas” até a ascensão do Estado Novo, como também, e é o que o poema parece perguntar, é das que não sabem qual a herança possível a ser deixada para o futuro. Que testamento escreveremos para esta herança? Há herança? Segundo o Sena de “Carta a meus filhos…”, a herança é um sonho, um desejo de mundo. Talvez não haja herança, mas espólio.

As cartas têm uma estrutura bastante definida, que pouco mudou desde o seu estabelecimento na Idade Média. Conforme Silva, elas se dividem em três etapas básicas: “abertura do evento, espaço em que se instaura o contato e a interlocução com o destinatário, que corresponde ao exórdio; o corpo da carta, desenvolvimento do objeto do discurso, a narratio; e, por fim, o encerramento do contato, da interlocução; a conclusão” (2002, p. 133). Destas, podemos destacar a abertura do evento no poema como o início do primeiro verso, “Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso”. Nele encontramos explicitamente a quem ela se dirige, conforme mencionado no título, repetindo inclusive a primeira pessoa no pronome possessivo “meus”. A maneira de se dirigir, como se o interlocutor estivesse próximo, é própria da carta pessoal, que subverte a distância espacial numa possível simultaneidade discursiva.

Se o poema está de acordo com a estrutura básica da carta no seu início, podemos dizer que, quanto ao conteúdo, a narratio, a questão é mais complexa. Afinal, não há como determinar o que pode ou não ser assunto em uma carta. A princípio, qualquer coisa, desde eventos corriqueiros e cotidianos até as mais profundas reflexões poéticas, filosóficas e científicas. Dessa forma, se pudermos resumir o “assunto” da “Carta a meus filhos…”, diremos que se trata da problemática construção de uma utopia a partir de uma revisão da história humana da perspectiva dos que foram mortos, dos perdedores. Problemática no sentido de que o próprio texto se desenrola afirmando e refletindo, meditando, sobre o que propõe. Assim, temos versos como “É possível, porque tudo é possível, que ele seja/ aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,/ onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém/ de nada haver que não seja simples e natural”, e justamente porque “tudo é possível”, “nem sequer seja isto/ o que vos interesse para viver”. A afirmação “tudo é possível”, que ocorre duas vezes no poema, é ao mesmo tempo uma proposição de esperança na inevitável mudança que advém do infinito de possibilidades de acontecimentos, mas há o risco, com esse “tudo”, de que nada mude, ou que piore, ou que ainda os horrores retornem, não cessem nunca. A ideia de uma utopia futura não aparece neste poema porque mais do que uma visão tranquila da “redenção final” apesar de todas as catástrofes, o apelo que esse pai/mãe faz a seus filhos está mais para o grito de desespero diante da recorrência interminável das tragédias. É assim que são repetitivos os versos:

Não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidassem “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Esta sequência, que compreende os versos 16 a 27, consistindo, portanto, na altura de um terço do poema, composto por 78 versos, é marcada pelas justaposições; em termos mais precisos, dos 12 versos desse trecho, sete deles são sequenciais, sendo quatro as justaposições: “amaram no que ele tinha de…”; “e foram…”; “por serem fiéis a…”; e “foram…”. Sem destacar aqui outras sequências que aparecem ao longo do poema, apenas esta, acumulada num trecho relativamente curto, cria a impressão de uma sucessão aparentemente interminável de motivos pelos quais incontáveis pessoas sofreram e das várias formas de sofrimento pelas quais passaram. Seja pela crença religiosa ou política, ou apenas por conta da fome, tantos e tantos foram consumidos pela violência que, como um rolo compressor, foi amontoando todos na condição de anônimos. E não é a simples incapacidade de apreender o tamanho do horror que paralisa o sujeito poético, pois a rememoração é necessária, para que isto não se repita, mas o temor de que tudo retorne, a possibilidade de que o futuro seja como o passado e o mundo dos filhos seja tão ruim ou pior que o dos pais. É a partir desta visão infernal que o sujeito se coloca na mesma posição que o Anjo da História benjaminiano. Apenas a título de cotejo, justapomos trechos da Tese IX e do poema, respectivamente:

O anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído (BENJAMIN, 2012, p. 14).

