Neste artigo, Mônica Fagundes explora a figura da Ninfa nos poemas ecfrásticos de Metamorfoses. Partindo da conceituação de Aby Warburg e passando por autores como Georges Didi-Huberman e Giorgio Agambem, a autora traça um percurso que vai ao encontro de figuras-chave do texto seniano, como Deméter, Afrodite e Ofélia.
Mônica Genelhu Fagundes*
Revisitando Metamorfoses, projeto de Jorge de Sena que é considerado fundador de uma linhagem ecfrástica na poesia portuguesa moderna e contemporânea, esta investigação parte de um reconhecimento que desencadeia uma perseguição. O livro que o próprio Sena (1988, p.159) concebia como um “epítome da História humana através da Arte”, conforme escreve no “Post-fácio” à obra, é atravessado por uma figura tão insistente quanto fugidia: a Ninfa. Ela já fascinara o historiador e teórico da arte Aby Warburg, cujo pensamento é seduzido pelo passo ligeiro, dançante, quase alado dessa personagem que transita pela pintura e pela escultura do Renascimento, e pelo tempo histórico, fazendo o passado adentrar o presente na forma perturbadora de uma sobrevivência (Nachleben); tornando-se mesmo uma alegoria teórica desse conceito que implicaria um repensar as próprias concepções de cronologia e história. Dar-se conta da sua presença em Metamorfoses e acompanhar a sua travessia – metamórfica, como era de se esperar – pelas reproduções de obras plásticas e pelos poemas que com elas dialogam ao longo do livro é um modo de re-conhecer o pensamento sobre arte, a teoria da história, a percepção de humanidade que Jorge de Sena aí incorpora.
“Entre as valvas de uma concha”
No “Post-fácio” a Metamorfoses, Sena (1988) conta ao leitor, embora não sem ironia, algo como “as ‘memórias’ dos seus poemas” (p. 159), reconstituindo e apresentando o processo de composição do livro. Um percurso acidentado que se dá a perceber menos guiado pela intencionalidade (já de início e então sucessivas vezes falhada) do que por uma espécie de inconsciente poético, que fazia chegarem “fora de ordem” e de maneira inesperada poemas sobre obras imprevistas, que tomavam o lugar de outras possivelmente mais apreciadas ou que pareciam fazer falta a uma idealizada série; lapso com o qual poeta se conformava, apenas para ser novamente surpreendido com a irrupção de um poema que fizera parte de certo plano original, a que, entretanto, renunciara sem grande remorso e que já agora devia retomar, de outra maneira. A modo de concerto desta camoniana errância, Sena interviria posteriormente com a identificação de um tema dominante: a morte, e com uma armação estrutural baseada numa imagem: “uma concha pagã” (p. 157):
A presença da Morte domina, com efeito, a maioria dos poemas; e não será seguro dizer que a morte não está implícita neles todos. Que tal presença ficasse contida entre dois poemas (da sensualidade ambígua e sugerida, e da sensualidade promíscua e realizada, respectivamente) como entre as duas valvas de uma concha, ou os lábios de uma mesma matriz, eis o que me pareceu correcto e acertado. (SENA, 1988, p.154)
Os poemas ecfrásticos propriamente ditos, em que de fato o tema da morte é muito pronunciado, ficariam acolhidos portanto entre um poema já publicado na coletânea anterior de Sena, Fidelidade, com o título “Metamorfose” – agora mudado para “Ante-Metamorfose”, e o que viriam a ser dois poemas – ou “variações” – de uma “Post-Metamorfose”. O livro se anuncia assim como uma espécie de recinto da morte adornado – prudentemente delimitado – por poemas de ambiência e personagens mitológicas cujo tema flagrante é o erotismo. Essa ainda não seria, porém, a sua forma definitiva:
[…] aquela imagem da concha, que eu encontrara […] explodira nos três primeiros dos Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, a que veio juntar-se um quarto soneto. Isso não o entendi então, mas só agora. E os sonetos são na verdade a conclusão deste livro, como se, da concha tão rica da Morte, Afrodite brotasse qual a do quadro de Botticelli (SENA, 1988, p. 155, grifo nosso.)
Afrodite brotando da concha da Morte é uma imagem perturbadora, como talvez ninguém pudesse compreender – ou fazer compreender – melhor do que Aby Warburg. Foi precisamente à pintura de Botticelli que Warburg dedicou sua pesquisa de doutorado, desenvolvida em Florença, entre 1888 e 1893, de que resultou uma tese sobre O Nascimento de Vênus e A Primavera. Esse é também o primeiro de muitos momentos em que seu olhar buscaria apreender a figura a um tempo persistente e fluida da Ninfa; ela lhe aparecia por toda parte, como uma ideia fixa mas frágil, sempre a lhe escapar.
