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Imagem e áudio: La Cathédrale engloutie, de Debussy (trecho).

Uma ética da existência em Arte de Música, de Jorge de Sena

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Arte de Música (1968) estabelece uma relação paralelística com o livro de poemas imediatamente anterior de Jorge de Sena, Metamorfoses, de 1963. Tal relação foi logo percebida por parte da crítica, dentre a qual destaco a observação de Óscar Lopes, para quem ambos os livros constituem um “díptico”:

“Compreende-se bem que alguns dos apreciadores de música e/ou poesia se tenham desgostado à sua primeira leitura, ou que pelo menos considerassem este livro inferior a Metamorfoses, 1963, que com Arte de Música forma um díptico”. (LOPES, 1983, p. 37)

Embora seja frequentemente aceita a aproximação entre os dois livros, penso que uma reflexão sobre suas diferenças permite ressaltar algumas características bastante produtivas, pelo menos para a leitura de Arte de Música. E lembro que o próprio Sena já cuidara de sublinhar, em seus paratextos, as semelhanças sensíveis entre estas duas obras. É possível que a ênfase nas semelhanças tenha deixado as diferenças entre Arte de Música e Metamorfoses em segundo plano. Essas diferenças servirão de base para situar alguns problemas específicos projetados por Arte de Música no que tange à relação entre poesia e música.
Principiarei por descrever como se estabelece esta relação, pautada na aparente homologia entre ambos os livros, para, a partir dela, contemplar um horizonte preliminar de questões que o livro projeta.
Da representação da música
A sugestão de que há homologia entre as obras referidas é destacada no próprio posfácio que Sena escreve a Arte de Música, “Post-fácio – 1969” (P2, p. 215-224) . Nele, o novo ciclo lírico é explicitado como uma série que segue um procedimento semelhante àquele adotado em Metamorfoses, resultando em “meditações aplicadas” (P2, p. 163). Porém, em vez de artes plásticas, Arte de Música apóia-se, obviamente, na arte musical.
Sendo “aplicada” a uma base de representação (musical) cujo sistema de expressão artística difere radicalmente do sistema plástico, impõe-se, por si só, uma significativa diferença no modo de composição (e leitura, sem dúvida) dos poemas desse livro, uma vez que a relação da poesia com as obras musicais implica, decerto, uma dialética diversa daquela que está implicada na relação da poesia com as artes visuais. As observações de Sena, escritas no posfácio de Arte de Música visando discutir certa similitude entre as “metamorfoses plásticas” e “musicais” acabam, assim, por ressaltar justamente o contrário: suas diferenças; ou seja, a diversa dialética que ora se impõe. Em outro texto, ainda de 1968 e também referente a Arte de Música, Sena, atento a estas perceptíveis mas delicadas homologias, declara que “[…], it even occurred to me entitle the book Musical Metamorphosis in order to stress the analogy.” (SENA, 1988a, p. 88). Entretanto, certo de que tais similitudes seriam já facilmente reconhecidas, fica claro que Sena estava mais interessado em ressaltar certas diferenças quando conclui: “However, to avoid confusion with the other work, I decided to call it Art of Music.” (SENA, 1988a, p. 88).
A ideia de que ambos os ciclos de poemas constituem serialismos distintos, marcados por alguns relevos particulares, leva o autor a afirmar que a música “não é uma experiência análoga à das artes visuais ou às da palavra, que vivem de representações significativas” (P2, p. 219). A questão da ausência de significado, por singularizar a criação e a recepção da música dentre as demais artes, impõe, pois, diferenças quanto ao processo de subjetivação lírica ante esse sistema artístico, implicando a necessidade de uma abordagem não-análoga de suas obras. E, de fato, a arte visual e a verbal podem estabelecer analogias exatamente porque partilham representações de mundo articuladas com o significado; coisa que não se observa na arte musical, posto que os sons, por mais organizados que estejam, não articulam qualquer significado . Fica claro, assim, que a relação da plástica ou do verbo com a música não pode se estabelecer com base na analogia do significado. E é justamente a impossibilidade de se operar essa analogia entre as linguagens da poesia e da música o que singulariza Arte de Música.
Indagando a diferença entre os domínios artísticos tomados por base para a criação poética, tanto no caso de Metamorfoses quanto no de Arte de Música, percebo que estes domínios são tomados pelo poeta em sentido lato, talvez pela forma ligeira com que os refere. Em Metamorfoses, os poemas partem não só de pinturas mas também de esculturas, obras arquitetônicas, uma fotografia e demais objetos estéticos que se instituem no espaço visual e alargam o raio de recepção da expressão plástica. Tal alargamento, no entanto, não implica uma ruptura com o domínio desse sistema artístico, pois mesmo a dança, que poderia estar fora desse sistema, mantém-se na fronteira dele através do aspecto da visualidade, indispensável à sua manifestação e apreciação enquanto obra.