Não hão-de ser em vão. Confesso que
Muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
De opressão e crueldade, hesito por momentos
E uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão?

Este pai/mãe que gostaria de parar e impedir a sucessão de catástrofes se encontra impelido para o futuro, restando-lhe como alternativa a confiança nos filhos, seus herdeiros, de que os eventos não se repitam. Tudo o que ele pode fazer, nesse caso, é meditar sobre o preço de um mundo feliz. É possível que este futuro redima as multidões de assassinados que “não amaram porque lho roubaram”? O sujeito poético como que tenta apostar no futuro como forma de justificação dos horrores, mas ele próprio é incapaz de aceitar uma situação como esta. Ressoa em sua consciência uma sensação de injustiça. Também neste ponto Benjamin aparece como interlocutor possível deste pai/mãe:[2] “Nessa escola [a socialdemocracia], essas classes desaprenderam logo tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Pois ambos se alimentam da imagem dos antepassados oprimidos, mas não do ideal dos descendentes livres” (BENJAMIN, 2012, p. 17).

É por causa dessa consciência dolorosa que o sujeito poético não aposta simplesmente no futuro, jogando a responsabilidade nos ombros dos filhos, mas volta seu rosto para o passado, as gerações dos que lutaram pela liberdade, justiça e dignidade humana. Não esqueçamos que o poema não aparece isolado, mas está em diálogo com a pintura do Três de Maio, de Francisco de Goya, referido no texto na seguinte passagem: “Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,/ foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha/ há mais de um século e que por violenta e injusta/ ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,/ que tinha um coração muito grande, cheio de fúria/ e de amor”.

O título do poema comporta uma ambiguidade sutil. Devido à ausência de uma vírgula, é possível que leiamos “os fuzilamentos de Goya” como se o pintor que houvesse sido a vítima, ele o fuzilado. É o único poema de toda a coletânea que não possui essa vírgula que separa autor de obra, pintor de pintura. Como num movimento em que o retrato do horror só pudesse ser feito por aquele que o sentiu na pele, Sena apresenta quase didaticamente “um pintor chamado Goya” como um sujeito movido a fúria e amor, que se revoltou e fez alguma coisa disso, não matéria para a sua arte, mas um testemunho. Se fosse simples matéria de arte, haveria a vírgula ali onde autor é algo diferente de obra, mas no testemunho o autor é atravessado pelo que o rodeia de tal maneira que a obra resulta deste atravessamento, da impossibilidade de retratar outra coisa que não esta circunstância. Só relembrando o horror goyesco que Sena pode ensinar a seus filhos, só impedindo que eles esqueçam é que ele pode erigir a base para um futuro possível, um futuro de paz.

Neste sentido, o poema vai sendo preparado para a sua conclusão, à maneira da carta, a partir dos versos “E, por isso, o mesmo mundo que criemos/ nos cumpre tê-lo com cuidado”, nos quais o tom conclusivo é dado pelo “e, por isso” que retoma a ideia da impossibilidade de redimir os mortos pelo simples ato de viver uma boa vida. É necessário que eles estejam presentes, “executar a verdadeira história universal, baseada na rememoração universal de todas as vítimas sem exceção” (LÖWY, 2005, p. 94-95). É tarefa do poema também operar esta rememoração total. Ele se encerra de maneira algo abrupta, ressaltando a importância da memória, do não esquecer em nome das gerações de mortos que “não amaram porque lho roubaram”. É essa dimensão do roubo, de algo que foi tomado à força, que torna o final do poema dramático e denso. É necessário que se viva em prol de um mundo de paz, de honra à dignidade humana, porque muitos e muitos tentaram mas não conseguiram, foram assassinados por promoverem esse ideal. É preciso que sejam vingados, que a redenção seja para todos e que as próximas gerações façam com que a luta dos antepassados não tenha sido em vão. “Serão ou não em vão?” não é um simples questionamento da validade da luta, mas a consciência de que esta validade deve ser atribuída através de um processo revolucionário, que a ação humana faça com que tenha valido a pena lutar. Dirigida aos filhos, essa carta parece figurar um rosto de Jano,[3] que olha ao mesmo tempo para o passado e para o futuro, para a geração que lhe sucederá, que herdará o mundo, e para os que morreram em prol de um mundo outro.

