Um “monumento” crítico-poético

Em meio às comemorações do quinto centenário de nascimento de Camões, o JL fez uma edição especial em que reuniu diferentes estudiosos do poeta para discutirem sua obra e seus comentadores mais importantes. Entre eles, evidentemente, não poderia faltar o nome de Jorge de Sena. E ficou a cargo de Lucas Laurentino fazer uma síntese da imensa produção camoniana de Sena, destacando tanto suas teses acadêmicas quanto seus textos de criação, como os poemas e conto.

Lucas Laurentino

O conjunto das obras de Jorge de Sena dedicadas a Luís de Camões desnorteia e impressiona o leitor. Talvez o melhor adjetivo a descrevê-lo seja monumental. Já houve quem contasse nada menos do que 2.158 páginas senianas sobre o poeta, entre livros e coletâneas de ensaios. Haverá  outro pesquisador que tenha lido Camões com maior minúcia? Sena parece examinar os poemas camonianos num microscópio, disposto a investigar cada detalhe de cada verso. Também a variedade dos registros é surpreendente: desde a bem-humorada experimentação linguística de “O Fantasma de Camões (uma entrevista sensacional)”, de O reino da estupidez II, até as complexas teses acadêmicas, para as quais o autor criou um método próprio de análise (várias vezes contestado, como seria previsível). Assim, a quantidade, a acuidade e a pluralidade fazem desses estudos um verdadeiro monumento crítico-poético ao épico português.

Quando acostumamos nossa vista, superando a vertigem de imaginar o esforço necessário para executar tamanho projeto, reparamos na profunda coesão desse conjunto. Redigidos ao longo de trinta anos, os estudos camonianos apresentam assombrosa consistência teórica e metodológica, revelando firme e lúcido raciocínio. Não é raro, portanto, os textos dialogarem entre si, expandindo nossa compreensão do projeto seniano à medida que trilhamos suas várias sendas.

Com efeito, trata-se de uma obra que se desenvolve em rede, como aponta a pesquisadora Luciana Salles, estendendo-se em diversas direções enquanto permanece muito bem interligada. Como, então, apresentar essa obra sem que o leitor se perca em seus meandros? Optamos pela ordem cronológica de publicação, cientes de que tal escolha não está isenta de armadilhas.

Escrito no Brasil em 1962, mas só publicado em 1966, Uma canção de Camões foi na origem uma tese para um concurso de livre-docência, afinal abortado. O livro é o primeiro da “trilogia” camoniana que Sena concebeu ao longo da década de 1960. No “Prólogo” do volume, o autor explicita seu objetivo de realizar uma edição crítica das obras completas de Camões, desenvolvendo, para isso, um “método global de investigação crítica”. O estudo discute a origem do gênero canção, analisa as dez canções tradicionalmente atribuídas a Camões e procura, através de uma análise estrutural, desenvolver ferramentas que determinem a autoria das chamadas canções apócrifas. Aí, Sena estabelece as bases teórico-metodológicas dos estudos seguintes.

Também “brasileira”, a segunda tese (esta, sim, defendida como tal, em 1964, apesar de publicada apenas em 1969) é Os sonetos de Camões e o soneto quinhentista peninsular. Nela, Sena  prossegue no método e nos objetivos delineados no livro anterior, desta vez explorando os sonetos do poeta quinhentista, com foco na sua estruturação interna, de modo a identificar elementos que auxiliem os estudiosos na fixação do cânone camoniano. Ademais, o autor acompanha a evolução do soneto na Península Ibérica durante o século XVI, a partir de alguns poetas representativos, analisando o quanto Camões foi inovador (ou não) na prática desta forma poética. Cabe ressaltar que essa tese de doutoramento e livre-docência foi aprovada com nota máxima por uma banca de notáveis intelectuais brasileiros, entre eles o ensaísta Antonio Candido.

Fechando a “trilogia”, em 1970 veio à luz A estrutura de Os Lusíadas e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI. Aqui constata-se como a diretriz cronológica nos compromete, já que os ensaios sobre a estrutura da epopeia foram publicados em periódicos ao longo da década de 1960, e só naquele ano reunidos em volume. Apesar do desvio de foco, da lírica para a épica, percebemos a unidade nos estudos de Sena, que os desenvolveu quase em paralelo, tendo em vista sempre a estruturação do pensamento poético de Camões. Nesse livro, o autor parte de perguntas basilares (Por que dez cantos? Por que cada canto tem um número específico de estâncias?) para compreender, de forma global e minuciosa, a constituição da epopeia, seus episódios, seus personagens, seu historicismo e sua metafísica.