Em Arte de Música instaura-se uma significativa diferença: os objetos a partir dos quais se aplicam as meditações do poeta pertencem a uma complexa rede de dados que vão além do puro objeto de arte sonoro, rompendo com o próprio domínio do sistema musical, uma vez que muitos dos dados tomados como base mimética não se constituem exatamente enquanto música – e nem mesmo, no seu limite, enquanto ruído ou silêncio –, estando, como tais, absolutamente fora do âmbito rigoroso da sonoridade. Explico: no lado das peças musicais específicas (utilizadas como “fontes” que provocam a operação metamórfica do poeta), estão incluídos, por exemplo, ciclos de peças musicais e mesmo o conjunto da obra de um ou outro compositor , que, enquanto ciclos ou conjuntos em si, já representam abstrações ou noções conceituais da música e dos objetos sonoros concretos, ou seja, não são eles produtos sonoros objetivos, mas classificações categóricas destes objetos. Além disso, essa rede de referências posta em cena é alargada dramaticamente com informações referentes ao perfil artístico do compositor, textos e paratextos que se tecem com certas obras ou biografias, dados históricos da época de algumas das composições, bem como leituras e experiências do poeta ligadas a audições de intérpretes em salas de concerto e gravações de obras. Todas estas “fontes”, paramusicais, e de fundo afinal subjetivo, convivem e intervêm na apreciação do sujeito ao considerar esteticamente a arte musical.
Com isso, Arte de Música já se coloca, quanto à base mimética de referência ou invenção, como um livro bem mais complexo que Metamorfoses, na medida em que alarga o entendimento daquilo que faz supor ser sua única base, ou seja, a música, para o fenômeno musical como um todo, e culturalmente considerado. Mas no sentido estrito e acústico desse fenômeno, Sena alarga o domínio musical para fora da música, agregando em seu âmbito a leitura de “fontes” que, tecnicamente, pertencem a outros domínios diversos do da arte dos sons, como é o exemplo dos poemas de Wilhelm Müller nas canções de Schubert, os poemas de Heinrich Heine nos lieder de Schumann, o livro de André Gide sobre a vida e a obra de Chopin, a interpretação de Wanda Landowska para as sonatas de Scarlatti, bem como o Requiem de Mozart na versão de Karl Richter à frente do Coro e Orquestra Münchener-Bach. Deve-se ter em conta, a propósito, que muitos poemas tomam mais de uma “fonte” além da música propriamente dita. É o caso específico do poema “Requiem, de Mozart”, que, além da especificidade da interpretação, incorpora o impacto das palavras “dolorosamente pungentes” deixadas pelo próprio Mozart em carta histórica . Outro exemplo curioso de referências paramusicais é o do poema “‘A Criação’, de Haydn”, que está a meio caminho entre a experiência plástica da execução musical e o conhecimento de mundo do poeta acerca do enquadramento histórico da obra que mimetiza. O texto do poema não só confirma a intervenção de outros domínios extramusicais na recepção de Sena, como o testemunho do autor revela tê-lo escrito justamente no auditório da London School of Economics Music Society, em meio à audição deste oratório. Neste poema, portanto, além da experiência cultural, o poeta incorpora a vivência plástica de uma audição in praesentia. Aliás, o fato de Sena intitular vários de seus poemas com verbos no gerúndio: “ouvindo…”, “tocando…”, denota não só uma convivência com a música através de uma relação presencial com sua execução, mas um verdadeiro testemunho no tempo corrente de sua materialização sonora no espaço acústico do real. Considero este detalhe um aspecto particularmente relevante em Arte de Música porque dá visibilidade a um “lugar” da enunciação lírica (do gerúndio, sim, mas também o lugar virtual da existência estética) a partir de onde o sujeito perspectiva não só a música, mas o mundo e a si mesmo, sensibilizando seu próprio estatuto subjetivo. Retomarei este ponto adiante.
Com tais exemplos postos, será preciso considerar o alargamento do domínio musical deveras problemático, porque põe em xeque a “ciência” que rege a meditação seniana em favor de um discurso lírico que tem como pressuposto aquele verso inicial de “Bach: Variações Goldberg”, onde se formula lapidarmente a tensão fundamental do sujeito poético com a música: “A música é só música, eu sei”.
Ao contrário do domínio plástico, que pode admitir em seu largo âmbito tudo aquilo que constitui corpos extensos espacialmente determináveis, inclusive um texto, inclusive um balé, o pressuposto seninano “A música é só música, eu sei” dá a entender como “estando a mais na música” aquilo que não é estritamente sonoridade e efeito acústico organizado , ou seja, aquilo que está “fora” do âmbito musical. É, portanto, desconcertante que Sena conceba uma “metamorfose” da complexa estese sonora incorporando à experiência auditiva, como vimos, aquilo que não é “só música”, mas subjetivações advindas das “repetidas vivências de uma obra ou de um compositor” (P2, p. 217).
Luís Adriano Carlos chama de “modelos paramusicais” (CARLOS, 1999, p. 213) esse conjunto diverso de “fontes” que, não sendo propriamente música, alargaria, de qualquer forma, a percepção musical e o campo de referências para a mímese da música. Entretanto, tanto este ensaísta (1999, p. 209-218), quanto Francisco Cota Fagundes (1988), que dedica um livro inteiro à presença da música em Jorge de Sena , e mais recentemente Barbara Aniello (2009), referem e passam por esses dados extramusicais sem confrontá-los com os pressupostos postulados pelo discurso lírico do livro. Tais postulados, como bem assinala o verso-lema “A música é só música, eu sei”, abalam frontalmente a serventia de quaisquer dados paramusicais, seja na plena imitação desta arte, seja na funda experiência estética que ela provoca.
De fato, uma tensão se estabelece no livro quando o poeta questiona a validade de vivências e conhecimentos outros como aporte para transfigurar com maior fidelidade a música, como no emblemático poema “Ouvindo o Quarteto Op. 131, de Beethoven”:

A música é, diz-se, o indizível
por ser de inexprimível sentimento
da consciência, ou um estado de alma,
ou uma amargura tão extrema e lúcida
que passa das palavras para ser
apenas o ritmo e os sons e os timbres
só pelos músicos cientes de harmonia
e de composição imaginados. Mas,
se assim fosse, eles só dos homens
saberiam mover-se nos espaços
que a humanidade abandonada encontra
nos desertos de si. […] (v. 1-12)