Neste ponto, encontramos o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, a sua “Carta aos amigos mortos”. Diferentemente da carta seniana, esta não se inicia seguindo o modelo do gênero, com a saudação inicial, mas com uma constatação: “Eis que morrestes — agora já não bate/ O vosso coração cujo bater/ Dava ritmo e esperança ao meu viver”. Cabe ao título construir o contexto do poema. Quantos são, quem são não é especificado, mas assim como os filhos de Sena, esses amigos atingem uma dimensão cada vez mais ampla, tratando-se de todos aqueles que podem apoiar o sujeito poético na sua resistência ao “rosto sujo de ódio e de injustiça”. Ao modo benjaminiano, este sujeito volta-se para o passado, para as gerações dos que morreram, e dele retira sua força. No entanto, como o eu poético ressalta, seu trabalho não é o de restaurar um tempo de vida na morte, adentrando a dimensão dos mortos, como Orfeu, para resgatar esses que já foram. Isso porque está consciente de que os amigos estão em um lugar “onde o amor/ Já não pode morrer nem ser quebrado”, não é necessário que voltem para o “aqui” onde o coração, por oposição, pode ser quebrado, onde a morte ainda ocorre aos montes.

Estes amigos mortos também podem ser os da distância, do exílio, aqueles que se encontram num lugar onde “o olhar não atravessa essa distância”. Dessa maneira, o “aqui” deiticamente referido é não só o mundo dos vivos, mas também o “país de dor e incerteza”, o Portugal salazarista, o Portugal da guerra colonial, o Portugal que prendeu o marido da poeta por este defender sua visão política. Nos versos que se seguem —

Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar de frente
Neste país de dor e incerteza
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil

— é interessante ressaltar como vemos uma ressonância do desejo que Sophia direciona a Sena quando lhe envia sua primeira carta ao Brasil: “Do fundo do coração o Francisco e eu lhes desejamos a si e à Mécia e aos pequenos, mil e mil felicidades no princípio deste ano numa nova terra” (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 33). “Eu vos desejo a paz nesse caminho.” No entanto, a sua decisão é a de ficar para “olhar de frente”. Mais do que simplesmente julgar os que decidiram partir, o que esses versos demonstram é que é preciso que alguém fique e testemunhe o que ali ocorreu, alguém que não desvie o olhar, que seja capaz de ver, lucidamente, “A cidade a cair muro por muro”. É este fazer frente que é a ação possível numa situação de silenciamento, de vigilância e clima de suspeita. Conforme Nahas, “enfrentar todo esse cenário é observar amigos sendo exilados, é ter seu pensamento limitado e controlado por uma intimidação intensa, é sentir-se impotente e imobilizado” (2017, p. 80). A cada amigo que se distancia, é como se ele morresse um pouco, não fisicamente, mas da possível relação que poderia ter sido desenvolvida se não fossem as circunstâncias políticas. São essas condicionais que se multiplicam à medida que o tempo passa que fazem da resistência uma tarefa cada vez mais pesada. É necessário que haja um apoio, que se invoquem forças capazes de sustentar a voz poética em meio à situação opressiva. É assim que, ainda de acordo com Nahas: “Os mortos — que já vivem ‘a perfeição da claridade’ — são invocados assim como se invocam os deuses nas orações. Pede-se compaixão aos santos, e a voz poética pede isso aos mortos” (2017, p. 82).