Em 1980 foi publicado por Mécia de Sena Trinta anos de Camões, em dois volumes. (E nunca será demais grifar a relevância do trabalho de Mécia para a edição e divulgação das obras de seu marido. Sem tal esforço, incansável ao longo de décadas, não conheceríamos uma parcela significativa, e fundamental, dessa obra gigantesca). O livro consuma o projeto antes sonhado pelo autor, o de reunir em volume seus ensaios publicados esparsamente, compreendendo um período que se inicia em 1948, com “A poesia de Camões: ensaio de revelação da dialéctica camoniana” e se conclui em 1978, com os verbetes “Alumbrados” e “Babel e Sião”.

Em 1982, deve-se também a Mécia, com a colaboração de Luís de Sousa Rebelo, o volume Estudos sobre o vocabulário de “Os Lusíadas”. Diferentemente dos títulos anteriores, trata-se de um estudo inacabado, apesar de extenso (cerca de 420 páginas). Nele, Sena realizou uma investigação exaustiva de vocábulos-chave presentes na epopeia que auxiliariam na sua compreensão em nível estrutural e temático, objetivando demonstrar ainda que Camões era cristão-novo. A despeito de sua incompletude, a obra é um mergulho profundo nos meandros do poema épico, e Sena revela paciente acuidade ao deslindar os diferentes usos dos vocábulos listados, interpretando a sua posição no poema, o seu significado no contexto linguístico do século XVI, e os possíveis sentidos transcendentais que Camões lhes imprimiu.

Cabe ainda mencionar o “Ensaio de uma tipologia literária”, escrito em 1960, de restrita circulação, e publicado em Dialécticas da literatura (1973), com o apêndice “Estudo tipológico de um soneto de Camões”, em que Sena aplica a sua tipologia ao soneto “Erros meus, má Fortuna, amor ardente”. De fato, trata-se da exposição teórica do método que desenvolveu e utilizou nos estudos camonianos, ratificando suas palavras “Se para ele [Camões] não serve um método, valerá a pena que sirva para mais alguém?”

Afirmamos que os escritos de Sena sobre Camões perpassam por diversos gêneros textuais, e esta sinopse não estaria completa sem mencionarmos “O discurso da Guarda”, o seu titânico trabalho sobre o tema de Inês de Castro (no esquecido Estudos de História e de Cultura), bem como os poemas e os contos em que o poetade Fidelidade encarna o poeta de Os Lusíadas. “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”, em Metamorfoses (1963), retrata um Camões de pedra, qual Adamastor desafiando seus contemporâneos e desferindo profecias assombrosas. Já “Camões na Ilha de Moçambique”, incluído em Poesia III, foi escrito na visita de Sena à Ilha de Moçambique, em 1972, durante as comemorações do quarto centenário d’Os Lusíadas. Ao imaginar um Camões exilado, isolado num “seco, fero e estéril monte”, Sena reflete sobre a condição humana de um poeta que continuamente buscou ultrapassá-la. Por fim, o conto “Super flumina babylonis”, de Novas andanças do demónio (1966), retrata um Camões envelhecido, desencantado, a fazer um penoso balanço da sua vida e obra, superando-o na escrita do célebre poema “Sôbolos rios”, que demonstra a potência da poesia em criar sentido para um mundo desconcertado.

Evidentemente, não faltam referências a Camões em muitas outras passagens da obra seniana, mas esta breve revisão basta para demonstrar o quanto Sena se dedicou ao “maior escritor de língua portuguesa e um dos maiores do mundo”, tornando-o próximo de nós. Evidente também é o impacto do seu labor nos estudos camonianos, seja para avançar com proposições suas, seja para discutir criticamente sua metodologia e seus resultados. Prova disso são as novas edições feitas pela Guerra e Paz: O pensamento de Camões, que reúne quatro ensaios de Sena; Os Lusíadas e a Visão Herética, que reedita a epopeia e acrescenta mais dois ensaios senianos; e Babel e Sião, em que publica a famosa redondilha, o salmo que a inspirou, o estudo de Sena sobre essa releitura camoniana e o conto “Super flumina babylonis”. As duas primeiras obras já estão publicadas e a terceira encontra-se em pré-venda.

Jorge de Sena sempre entendeu a pesquisa literária como empreendimento coletivo, e os prefácios e prólogos que nos legou bem o testemunham. Assim, esperamos que esse monumento crítico-poético seniano sirva de inspiração renovada para continuarmos lendo Camões com a dignidade e a seriedade que ele reivindica.