O poeta estabelece aí uma tensão quando questiona o poder de apreciação não-técnica da música, questionando, em decorrência disto, a utilidade daquilo mesmo de que se serve (cultura musical, histórica, biográfica; vivência de audições etc.) enquanto “instrumentos de precisão” para a “metamorfose musical” que opera.
No poema “Bach: Variações Goldberg”, onde está o verso-fórmula citado, a consciência de que “se a música/ for música, ouçamo-la e mais nada” (v. 7-8) é enunciada como proposição diante do entendimento de que há uma constrangedora autossuficiência expressiva da arte musical, tanto no que tange à sua delimitação concreta enquanto objeto sonoro (a música se basta e se absolutiza no domínio do som), quanto no que concerne à sua expressão enquanto índice acústico (a música basta para o ouvinte assimilar sua força estética): “A música é só música, eu sei. Não há/ outros termos em que falar dela a não ser que/ ela seja menos que si mesma.” (v. 1-3). Assim, não resta dúvidas de que o poeta postula, na lírica, paradoxalmente, o descarte de todos os aportes paramusicais, sejam eles instrumentos de aferição para se “transfigurar” a música em verso. Essa perspectiva, de constrangimento do domínio musical numa esfera cerrada em si mesma (e ao mesmo tempo bastante para a expressão do homem e do mundo), só pode desembocar no constrangimento do sujeito lírico disto consciente, mas que, como apontei, se utiliza, mesmo assim, rebeladamente, em sua “metamorfose”, de “fontes” musicais exteriores ao domínio sonoro estrito. Esse constrangimento está manifesto no poema de abertura do livro “‘La Cathédrale Engloutie’, de Debussy”, quando diz:

[…] Música literata e fascinante,
nojenta do que por ela em mim se fez poesia,
esta desgraça impotente de actuar no mundo,
e que só sabe negar-se e constranger-me a ser
o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros. (v. 62-66)

Sendo confessadamente a maneira mais importante de Jorge de Sena “atuar no mundo”, seu fazer poético, ao se voltar para o fascínio da música, depara-se, pois, com uma contradição radical figurada na imagem do vácuo (imagem aliás recorrente em todo o livro): tratar de música através da lírica é, em algum momento, negar a natureza absoluta da música e deparar-se com o vácuo de si, metonímia do vácuo de sentidos que não há para a vida e para o mundo. Por isso, creio que os paratextos musicais são complicadores, e não facilitadores da escuta, e não devem servir apenas para ilustrar a erudição musical de Sena, mas para explicitar um processo de subjetivação gerado pelas contradições e rebeldias que os paratextos colocam em cena. Esse processo parece apontar, pois, para a angústia do poeta. E de fato, “‘La Cathédrale Engloutie’, de Debussy” – como, de resto, o livro – assim orientando seu discurso, acaba por “constranger” o poeta, fazendo-o sugerir que uma “metamorfose musical” será sempre uma representação “errada”, e mesmo “fingida” da música, já que “pensar, em música, seria mentir traquilamente” (“‘Andante con Variazioni’, em Fá Menor, de Haydn”, v. 14), sem transformá-la de fato. O poeta, nesse ponto, teria que assumir aquele estatuto que Fernando Pessoa lhe deu: um fingidor. E no caso da poesia de Sena, este fingimento seria flagrantemente constrangedor porque fingir se opõe a testemunhar.
Tal constrangimento, e tal vácuo em que o poeta se vê, de pronto, é uma das vias por onde o discurso lirico chega à aporia nuclear de Arte de Música: a irredutibilidade da música à lírica. Essa aporia vai corroborar a singular estratégia mimética que caracteriza toda a tensão/distensão entre poesia e música no livro, na medida em que, diante do impasse do “irredutível sonoro” e da “imprecisão verbal”, a lírica acaba por abstrair sua atenção dos próprios objetos musicais que utilizara como base para sua meditatio, passando a operar não mais a “transfiguração” de uma ou outra peça musical, e sim uma mímese da expressão abstrata do fenômeno humano e seu impulso artístico, depreendido por meio da música. Exemplo deste procedimento de abstração do item musical sonoramente determinado é o poema “‘A Criação’, de Haydn”:

Felizes estes homens que podiam escrever da Criação,
confiadamente compor – por mais dores que sofressem
enquanto humanos e como seres viventes –
tão jubilantes cânticos do criar do Mundo.

Era belo, era bom, era perfeito o Mundo.
É certo que o cantavam quando apenas criado,
e o par humano pisava sem pecado
o jardim paradisíaco.

Nós nem mesmo em momentos únicos,
raríssimos, epifânicos
– e não só por não crermos no pecado –,
não podemos. (P2, p. 182)