Neste sentido, à diferença dos filhos invocados por Sena, os amigos de Sophia são como entidades divinatórias que, devido à lembrança que têm do mundo dos vivos, se compadecem daqueles que permanecem dando continuidade às lutas travadas. Entretanto, não são os salvadores, os encarregados de trazer a solução dos problemas (este sujeito poético não é Orfeu), mas de velar, de fazer companhia à voz poética, mostrar que ela não está sozinha, isolada, mas que têm apoio dos que já se foram. Só assim é que ela se torna capaz de fazer frente às injustiças, à vileza, ao desmonte da cidade.

À semelhança de um Camões dirigindo-se à sua “Alma gentil”, “Se lá no assento Etéreo, onde subiste”, “lá onde o amor/ já não pode morrer nem ser quebrado”, este sujeito poético roga aos amigos, mais especificamente ao coração destes, que “Se compadeça de mim e de meu pranto/ Se compadeça de mim e de meu canto”. Encerrando assim o poema, no qual pranto e canto se substituem e se completam, conferindo-lhe um caráter de oração, o sujeito poético se despede à maneira de carta, quase como se pedisse uma acusação de recebimento da prece. Não estruturando o poema como uma carta, Sophia, no entanto, faz questão de denominá-lo de acordo com este gênero. Todavia, uma questão surge aqui e adquire relevância: porque se dirigir aos mortos?

Segundo Silva, “a carta pessoal, na constelação dos gêneros epistolares, […] apresenta-se como um gênero que pressupõe uma resposta ou, melhor dizendo, vê-se o destinatário, no curso da interação, como o próximo remetente” (2002, p. 112). Se justapomos esta afirmação ao título do poema andreseniano, o que aparece quando refletimos sobre esperar a resposta de destinatários mortos? O “próximo remetente” não pode responder pois habita um outro plano, “vive a perfeição da claridade”. Por que, então, remeter uma carta a ele?[4]

Para este caso, evocamos as palavras de Vasconcelos: “A carta torna-se propriedade do destinatário, e a este cabe optar quanto ao destino que dará ao documento: ou lê e destrói, ou guarda consigo, muitas vezes deixando-as para a posteridade” (2008, p. 380). Se o destinatário está morto, cabe aos seus herdeiros decidir o que fazer com a carta. Quando o destinatário além de morto é anônimo, a carta se encontra numa espécie de limbo, ao mesmo tempo entregue e extraviada, suspensa no tempo, já que os mortos não mais habitam este plano nem seguem as leis que aqui regem. Os futuros proprietários da carta, à maneira dos santos a quem se dedicam as preces, mantêm-se num silêncio enigmático. Mas é o ato de enviar a carta a eles que se torna significativo, pois demonstra a profunda confiança que o sujeito poético deposita nestes amigos. Não é necessário que eles respondam para que a prece atinja seu ponto. É necessário, sim, não se sentir isolado. É como se o poema, mais do que enviar efetivamente uma carta, a dedicasse a esses amigos, evocasse e invocasse a sua rememoração.

De fato, após este poema, nos seguintes livros publicados por Sophia, haverá cartas a amigos mortos, todos eles nomeados: Jorge de Sena, Murilo Mendes, Ruben A., Maria do Carvalhal Alvito. No caso, aquele remetido a Sena aparece como encerramento da correspondência, também inserido pelas organizadoras como fechamento (parcial) deste diálogo entre cartas que se estabeleceu por quase vinte anos. A carta enviada a Mécia de Sena logo após a morte do poeta parece prenunciar o que posteriormente viria a se tornar “Carta(s) a Jorge de Sena”:

Do Jorge oiço o grande rio em cheio da sua poesia passando através do espaço e do tempo em que vivo. Sei que dificilmente existirá alguém que seja seu igual. E não me consolo destes dezoito anos de ausência que poderiam ter sido dezoito anos de convívio, de encontros, conversas, riso comum, aflições e alegrias comunicadas (ANDRESEN; SENA, 2010, p. 156).