Curiosamente, a tese de Warburg é um estudo sobre écfrase. Como fontes da representação do nascimento de Vênus por Botticelli, ele identifica os hinos homéricos a Afrodite e um poema de Angelo Poliziano, a Giostra, que teria intermediado decisivamente a recepção da cena mítica pelo pintor, moldando a sua figuração em tela. Ocorre que o poema produz uma écfrase nocional, a descrição de uma obra de arte imaginária[1]:
Em seu poema, Poliziano concebe uma série de relevos, que seriam obras-primas que Vulcano teria forjado com as próprias mãos, dispondo-as em duas fileiras nas colunas dos portões do Palácio de Vênus; o conjunto estaria arrematado por uma moldura ornamental de folhas de acanto, flores e pássaros. Enquanto a primeira fileira de relevos tematiza alegorias sobre a origem do cosmos, vindo até O nascimento de Vênus, na segunda sequência de relevos o poder de Vênus é ilustrado com doze exemplos clássicos. O nascimento de Vênus, sua recepção na Terra e no Olimpo são descritos nas estrofes 99-103. (WARBURG, 2015, p. 29)
Cotejando a sequência referida da Giostra e o trecho correspondente nos hinos homéricos, Warburg (2015, p. 32) observa que Poliziano mantém-se fiel a Homero no que concerne à ação: “[…] nos dois casos, Vênus, que emerge do mar, é impulsionada pelo vento, Zéfiro, até chegar a terra firme, onde as deusas das estações a recepcionam.” E prossegue indicando as alterações, que em boa parte Botticelli herdaria:
O acréscimo de Poliziano praticamente só diz respeito ao colorido que conferiu aos detalhes e acessórios; se o poeta se detém na descrição exata desses elementos é para, graças à ficção de uma representação fiel que alcança até os mínimos detalhes, tornar plausível a surpreendente realidade natural das obras de arte descritas. Eis o que seriam tais acréscimos: vários ventos, cujos sopros se veem, impulsionam Vênus, que está de pé em uma concha, até a praia, onde as três Horas a recebem e a vestem com um “manto estrelado” […] O vento se lança nos trajes brancos das Horas e frisa seus cabelos soltos e flutuantes. O poeta se admira justamente com esse acessório movido pelo vento, reconhecendo aí a ilusão que o exercício virtuoso da arte produz. (WARBURG, 2015, p. 32)
Um truque de verossimilhança, cuja necessidade é provocada pelo exercício ecfrástico: assim Warburg justifica inicialmente o cuidado de Poliziano em descrever a mobilidade aparente dos elementos acessórios da cena esculpida. Detalhe que não só se mantém, como se traduz de forma impressionante do poema para a tela de Botticelli: todo movimento é aí representado por uma animação que se transfere das figuras humanas – impassíveis, desafeiçoadas, diz Didi-Huberman (2013, p. 207) – para a borda dos corpos e as margens do quadro: os sopros visíveis dos Zéfiros, os trajes enfunados e agitados pelo vento, drapeados; os cabelos de Vênus que esvoaçam, os cabelos da deusa que a espera, espiralados. Deslocamento não de um objeto, mas de uma capacidade de movimento, gerando um estranhamento que produz intensidade. Melhor: a impressão de uma “vida intensificada (WARBURG, 2015, p. 84).
Figura 1. Sandro Botticelli. O Nascimento de Vênus. Têmpera sobre tela. Galeria degli Uffizi, Florença. 1483
Tal recurso expressivo se tornaria a questão central da tese de Warburg, que reconhece esse modo de representação do movimento como uma Pathosformel (embora esse termo só fosse aparecer efetivamente nomeado em trabalhos posteriores seus): uma fórmula de pathos que se transmite através da história. Trata-se do modo de representação (fórmula) de um afeto (pathos) interior por meio de uma causa (o vento) e de efeitos exteriores (o drapeado dos tecidos, os cabelos flutuantes). Não uma invenção de Poliziano ou de Botticelli, mas – e é isto o fundamental – uma reminiscência, ou antes: o sintoma de uma sobrevivência da Antiguidade clássica (Nachleben der Antike), que os primeiros renascentistas florentinos – Mantegna, Donatello – foram redescobrir nas paredes de antigos sarcófagos. Ali, naqueles espaços da morte, mênades dançam, todo o seu movimento incorporado às dobras de suas vestes, às volutas de seus cabelos. Fórmula de movimento que se transmitiu da Antiguidade pagã para o Renascimento florentino e muitos outros tempos, como o próprio Warburg daria a ver na sua obra final, inacabada, o Atlas Mnemosyne, atravessado por uma coreografia de drapeados e cabelos ao vento, encarnando-se em uma série potencialmente infinita de figuras a que ele chamou Ninfa: “[…] a heroína dos ‘movimentos efêmeros do cabelo e da roupa […]” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 219), um fóssil vivo, uma imagem obsedante, um fantasma.