Não há aí qualquer referência objetiva ao oratório do compositor austríaco, mas sim às circunstâncias e à mentalidade da época (o século XVIII), desdobradas na escuta da condição humana dos “criadores de realidades”, “jubilosas” e “paradisíacas”, com uma alusão indireta ao impulso de Haydn enquanto músico. O poema se encerra com uma constatação sobre o constrangimento ou a limitação do “canto” dos homens de seu tempo (com o poeta aí incluído e identificado). É, pois, justamente desfocando do seu horizonte de problemas a imitação musical, e focando a meditação lírica nas razões do impulso criador, que o sujeito passa a perceber que a música vai “suscitando pretensas marginais idéias” (“Ouvindo Canções de Dowland”, v. 6), “[…] que não sei/ se é do compositor, se de quem toca, se de mim […]” (“Ainda as Sonatas de Doménico Scarlatti, para Cravo”, v. 3-4). Tal percepção o leva a uma conclusão, em “Ouvindo o Quarteto Op. 131, de Beethoven”: “Não é, portanto, a música o limite/ ilimitado dos limites da linguagem,/ para dizer-se o que não é dizível.” (v. 18-20). Ressalte-se que é, aliás, desviando a percepção da música para fora dela mesma que o sujeito lírico se conecta verbalmente ao impulso abstrato daqueles que “fazem” música. Portanto, há um desvio da escuta da música como coisa para a escuta do impulso que a faz ser coisa; um desvio epistemológico da música para o impulso que faz existir música. É justamente esse desvio que reconecta o poeta ao ponto de onde partira sua digressão: o objeto musical. Nesse jogo de desvio e volta ao domínio estrito da música, o poeta é levado a admitir que “ultrapassa tudo/ este meditar de sons e sentimento” (“‘Andante con Variazioni’, em Fá Menor, de Haydn”, v. 21-22). E aqui fica claro o quanto a meditação, assim aplicada à música, consegue ultrapassar a própria música para escutar os sentimentos dos músicos, por um lado, e por outro, ultrapassar os sentimentos musicais em favor de escutar a música e só a música.
Com essa estratégia particular conseguida por meditação especulativa e deslizamento discursivo, o poeta supera a aporia que o impediria, em tese, de abordar a música com a palavra. Supera, porque também há em Arte de Música essa necessidade de superação das “contradições da consciência actual” (SENA, 1961, p. 170), expressando uma recusa de não se poder ter “só música” nem “tão sonhadora visão das coisas e dos seres” (“Ainda as Sonatas de Doménico Scarlatti, para Cravo”, v. 14) separadamente. Uma é condição da outra; e é essa condição que sensibiliza e comove o poeta a meio desse complicado encontro entre os dois sistemas sígnicos. É, analogamente, essa condição de interdependência entre homem e arte que move, enfim, o discurso de Arte de Música para um discurso sobre a condição humana.

2. Do vestígio humano na música
Eduardo Prado Coelho, detendo-se na densidade conceitual do discurso lírico de Arte de Música, refere-a como efeito de

[…] uma sintaxe que se torna interminavelmente dialética à custa de constantes jogos de negação e complexificação das questões e dos pontos de vista, e que conduz a reflexão da poesia sobre a essência da arte a modalidades altamente elaboradas que constituem o que de mais estimulante se produziu no campo da teoria literária portuguesa. (COELHO, 1988, p. 122)

Está claro para o crítico português que a meditação lírica aponta, de fato, para uma reflexão metafísica sobre a essência da arte, e tal reflexão, de caráter notadamente filosófico, acaba por guardar traços de uma teoria da literatura. Seja como for, é com a perspectiva de desfocamento, abstração e desvio do objeto musical “constrangedor” que a meditação lírica volta-se para uma reflexão sobre a questão da conditio humana. É, pois, ao abandonar a imitação rigorosa da música em favor de uma ordem discursiva entretanto engendrada pela música, que o poeta remete a lírica, apenas à lírica, isto é, à sua “condição verbal”, caldeando-a com a condição humana versada em Arte de Música. Assim, retempera-se continuamente a tensão poesia-música do livro. Por esse mesmo motivo, uma vez desfeita a hipótese de uma dialética isomórfica entre os dois sistemas artísticos, torna-se peremptoriamente equivocado, penso, enquadrar Arte de Música em qualquer esquema que garanta o espelhamento formal entre a técnica do poema seniano e a teoria do objeto musical mimetizado. A música aqui não é o suporte da lírica, mas o sinal da condição humana que também a lírica sabe masterizar.
De fato, além de poder ser lido como uma jornada poética que atravessa pontos singulares (e mesmo incontornáveis) da História da Música erudita ocidental, o livro permite também apreender uma particular leitura do que é vestígio humano, através de suas razões para criar, viver, amar, crer e não querer morrer; razões presentes não só na memória da tradição musical, mas, segundo o entender do poeta, também, pontualmente, nos itens artísticos que ela legou à posteridade. A inquietante impressão, por exemplo, de que a música, mesmo constituindo-se apenas de sons, guarda mais do que somente música é o que leva o poeta de “Ainda as Sonatas de Domenico Scarlatti, para Cravo” a intuir nas peças figurações e recuperar nelas memórias:

Nesta percussão tecladamente dedilhada como violas pensativas
ou como pandeiretas de bailado que em requebros sapateia
a dança desenvolta, há uma ocasional melancolia que não sei
se é do compositor, se de quem toca, se de mim que ouvindo
estas breves sonatas como que relembro imagens e notícias
que se misturavam já quando as vi ou conheci,
e que não quero permitir que estejam nelas
só música tão docemente escrita qual
o pensamento de um homem que as não viveu por mim. (v. 1-9)

Embora seu pertencimento seja indiscernível, a melancolia aparece nesse poema como um iniludível vestígio humano. E é a experiência de detecção desse vestígio, desencadeador de “imagens e notícias”, que leva o sujeito a uma recusa em admitir o significado vazio no discurso da música. O poeta quer que seja possível dizer que há mais do que música nas sonatas de Scarlatti. Em outras palavras, o poeta não quer abdicar da melancolia que passa a sentir por ocasião da escuta, recusando-se a ficar apenas com a música. Seu poema é, afinal, a vivência de uma “ocasional melancolia” como possibilidade do humano no impulso criador de Scarlatti. Essa possibilidade do humano sinaliza a inflexão ética na vida e na obra de Jorge de Sena e, diga-se, esteve sempre presente em tudo aquilo a que o autor assistiu e apreendeu. Refiro-me a um diapasão ético, de foro humanista, que se confirma na declaração lapidar que o autor emite em sua última entrevista, acerca do “caráter” de sua poesia: “Tudo quanto é humano me interessa” .
Nessa via de leitura de Arte de Música, sua meditação migra, frequentemente num mesmo poema, de uma especulação sobre música para uma reflexão sobre o impulso humano de fazer música, e deste para uma contemplação do fenômeno da vida e da morte. Sem dúvida, Sena está ciente desse trânsito do foco discursivo em seu livro quando anuncia para José Régio o tema da morte no desdobramento de suas transfigurações musicais: “[…] vai sair uma nova série de ‘metamorfoses’, estas todas sobre obras musicais, e sobretudo sobre a criação estética, o sentido da música, e também, como as outras, sobre a morte.” (SENA & RÉGIO, 1986: 220) . De fato, Jorge de Sena entende o quanto suas “metamorfoses” plásticas ou musicais sinalizam, através da meditação que tecem, uma inquietação subjetiva de fundo tanatológico, ao declarar:

Porque estes poemas são, através de objectos desses, e num sentido mais lato (porque dialéctico) […], “crítica da vida”. […] Mas, no que respeita ao elemento moralístico, acrescentemos que toda a poesia – […] – é uma meditação moral. Sem dúvida que o não é (ou não deve sê-lo) num sentido normativo; mas indubitavelmente o é num sentido escatológico, de inquirição aflita sobre as origens e os fins últimos do Homem (P2, p. 162)

Muitos são, em verdade, os poemas que versam sobre esse tema no livro, via de regra sinalizando a contradição entre a pulsão criadora que leva o homem a considerar magna uma arte como a música e o deparar-se com a terrível e inevitável certeza da morte. Dito de outra forma, os poemas negociam a possibilidade de um discurso entre o élan de vida que aspira à eternidade e a circunscrição da condição humana ao próprio ciclo da vida que, incontornavelmente, sabemos, inclui a morte. A persistência da voz de Édith Piaf na memória cultural do ocidente, mesmo depois de sua morte, no poema “A Piaf”; o registro fonográfico que faz reviver não só a intérprete Wanda Landowska, mas o próprio Doménico Scarlatti e um cravo de época, numa “apoteose/ de ressurreição” (v. 29-30); o próprio poema “‘Requiem’, de Mozart”, que parece transformar a missa de exéquias do compositor num canto de renascimento e glória; a metamorfose do heroísmo em uma eterna resistência, no poema “Marcha Fúnebre de Siegfried, do ‘Crepúsculo dos Deuses’”; bem como o irresistível gosto pelo “Infinito” e pelo “Paraíso” no poema “Mahler: Sinfonia da Ressureição”, são apenas os exemplos mais explícitos (e até literais) da forte recorrência do tema da morte como tópica de Arte de Música. É notável, a propósito desse tema, que o livro traga de volta, e de forma contundente, aquela “posição de revolta permanente” que Prado Coelho (1988, p. 121) já havia detectado na personalidade artística de Sena. Aqui, esta revolta se manifesta num profundo inconformismo do poeta diante da inexorabilidade da condição humana. Esse inconformismo, instigado pelos problemas da relação entre poesia e música, agencia uma espécie de visão utópica da superação dessa condição.
Noutro poema, “A Morte, o Espaço, a Eternidade”, que encerra o livro Metamorfoses, o poeta retoma essa perspectiva de revisão da ideia cultural de morte, repetindo um verso assertivo e lapidar: “Para emergir nascemos”. Com ele, Sena firma, por outra via, seu inconformismo em só se conseguir apreender a vida implacavelmente enredada ao ciclo biológico da natureza humana. Novamente, certa inflexão utópica de Sena pode ser depreendida nos versos finais deste poema:

Para emergir nascemos. O pavor nos traça,
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continue.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade. (P2, p. 142)