A noção do “poderia ter sido” já é sugerida no poema aos “amigos mortos”, do desperdício de tempo que é o da separação por causa das circunstâncias. “Nunca choraremos bastante quando vemos/ Que quem ousa lutar é destruído” são alguns dos versos do poema “Pranto pelo dia de hoje” (Livro sexto), que ressaltam o aspecto da perda, do tempo dividido que separou amigos e parentes, que fraturou a continuidade entre passado e futuro e deixou essas gerações de mãos vazias. Que herança legar? “Filhos e versos, como os dás ao mundo?” “Como quem pode matar-te?/ Ou como quem a ti não volta mais?” (“À Sophia de Mello Breyner Andresen enviando-lhe um exemplar de ‘Pedra Filosofal’”). A dor que sentimos ao ler estas palavras, ao sentir a irrecuperabilidade do tempo, dos 18 anos que “poderiam ter sido” mas não foram, marcados pela luta contra a ditatura, pelas incertezas de uma nova república, pelas intrigas e conflitos, se atualizará no poema explicitamente dedicado a Jorge de Sena, seu amigo morto.

Publicado em Ilhas, o poema é ao mesmo tempo elegia e invocação do amigo que se fora. Invocação por meio da rememoração de como ele se apresentara, não navegador, herói, mas emigrante. Sena não aparece mitificado, mas inserido num contexto sociopolítico que em grande medida contribuiu para o seu distanciamento dos amigos. Testemunha que expressou uma visão poética compartilhada por Sophia, “Como alguém que se mantém à tona num naufrágio por subir no topo de um mastro que já se desmorona. Mas dali ele tem uma oportunidade de fazer sinais que levem à sua salvação” (Walter Benjamin, apud ARENDT, 2008, p. 186), o Sena visto por Sophia é este sujeito que chega “como uma carta”, dando notícias, conversando, estreitando o tempo, “no desejo de suprir anos de distância em horas de conversa” (“Carta(s) a Jorge de Sena”). Essa pressa, tão característica das cartas de Sophia em seu quase mote “escrevo a correr”,[5] é a de subverter o tempo da separação, do “poderia ter sido”, invocar um momento em que a conversa tranquila seja possível, mas que é constantemente pressionado pelas circunstâncias. É nesse estreitamento que se desenvolve a amizade, cerceada por vários lados, mas testemunha de uma resistência às intempéries, capaz de prevalecer a tudo. “Carta(s) a Jorge de Sena” rememora a correspondência de ambos, mas principalmente anuncia o irreparável: “E agora chega a notícia que morreste” “Eis que morrestes” “E não me consolo destes dezoito anos…”.

No entanto, devemos ressaltar, novamente, que o poema se vê enquanto uma “carta”, portanto, pertencente ao gênero epistolar. Neste caso, mais do que o endereçamento, o que temos é uma homenagem e dedicatória ao nomeado amigo morto.