Não seria este o estatuto da Afrodite que surge em Metamorfoses, brotando “da concha tão rica da Morte”, uma Ninfa dentre outras várias que, como se verá em breve, fazem aparições pelo livro? Ou será mais preciso sugerir: não será ela, uma vez mais, a Ninfa? visto que, como explica Agamben (2012, p. 29): “a ninfa não é uma matéria passional à qual o artista deve dar nova forma, nem um molde ao qual deve submeter seus materiais emotivos. A ninfa é um composto indiscernível de originalidade e repetição, forma e matéria.” E complementa Deleuze: “Não é o ser [a ninfa] que retorna, mas o retornar em si que constitui o ser [a ninfa] como aquele que se afirma pelo devir e pelo que passa. Não é o um que retorna; o próprio retornar é o um que se afirma pelo diverso ou pelo múltiplo.” (DELEUZE,1962 , p. 54-55 apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 150).[2] A Ninfa se definiria pelo seu retornar, por estar sempre de passagem, atravessando o tempo, em sobrevivência e em metamorfose; em travessia.
E se Afrodite e todas as ninfas que cruzam Metamorfoses (todas as ninfas a Ninfa) são esse “fantasma metamórfico […], uma semelhança que passa e retorna” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 151), não será a história que Sena aí mobiliza também uma história de fantasmas, no sentido de Warburg, que certa vez definiu a sua história das imagens como uma “história de fantasmas para gente grande” (WARBURG, 1928-1929, p. 3 apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 72)?[3] Convém tornar ao “Postfácio” de Sena e recordar a inspiração original da série de poemas: um encontro no Museu Britânico… com o sarcófago de uma múmia do Egito: Artemidoro, “um velho amigo através dos séculos” (SENA, 1988, p. 152):
A tua múmia está no Museu Britânico
entre as fileiras tristes do segundo andar.
Alguém ta descobriu num cemitério copta,
que os areais e o tempo haviam ocultado,
por séculos de calma eternidade
que em teu caixão não profanado por
ladrões de sepulturas conheceste.
Secaste assim serenamente, enquanto
quem tu eras se perdeu depressa
nas memórias humanas que habitaste.
Importa o teu caixão, ou mais, a tampa
em que, segundo os usos do teu tempo,
um pintor cujo ofício principal seria
retratar os mortos te compôs um rosto.
[…]
E o teu líquido olhar ficou fitando
– num jeito que passou a Creta,
atravessou incólume Veneza,
o Tintoreto e Roma até Toledo,
em que é de Apostolado para o Greco
mas para ti e os teus […]
que seria esse olhar tão líquido e profundo que me fita
envidraçado pela morte e pelas crenças todas
e também pela vidraça que, interposta,
não nos separa menos do que os séculos?
Artemidoro: escuta! […]
Que mais escutarás com esses olhos que ouvem
atentamente os breves estalidos que o eterno,
como o romper da aurora nas estátuas,
provoca em nós e em nossas coisas, fissurando
a pouco e pouco a carne, a pele, os ossos, tudo
o que de deuses palpita e ressuscita em nós
[…]
(SENA, 1988, p. 70-71.)