Aqui, o poeta enuncia um “tempo futuro” em que a vida efetivamente emerge como instância autônoma ante a vontade, as escolhas e o destino do homem. Falando a partir de uma vidência poética do cosmos, a Vida, assim com maiúscula, desponta como eterna no espaço do real, adquirindo, então, um estatuto impessoal e coletivo que se coloca no além da vida individual dos homens. Nesse passo, será interessante aproximar do poema de Sena a concepção nietszchiana do super-homem (Übermensch), pois se está, nestes versos, diante de uma tal sede de poder sobre a vida – e de uma sede de superação desta num além-vida que não é morte, mas Vida, com maiúscula –, que, diante dela, a noção vigente da condição humana parece emaranhada em velhos ideais e mesmo numa moral normativa, de certo modo “falida”, pois demasiado fatalista, circunscrita apenas às individualidades imediatas, e não à humanidade como um todo. A vida humana, então, passa a ser enunciada, no final de Metamorfoses (quer dizer, no limiar de Arte de Música) como uma ponte para a “vida super-humana”. E não seria a imagem da Vida arrastando nos punhos o infinito, tal como idealiza o poema, uma figuração metonímica do super-homem do conhecido filme de ficção científica, deslocando o mundo inteiro na potência dos braços? Seja como for, é bem verdade que o pensamento nietzschiano e o discurso lírico seniano têm curiosos pontos de contato, a começar pela perspectiva trágica do mundo e sua importância para a revisão paideumática do homem. Não sendo meu objetivo demonstrar tais contatos, destaco neste estudo apenas um deles que me parece fundamental para avançar pelo horizonte de problemas que Arte de Música propõe: a discussão sobre o mundo como “fenômeno estético” (NIETZSCHE, 2000, p. 18).
Endossando Prado Coelho, afirmei que o inconformismo do sujeito lírico seniano ante a condição humana lança-o numa permanente revolta diante do real, podendo esta revolta desdobrar-se numa espécie de utopia sobre a condição do homem. Enfatizo o relativizador “uma espécie de” justamente porque essa utopia opera a peculiar transformação do pensamento sobre a morte num pensamento sobre a vida, não se manifestando de forma monolítica no livro. Assim, a manifestação da utopia não propõe um projeto inteiramente idealista. Em Sena, pelo contrário, a utopia parece ser um instrumento de dramatização das contradições do mundo e do tempo, e seu discurso guarda um importante papel no esclarecimento do homem sobre a interpretação do real. O poema “Bach: Variações Goldberg” bem exemplifica o que estou apontando. Aqui, é a música, com os seus “íntimos segredos”, aquém ou além das palavras, o veículo “triunfal” que leva o sujeito a apreender uma silenciosa “essência” da “existência”, fazendo deste sujeito, assim, não “mais o quem que ouve, mas quem é” (v. 58). Nessa medida, a audição musical parece criar, para o entendimento do poeta, “uma cúpula de som dentro da qual/ possamos ter consciência de que o homem é, por vezes,/ maior do que si mesmo.” (v. 38-40). Porém, essa consciência de uma super-humanidade no homem (ideia que será retomada em “Fantasias de Mozart, para Tecla”) só acontece, note-se, enquanto o tempo da execução musical continuamente se atualiza e a “cúpula” da música não se ergue. Quando, ao cabo dessa percepção (e do poema), o poeta questiona: “Será que alguma vez, senão aqui,/ aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto/ de real e virtual serem idênticos […]?” (v. 55-57), está ele sobretudo mostrando enxergar, por contraste, que fora desse “aqui”, fora da experiência e do tempo musical, talvez não haja nem essência, nem existência, nem preenchimento significativo do mundo, muito menos “triunfo” da vida humana. O real se insinua, no fundo da vidência musical, como um espaço assustadoramente virtual, que é dizer: vazio e distópico.
Nesse ponto, a utopia seniana seria um exemplo precoce daquilo que Fredric Jameson teorizou sobre o estatuto desse conceito na pós-modernidade. Segundo o ensaísta (1994), a utopia manifesta pela literatura é mais uma forma de práxis do que uma forma de representação de ideias. Assim, a utopia não será nunca um projeto teleológico, mas um pretexto para a crítica do presente, através da qual nos redefinimos – ou, nos termos de Jorge de Sena, nos metamorfoseamos – sobre o decurso do tempo. Se o discurso de tal utopia no livro de Sena deve ser lido sobretudo como resultado de uma recusa à representação da morte – e, portanto, recusa da impotência do homem –, é porque, antes de qualquer coisa, o poeta foi capaz de perceber e verificar na morte a representação da condição mesma da humanidade, e encará-la, condição, enquanto percepção pragmática do real. Assim, não é possível falar de uma utopia em Arte de Música sem relativizá-la com uma mediação ética da vidência estética, porque o poeta tece uma dialética entre a música e o vestígio de humanidade que emerge nos sons, juntando, na experiência de plenitude e vazio da escuta, a experiência de plenitude e vazio da existência.
Dessa forma, procurando tecer a experiência do presente por meio da audição da música, o sujeito se identifica nesta sua própria recusa pela “pura” utopia. Longe de ser um “monolito” somente estético, surdo para o real (contra o qual entraria inevitavelmente numa rota de colisão), a utopia seniana, se ainda posso chamá-la assim, conduz a uma cosmovidência do sujeito lírico, na qual, subrepticamente, é o discurso de uma distopia o que não cessa de se evidenciar na meditação do humano que o sujeito opera por meio da música. E muitos são os exemplos disto. Logo no poema de abertura de Arte de Música, é a impossibilidade do sujeito de se rebelar contra o seu destino aquilo que projeta certa tragicidade, tanto nesse mesmo poema quanto no restante do livro que ora se abre ao leitor: “É desta imprecisão que eu tenho ódio/ nunca mais pude ser eu mesmo – esse homem parvo/ que, nascido do jovem tiranizado e triste,/ viveria traquilamente arreliado até a morte.” (v. 47-50). No já referido poema “A Criação, de Haydn”, é a impotência para confiar numa Criação deliberada por “vontade divina” o que impede o homem, mesmo em seus momentos epifânicos, de criar ele mesmo “tão jubilantes cânticos do criar do Mundo” (v. 4) como o fazia Haydn. No final do poema “Fantasias de Mozart, para Tecla”, o poeta, impressionado com o vigor humanístico do compositor austríaco, retoma a concepção do Übermensch (nascido do espírito da música) para questionar, estupefato, a mortalidade factual de Mozart, examente por constatar, mesmo a contra-gosto, a condição afinal humana no menino prodígio de Salzburg:

[…] o equilíbrio
entre um homem que é mais do que si mesmo
e um mundo que sempre outro se amplia de homens
felizes de que a música não os diga
mas os faça. Como
foi possível que este homem alguma vez morrese? (v. 25-30)
3. Do mundo como obra de arte
A constatação da humanidade que há na morte, ao invés de levar a um discurso alienado e somente inconformista, desencadeia no poeta de “Sinfonia Fantástica, de Berlioz” uma raiva: “raiva de não ser o mundo uma obra de arte” (v. 22). Essa “raiva” se lança sobre o mundo e põe literalmente em cena a discussão nietzschiana da existência como fenômeno estético, postulada em O nascimento da tragédia. Mas a “raiva” seniana traz à baila esta tese de Nietzsche (“a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético”) não para reafirmá-la, mas para expressar uma indignação com a descrença dela: “raiva de não ser o mundo uma obra de arte” (v. 22).
De fato, ao considerar o “efeito fácil” que o “romantismo sentimental” de Berlioz obtém em música, o poeta é levado a encarar o indício de solidão, amargura e melancolia que, humano, emerge da expressão musical de um mundo “cheio de róseas profundezas – e assassinos” (v. 35). Um mundo que, por mais estético que lhe possa parecer em sua representação sonora, se atualiza antes como coisa sensível (estou pensando em Platão); um mundo que reaparece ao poeta atravessado pela existência de “assassinos” que, por sua vez, impõem novamente a visão da suscetibilidade da vida – e, portanto, o pensamento da morte – na ordem de uma tristeza, de um desgosto, de um luto que, no real, nada têm de ilusão apolínea . Isto, porque apesar de todo o fascinante poder da música em fazer despontar de seu bojo a fundura da natureza humana, o sujeito lírico seniano mostra crer que nem essa nem nenhuma outra “rósea” fundura seriam suficientes para romper a limitação factual da vida. Afinal, fora do espaço simbólico da imaginação, no plano do real, não é possível evidentemente “criar” a imortalidade física do homem, porque o mundo – e é o que enraivece Sena – não é uma obra de arte. É, decerto, por conta da concretude do mundo que se vivem angústias efetivas, dores, rompantes, violências, hipocrisias, discórdias, derrotas, cinismos, entrujices; e se experiencia factualmente, afinal, a morte que, para Sena, nada tem de estética. Como afirma o sujeito de “‘Andante con Variazioni’, em Fá Maior, de Haydn”, “[…] esta vida é uma simples coisa tão subtilmente amarga/ que só variando em torno de perdê-la a toleramos toda.” (P2, p. 181)
Em resposta a uma entrevista de 1954, Sena declara que