Sendo o poema tanto direcionado ao poeta quanto inserido num volume para publicação, seu ambíguo aspecto público-privado nos faz perceber as marcas deixadas por Sena, mesclando à sua imagem a construída por Sophia em sua relação de amizade. O que parece ressaltar no poema é justamente a iluminação destes rastros deixados, a recuperação do que foi potencialmente perdido, do tempo irreparável, mas que pode ser subvertido pela carta. Como os amigos mortos, Sena não pode responder a esta carta, não como às outras, e não poderia retornar de viagem. Dessa maneira, o “Porém aqui escolhi viver” (“Carta aos amigos mortos”) adquire novas significações quando justaposto aos “E pensávamos que sempre voltarias/ Enquanto amigos teus aqui te esperassem” (“Carta(s) a Jorge de Sena”). Escolhi ficar para que vocês tenham para onde voltar. Uma luta compartilhada entre os que se foram e os que permanecem, sendo tarefa destes a rememoração, a manutenção da lembrança dos que já lá não estão, porque a partir do momento em que também se forem, não restará motivos para a volta e a perda será total. O Sena-destinatário do poema permanece em movimento, continua com a chance de retornar e trazer consigo o “ar de capitão de tempestades”, ainda que tenha morrido. Sophia invoca Sena, o mantém como seu destinatário poético, fazendo com que seu retorno seja sempre esperado, que se atualize em espera ativa, capaz de restituir aos mortos a sua voz. “A morte vem como nenhuma carta” justamente porque não é esperada, porque encerra o diálogo, suspende o tempo, aumenta a distância. Este é o tom elegíaco do poema, que aborda o tempo irrecuperável, mas não se detém nele, pois agora que “já não bate/ o vosso coração” é momento de pedir “por esse amor cortado/ Que vos lembreis de mim lá onde o amor/ já não pode morrer nem ser quebrado”.

O amor “que tudo manda” e a liberdade “que tudo arrasa” são palavras-chave nesta correspondência entre Sophia e Sena, de cartas e de poemas-carta, balizadoras de uma relação que se quis em prol do testemunho e ela própria o foi, se tornando um ícone de resistência à repressão e afirmação da liberdade e da luta até o fim.

Referências

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______. Navegações. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

______. Ilhas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2016.

______; SENA, Jorge de. Correspondência 1959-1978. Lisboa: Guerra & Paz, 2010.

ARENDT, Hannah. Walter Benjamin (1892-1940). In: Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 165-222.

______. Prefácio: A quebra entre o passado e o futuro. In: Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo, Perspectiva, 2016. p. 28-42.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: O anjo da história. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p. 9-20.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/91972/constituicao-da-republica-federativa–do-brasil-1988>. Acesso em: 14 jan. 2019.

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CASTRO, Pedro Jorge. Um casal apaixonado contra Salazar, Sábado, Lisboa, 25 abril 2016. Disponível em: https://www.sabado.pt/vida/pessoas/detalhe/um-casal-apaixonado-contra-salazar. Acesso em: 14 jan. 2019.

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FOUCAULT, Michel. O que é um Autor? In: ______. Ditos e escritos III: estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 264-298.

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VASCONCELOS, Eliane. Intimidade das confidências. Teresa: revista de literatura brasileira, São Paulo, n. 8/9, p. 372-389, 2008.

NOTAS

1 Deve-se destacar ainda justamente a seção Post Scriptum da coletânea Poesia I, que contém um poema homônimo. Apesar de não ser escrito como carta, sabemos que esta expressão é própria do gênero epistolar e, portanto, o poema parece aludir a esta prática.

2 Esta relação entre Sena e Benjamin não é inédita. Para outra referência a uma articulação com este mesmo poema, ver Salles (2009, p. 94).

3 “Jorge de Sena personifica um rosto de Jano que traduz ao nível da sensibilidade duas estéticas reciprocamente condicionadas, como dois satélites em órbita um do outro: uma estética sensorial da finitude e uma estética do espírito infinito, isto é, nos seus traços mais característicos, uma estética do grotesco e uma estética do sublime” (CARLOS, 2006, p. 63).

4 Não é alheia a Jorge de Sena esta prática, uma vez que o poeta redigiu (e publicou) uma carta sua endereçada a Fernando Pessoa, quase dez anos após a sua morte. “Se me não engano, é esta a segunda carta que V. recebe depois de morto” (SENA, 1984, p. 27). No entanto, seu objetivo parece diferir significativamente do de Sophia na sua “Carta aos amigos mortos”.

5 Cf. ANDRESEN; SENA, 2010, p. 72, apenas a título de exemplo.