É um atravessamento: o do olhar aurático do Artemidoro, que vem através dos séculos se cruzar com o do poeta, revidar o seu olhar (BENJAMIN, 1994), o que desencadeia em Sena a ideia para sua série de poemas ecfrásticos. Um olhar carregado de movimento, “líquido”, fluido, que vem se fixar no poeta, fazendo-o perceber nas coleções dos museus que visitava “[…] a comovente historicidade da natureza humana, que palpita e vibra naquelas antologias […]”, “[…] uma humanidade viva, gente viva, pessoas, sobretudo pessoas […]” (SENA,1988, p. 151-152). E diante do olhar do Artemidoro, potencializado em escuta, essa sobrevivência – quase literal – já não se percebe apenas em obra alheia, mas se experimenta no próprio corpo (possessão, se de fantasmas se trata? passo de dança, se de ninfas se trata?), que estala, que fissura, que se move, num fiat lux traduzido em experiência interior, que é “como o romper da aurora nas estátuas”: uma revelação, sim, mas também um quebrar da pedra, uma abertura (da concha), uma entrada de ar, um fôlego, uma superfície que se drapeia, uma vida que intensifica. E o que insufla tanto movimento, e tanta dádiva de movimento, num olhar “envidraçado pela morte”? a escritura, o poema, a écfrase: “acessório em movimento”, à borda, à margem das imagens, que com elas se comove.
“Deusa pagã no exílio”
Warburg tinha uma ninfa favorita: a moça carregando uma cesta de frutas que adentra um afresco de Ghirlandaio na Capela Tornabuoni, na Basílica de Santa Maria Novella, em Florença (mais um espaço da morte, “o lugar de sepultura mais solene” da igreja – WARBURG; JOLLES, 2018, p. 72). Foi a sua imagem que ele recortou para a capa de um projeto (inacabado): Ninfa Fiorentina (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 297), que se desenvolveria na forma de uma correspondência fictícia entre o próprio Warburg e André Jolles. Na primeira carta, Jolles recupera (por écfrase) o afresco de Ghirlandaio e se declara apaixonado pela “figura fantástica”, “de uma serva, antes, de uma ninfa clássica” que “corre, ou melhor, voa, ou melhor, paira” a um canto da pintura, mas afetando-a toda. Jolles pergunta a Warburg: “Quem é? De onde vem? Talvez já a tenha encontrado antes, 1.500 anos atrás?” (WARBURG; JOLLES, 2018, p. 68, 70-71).
Figura 2. Domenico Ghirlandaio. O Nascimento de São João Batista. Afresco. Santa Maria Novella, Florença. 1486-1490.
A cena representada no afresco é o nascimento de São João Batista, tornado quadro de costumes do Quattrocento, povoado de membros e criados da família de ricos burgueses, os Tornabuoni, patronos da capela. Seria uma cena serena, não fosse perturbada pela figura que irrompe pela porta, às costas das demais personagens, que não lhe dão importância, à exceção da própria Isabel, que, embora nitidamente cansada do parto, parece levemente sobressaltada e alerta à entrada impetuosa. O olhar da Santa e o da Ninfa se encontram e se sustentam. Talvez se sentissem ambas fora de lugar, na capela renascentista. É mais um cruzamento de tempos, mais uma troca de olhares de exilados, lembrando a do poeta moderno com o retrato da múmia do Egito num museu londrino. Mas certamente o anacronismo mais marcado, a maior estranheza emana da Ninfa, que invade o quarto da parturiente, a pintura, a capela, o Renascimento florentino, a lógica temporal, com “passo ligeiro” (WARBURG; JOLLES, 2018, p. 71), vestes e cabelos que esvoaçam a um vento que não se sabe de onde (de quando) vem.
Jolles imagina mesmo que a sua passada altera o chão onde pisa, que parece “[…] perder a natural característica da imobilidade para assumir uma elasticidade ondeante […]” (WARBURG; JOLLES, 2018, p.68). Uma boa metáfora para o que a faz a Ninfa com a história e a percepção que dela se tem, rompendo o ilusório continuum e tornando-a superfície elástica, suscetível a dobras, idas e vindas, esgarçamentos e encurtamentos, superposições. Não se trata de abolir a história numa atemporalidade (ao que tanto Warburg como Jorge de Sena tinham horror), mas, pelo contrário, de adentrar a história e abordá-la em toda a sua complexidade. Como sentencia Agamben (2012, p. 61), a Ninfa é “uma vida puramente histórica”, que atravessa a história, a incorpora e transpõe.
Essa figura peregrina faz um percurso por Metamorfoses, prenunciado já no poema que Sena escrevera anos antes de encontrar Artemidoro, e que então se tornaria “Ante-Metamorfose” (SENA, 1988, p. 37-38). Ela surge aí como uma espécie de fóssil entrevisto na areia (conceito caro a Warburg na elaboração de seu pensamento sobre a Nachleben, considerada como um pós-vida):
Ao pé dos cardos sobre a areia fina
que o vento a pouco e pouco amontoara
contra o seu corpo (mal se distinguia
tal como as plantas entre a areia arfando)
um deus dormia. […]
(SENA, 1988, p. 37)
Com um olhar algo arqueológico, o poema interpela essa criatura fossilizada, observável, mas indefinida, que guarda uma história, uma vida:
[…] Há quanto tempo? Há quanto?