“O mundo é precisamente esse desperdício, esse empobrecimento de cada hora, a cada papel que se rasga, cada memória que passa, cada morte que há. É a humanidade um somatório imenso do que não chegou a ser, e do que se supõe que foi. Disso mesmo, à nossa custa, se faz repositório a poesia: a fixação, para alguns séculos ou para algum acaso, do muito ou pouco que passou por nós.” (SENA, 1961, p. 170)

A responsabilidade poética de Jorge de Sena pode, novamente, ser assimilada enquanto bússola que orienta seu “estar no mundo”. A poesia assume, portanto, um papel relacional, ético, ao dar expressão e visibilidade ao que o poeta entende ser a “dignidade humana” (SENA, 1961, p. 171), fixando sua sutil atenção em tudo aquilo que pelo sujeito passa, sejam “imensos de searas”, aves, músicas ou humanas condições. Não é por outra razão que entendo o incontornável tom de testemunho em Jorge de Sena se evidenciar não como uma questão para a hermenêutica da escritura poética (originalmente arraigada à máscara do texto e, portanto, ao infinito jogo do fingimento entre autor e enunciador), mas se tecer, testemunho, junto com um compromisso ético de fidelidade a seu tempo e à sua consciência crítica do real. É, aliás, uma ética nascida do espírito da música o que transparece na resposta que Sena dá a um inquérito de La revue internationale de musique, em 1952. Perguntado sobre o problema da indiferença do público diante da complexidade da linguagem musical, responde:

“[…] não negando a existência de um problema muito grave da criação artística, que é tomar o andaime pelo edifício, eu não creio simplesmente que a linguagem musical moderna é a única responsável por uma indiferença qualquer do público. Há também a responsabilidade dos caixeiros-viajantes de excertos musicais conhecidos, que enriquecem através do comércio que afeta agradavelmente a memória auditiva dos freqüentadores de concertos. Mas por que seríamos nós tão exigentes? Faz-se música atualmente, pelo mundo inteiro e em dada hora para um número incrível de ouvintes: os concertos públicos, o fonógrafo, o rádio, são todos maravilhosas realidades. Eis que nós dispomos de tudo como os cortesãos da Alemanha suntuosa dos Príncipes. Isso somente nos faz crer em dois erros: que todo mundo pode se interessar profundamente por tudo, e que tudo o que se faz consiste em uma busca apenas pelo bem-estar. Porém, a verdade é que os homens – e muito justamente – não amarão com a mesma profundidade as mesmas coisas, e que a arte se dá não apenas para o conforto, mas para o chamamento. A quê? A tudo o que quisermos: Deus, o conhecimento de si mesmo, a consciência dos deveres e dos direitos das populações… tudo. E ocasionalmente é muito duro ser chamado.” (1952, p. 138)

Embora haja inconformismo com a inexorabilidade da morte, é senão pelo enfrentamento do real, através do qual se exerce a ética de testemunhar a morte, o que permite ao poeta constatar a dimensão concreta desta mortalidade na experiência cotidiana e artística dos homens. Na medida em que seu testemunho se aplica ao enfrentamento inquiridor da cultura e, em específico, da tradição musical, apreendendo daí o vestígio humano que lhes é intrínseco, a certeza da morte emerge virtualmente da arte (da execução) para se atualizar no real (na audição), apresentando-se como mais um índice de humanidade desentranhado, neste caso, do espírito da música (Musikgeist).
Sena volta sumária e rapidamente no seu “Ensaio de uma Tipologia Literária” , à questão do “mundo como obra de arte”, complexificando-a em nota à exposição dos planos de análise de uma obra literária. Diz o autor:

“Toda esta exposição (sucessiva) dos três planos de análise – vivência (ou posição ontológica), vidência (ou posição axiológica) e logicidade (ou posição lógica) – com as suas possíveis combinações que, em função do “problema do mal” […] e da “condição humana”, nos revelam, concomitantemente, quão estética é qualquer interpretação do universo, toda esta exposição, dizíamos, exige e possibilita algumas precisões.” (1977, p. 58, nota – grifo meu)

