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A Morte do Poeta

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Era sua, desde sempre, a secretária simples e pobre, igual à que tivera em Lisboa, no Restelo, no Brasil, em Araraquara, já duas vezes nos Estados Unidos, em Sta. Bárbara agora e definitivamente, neste fim de Primavera, aos cinquenta e nove anos de idade, Mécia e nove filhos feitos por esse mundo de dor e de esperança, como ninguém mais do que ele, poeta, soubera… «Se acaso um dia o raio que te parta…» Fora o último, longo poema que, em Março, escrevera, à mão, como sempre e com a mesma letra, só que mais cansada. Versos brancos da largura do papel, poema porque assim o quisera, de «aviso aos cardíacos».

Dois anos atrás tivera um ataque violento, sobrevivera, perdera peso demais, vira envelhecer, de súbito, a sua imagem. Viajara depois, fora pela última vez a Lisboa, à sua casa do Restelo, vira amigos, com eles se fotografara, o Zé Blanc, o França, as fidelidades de sempre. Fora recebido em entrevista festiva no aeroporto, em terra que há dois anos se renovara: «Nunca pensei viver para ver isto», escrevera ele, três dias depois de Abril. Ele, que oito anos atrás (nunca o esquecera!) se vira repelido na fronteira de Vilar Formoso, indesejado no seu próprio país – «loca infecta» a que viera peregrinar, depois de nove anos de exílio. E ainda um ano depois fora à Sicília receber o grande premio de poesia Etna-Taormina, nome de vulcão e nome de ruínas, a eternidade da terra e a sua memória, no Mediterrâneo cuja cultura sabia, antiga… Tal como à beira do Pacífico meditara também, então. E andara pelos Estados Unidos, de congresso em congresso, falando de Pessoa e de Herculano. Mas sobretudo de Camões – e fora, em Portugal, orador oficial (enfim!) do dia do poeta, sobre o qual havia quase trinta anos escrevia, ante «o riso dos eruditos e dos doutos de qualquer cor e feitio»… Então se vingara e não o escondera, nem devia esconder. Pessoa, ele sabia que depois de Pessoa viera ele, e depois de Camões também.

Jorge estava sentado na sua cadeira de balanço, do outro lado da secretária, perdera forças para bater as teclas da máquina antiga, Mécia chegava-lhe os livros que ele pedia, da estante que tinha diante dos olhos. Como tinha – mais, o quê? Esta Ofélia que Fernando Azevedo pintara e lhe dera, há trinta anos, em Lisboa – «Vermelha chama de amarelos laivos»…

Camões, sim: milhares de páginas sobre ele escrevera, e contara-o a morrer de fome, arrastando a miséria do corpo envelhecido, da idade do seu… «Super flumina Babilonis»… Ah, como ele falava aos seus contemporâneos – «Podeis roubar-me tudo; as ideias, as palavras, as imagens…» E fora a sua voz, era a sua própria voz quando, em S. Paulo, assim escrevera. O destino dos poetas é sempre igual ao mesmo – cotejara-o Bocage, soubera-o Garrett. E com a pátria também ele fora morrendo, longe e desesperado. «E agora, povo português?» …

Perguntara-o em Abril de há quatro anos já, e não sabia, ainda, de resposta. Falando de Camões, porém, nesse dia 10 de Junho (não, não ia viver mais um ano: contava os dias que lhe restavam, e o seu próprio dia ia ser antes…), punha uma esperança para além da história, nas suas palavras visionárias. Veio-lhe à memória a «Carta» que dedicara aos filhos, há muitos anos, sobre a guerra e o mundo e a vida que a todos eles dera. «Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…»

Há dois meses, Joana, a mais velha (não, não era a mais velha dos nove) ficara com ele numa fotografia de grupo, última, ali em Sta. Bárbara, com a Mécia. Escrevera, dias antes, o «Aviso aos cardíacos e outras pessoas atacadas de semelhantes males». Só que o seu mal se revelava, subitamente, outro e fatal. Um cancro no pulmão, sob o esterno e inoperável, tarde detectado por estupidez médica! «Eu tenciono fazer uma história de humor negro a contar isto tudo», escrevera a um amigo de Lisboa, despedindo-se, numa longa carta: um raio o partira, «obedecendo a fervorosas preces de muitos amigos e inimigos»… Quando andava, andava pela casa, vacilante, suplicando uma pílula, alguma companhia. Como Camões fizera. Mas foi Mécia quem lhe fechou os olhos.