E um deus ou deusa? Quantos sóis e chuvas,
quantos luares nas águas ou nas nuvens,
tisnado haviam essa pele tão lisa
em que a penugem tinha areia esparsa?
(SENA, 1988, p. 37)
Os signos que caracterizam a Ninfa, a sua Pathosformel, estão ali presentes: “cabelos espalhados”, “dorso ondeante” – mas entorpecidos (será talvez o melhor modo de dizer), como à espera de um sopro que os fizesse efetivamente se mover, de um fôlego que os revigorasse:
Negros cabelos se espalhavam onde
nos braços recruzados se escondia o rosto.
Mas respirava? Ou só uma luz difusa
se demorava no seu dorso ondeante
(SENA, 1988, p. 37-38, grifo nosso)
Mesmo o andar da Ninfa, entre a pressa e o voo, resta neste corpo, atrofiado embora, e se dá a ver, como vestígio ou potência, pelo olhar que o contempla e descreve:
[…] As pernas estendidas,
com um pé sobre outro pé e os calcanhares
um pouco soerguidos na lembrança de asas:
(SENA, 1988, p. 38, grifo nosso)
O poema termina numa hesitação que ameaça abolir a imagem e que, no entanto, acaba por confirmá-la Ninfa, forma persistente e frágil, entre luto e devir:
Há quanto tempo ali dormia? Há quanto?
Ou não dormia? Ou não estaria ali?
Ao pé dos cardos
Imagem, só lembrança, aspiração?
De perto ou longe não se distinguia.
(SENA, 1988, p. 38, grifo nosso)
“Ante-Metamorfose” é a descoberta de uma Ninfa à espera, ou um desejo de Ninfa, que efetivamente se consuma quando também o livro de Sena se faz forma. Ela surge aí em pelo menos 6 poemas dos 20 que compõem o núcleo ecfrástico (como também nas variações “Post-Metamorfose” e, claro, nos Sonetos a Afrodite Anadiómena), assumindo formas muito diversas, qual uma metamorfose encarnada, num paradigma que se diria coreográfico: dançante e plástico, rememorado e mutável.
Em sua primeira aparição, tem um “peito quase humano” e perdeu uma das patas, o que ainda lhe deixa uma de vantagem sobre as ninfas típicas. A gazela ibérica, que “suspensa nas três patas se repousa”, é “movimento que ainda hesita”, mas seus pés dianteiros assumem quase a exata posição dos pés daquela “senhorinha de passo ligeiro” (WARBURG; JOLLES, 2018, p. 71) de Ghirlandaio: ela está pronta a correr; já corre no poema que a acompanha, animado, com “seus versos curtos, ágeis […] como um passo de gazela” (SALLES, 2008, p. 83): “acessório” pelo qual se expressa, deslocada e intensificada, a mobilidade, diria Warburg.
Figura 3. Gazela da Ibéria.
Mas é também o poema que a toca como um sopro de vento e a faz mover-se, transitar pela história, para chegar ao livro de Sena como sobrevivente de um povo que já não existe; vestígio de uma cultura que com ela, porém, persiste e retorna, de modo espectral:
Há muito as árvores caíram. Há
perdidos tempos sem memória que
morreram as aldeias nas montanhas
e pedra a pedra se deliram nelas.
Há muito tempo que esse povo – qual? –
violado foi por invasões, e em sangue,
em fogo e em escravidão, ou só no amor
dos homens que chegavam em navios
de longos remos e velas pandas
se dissolveu tranquilo, abandonando
os montes pelos vales, a floresta
pelas escarpas onde o mar arfava
nas enseadas mansas e nas praias,
e as fontes límpidas por rios que,
entre a verdura, sinuosa iam.
Há muito, mas esta gazela resta,
(SENA, 1988, p. 59)
É como se todo o movimento dessa natureza transformada, de árvores destruídas e pedras rolantes; dessa história de guerras, destruição, sofrimento, amor e viagens, migrações e novos povoamentos se concentrasse na gazela, imagem carregada de tempo, “vida puramente histórica”, para lembrar Agamben (2012, p. 61).