Se me detenho na leitura desse grifo, percebo que, conforme Sena, não é o universo em si que é um fenômeno estético, mas sua interpretação, seja ela qual for: técnica ou poética. A interpretação da existência é o que transforma (e, portanto, metamorfoseia) o real em artifício. A dimensão artificial (e artística, claro) do mundo sensível, enquanto interpretação, resulta, pois, de um trabalho de “mediação” do real que, filtrado a partir da estesia que lhe é imanente, terá uma inevitável representação “qualquer” de fundo estético. Portanto, para Sena, o real se diferenciaria do artificial exatamente por não se apresentar nem se justificar esteticamente. Não havendo justificativas para o mundo, e sendo ele gratuito e vazio, o que há são apenas interpretações que querem – e até podem – justificá-lo esteticamente; como faz a arte que, enquanto interpretação ela mesma, pode ser subsumida como uma justificativa de sua existência na realidade da qual emerge ou na qual se inscreve. Entretanto, por mais que as manobras do artifício justifiquem o mundo real (e seu vazio, e sua gratuidade), ainda assim elas não garantirão, pelo menos nos poemas de Sena, uma anuência do homem ante a ideia de vida finita ou experiência da morte biológica enquanto, ambos, fenômenos estéticos. Soma-se a esse entendimento o que Sena declara no prefácio da 1ª edição da recolha de livros Poesia I: “Porque só artificialmente, embora no plano da poesia e não no das artes distractivas, nos é possível assumir extrinsecamente, exteriormente, a multiplicidade vária que, dentro de nós, é uma família incómoda, uma sociedade inquieta, um mundo angustiado.” (P1, p. 25).
Assim, quando o tema da morte vem à tona em Arte de Música, por mais que esteticize a finitude humana num registro à primeira leitura utópico, não o faz nem para justificá-la enquanto “razão estética” a preencher o vazio da vida, muito menos para apagar o real onde essa finitude humana foi e é experimentada concretamente. Para além de apreender em sua cosmovisão da música esse característico vestígio humano, o poeta sente-se eticamente chamado a alcançar um modo de interpretação do discurso da música que testemunhe a concretude da morte, a qual, como coisa inexorável, incomoda, inquieta, angustia o mundo, subsistindo, morte, contra a maravilhosa ilusão estética de uma super-humanidade no homem.
Alcançar esse modo de interpretação implica não só utilizar o poder esteticizante da poesia, mas realizar uma dialética que “supere” a “consciência actual”, colocando-se numa perspectiva a partir da qual essa dialética faz jus à sua “vontade de fidelidade” ao mundo. Em outros termos, é possível dizer que a própria dialética seniana impõe uma perspectiva ética ao discurso poético. De um modo ou de outro, a interpretação seniana da música face ao mundo explicita um “lugar” onde essa dialética se perspectiva e enfrenta a enorme contradição entre o real e o virtual, entre as existências pragmática e estética do homem. Retomando, a esse respeito, o poema “Bach: Variações Goldberg”, percebo que o sujeito, de fato, enuncia um “aqui” a partir do qual todo o discurso poético se desenvolve:

Será que alguma vez, senão aqui,
aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto
de real e virtual serem idênticos, e de nós
não sermos mais o quem que ouve, mas quem é? A ponto de
nós termos sido música somente? (v. 55-59)

Nesse “aqui” do poema se processa aquela “superação” dialética entre o real (onde estaria o sujeito testemunhal da audição) e o virtual (onde se projetariam as visões musicais desencadeadas nesse sujeito). Esse “aqui”, portanto, faz o “lugar” da enunciação lírica coincidir exatamente com o “lugar” da figuração musical, espelhados um no outro, numa mesma “suspensão da realidade”. As interrogações do poeta, retóricas, sem dúvida, expressam seu espanto diante dessa “suspensão”, sob efeito da qual já não interessa mais a identidade do sujeito ou a estética da música, mas o “ser” ontológico que aí se confunde com a pulsão ontológica da criação musical. Não é por menos que a consciência desse “lugar” leva a lírica a enunciar, como lemos, que o homem é a música. Outro exemplo desta problemática que acaba por fazer o poeta identificar música e homem acontece, não por acaso, no começo de outro poema referente à “música absoluta” de Bach: “Prelúdios e Fugas e J. S. Bach, para Órgão”:

[…] Nada se compara
a este respirar esganiçado e grave
que em sopros sucessivos é
uma recusa altiva de encobrir o nada
com sentimentos, ideias, paixões,
virtudes, pecados. Humildade
tão segura de si, que estar-se vivo
de ouvidos postos no silêncio é
a melodia oculta e repartida
em tantas seqüências que se opõem, […] (v. 3-12)

Também neste poema, a vida do ouvinte é identificada com a música. O sujeito da audição passa a ser consubstanciado pelas próprias sequências sonoras que aí são executadas; afinal, “estar-se vivo”, na atenta escuta, faz o ouvinte ser a melodia. Mais adiante, no final da última parte desse mesmo poema, o sujeito volta a enunciar um “aqui” como “lugar” de suspensão do real, suspendendo junto, pelo instante da execução, a concretude das dores e complacências que neste real há. Novamente, Sena enuncia um “lugar” de identificação da realidade da vida com a virtualidade da música, deflagrando aquela experiência de pasmo ontológico, em que a vida se refere já a um “nós” para além do ouvinte individualizado, e o “ser”, “aqui”, se dissolve no tempo da música; um tempo que, afinal, (não) é “nada”:

[…]
E nestes graves que ressoa: a dor
ou uma serena e firme complacência ignota?

Oh não. Que a vida está ausente e alheia,
lá onde, como aqui, os sons são ela mesma
tornada um tempo que nos flui mental,
concreto, ciente, e reduzido a nada. (v. 54-59)

Com tudo isto posto, fica patente que o “lugar” onde a música e o sujeito lírico se correpondem é a própria dimensão textual das “metamorfoses musicais” de Jorge de Sena. Porém, mais do que isto, interessa-me ressaltar que, sendo o texto poético o “lugar” onde a música sofre uma complicada transformação, será também o “lugar” onde o sujeito lírico sofre, ele mesmo, por identidade com a música, por identidade com o humano da música, assim, suas próprias metamorfoses.

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