Vira-se uma página e surge outra Ninfa, essa de fato imagem de uma deusa clássica, como se Sena tivesse querido buscar uma matriz, impossível, porém, pois já se sabe que não há Ninfa original, ou arquétipo de Ninfa: o que a constitui é seu retorno e sua metamorfose. E no mais, a sua “Deméter” (SENA, 1988, p. 63-64) a encontra no museu, já metamorfoseada em obra de arte, e com mutilações que, diria André Malraux, se tornam parte de sua composição e de sua apreciação estética.[4]
É um monstro em pregas vastas, sem cabeça,
sem pernas e sem braços. É montanha
de ancas e torso, e de que os seios são
como rochedos. Pedra, a própria pedra
vibrando sob os véus das névoas e das nuvens,
e parda de distância. Assim brotou,
vulcânica nas chamas dos primórdios dias,
ou lenta se ascendeu da crosta entreaberta,
para sentar-se larga à beira das planícies,
e debruçar-se nos desfiladeiros
em que é si mesma, abrupta, com pés
ocultos onde os mares são profundezas
compactas e negras.
(SENA, 1988, p. 63)
É por uma rememoração geológica que o poema apresenta Deméter, a deusa da terra cultivada, como se a sua estátua fosse não obra humana, mas formação da natureza, força da natureza manifesta: montanha, “pedra, a própria pedra”, “vulcânica”, ascendida da crosta entreaberta, sentada à beira de planícies ou debruçada sobre desfiladeiros, com mares aos pés. Um “monstro” de eras pré-históricas, idades várias convergidas numa forma, “o resultado de uma duração imensa” (DIDIHUBERMAN, 2013, p. 121) expresso em “pregas vastas” que são como um mapa de relevo: espaço e tempo confluindo num traçado anacrônico, que é repercussão de muito movimento: sismos, erupções, erosões. Esse drapeado simulado “natural” anuncia, ao olhar do poeta, vida interior, como se seguisse a mesma regra que Warburg (2015) descobriu na arte; fórmula que se resolve em Ninfa:
E, no entanto,
um suave vulto se adivinha dentro
das curvas e das pregas. Se adivinha branco,
e se adivinha límpido e gracioso,
com mãos e dedos, com pescoço e boca,
com olhos e entranhas, coxas, ombros,
vida que irrompe da harmonia pétrea.
(SENA, 1988, p. 63)
“É um monstro delicado”, diz o poema, sintetizando com impressionante economia as tensões que habitam essa imagem, que dialeticamente a constituem: fora e dentro, peso e leveza, dureza e mobilidade, pedra e corpo, minério e carne, matriz e forma:
É um monstro delicado. Peso bruto,
uma matriz de estátuas. Sob o céu,
sob astros cintilantes, e ante as ondas
que com o vento vão lambendo as pregas
e pregueando-lhe a superfície lisa,
a vida vai rompendo a casca da montanha,
e do ovo sai proporcionada e pura,
alada em passos de que o corpo se ergue,
e de cabelos suspendendo a altura.
(SENA, 1988, p. 63)
O drapeado artístico, efeito figurado de ondas e vento, é, como Warburg (2015) indica, sintoma, índice de abertura, representação exterior de mobilidade que corresponde e apela a uma vibração interior, assim revelada. Didi-Huberman (2013, p. 221) explica que
[…] a Ninfa […] fornece a articulação possível entre a “causa externa” – a atmosfera, o vento – e a “causa interna”, que é, fundamentalmente, desejo. A Ninfa, com seus cabelos e seus drapeados em movimento, surge, assim, como um ponto de encontro sempre móvel entre o fora e o dentro, a lei atmosférica do vento e a lei visceral do desejo.
Mas Deméter guarda ainda um outro mistério, a que o poema parece aludir com a cena de nascimento, um parto mítico, uma metamorfose descrita na terceira estrofe: “a vida vai rompendo a casca da montanha, / e do ovo sai proporcionada e pura”. Trata-se de sua filha: Perséfone, ou Kore (a “menina divina” que foi raptada por Hades e fez sua mãe esquecer a terra em infertilidade até que Zeus lhe devolvesse a filha a cada primavera). Mãe e filha eram cultuadas nos Mistérios Eleusinos, numa celebração que, segundo Agamben (2010, p. 8), traz à tona uma indeterminação inquietante, porque “[…] tende a anular e pôr em questão a distinção entre as duas figuras essenciais da feminilidade: a mulher (a mãe) e a menina (a virgem) […]”. Kore seria “[…] a vida que não se deixa ‘dizer’, isto é, definir […]” (p. 12); “[…] uma soleira ou limiar. Assim como confunde e indetermina a cesura entre a mulher e a menina, a virgem e a mãe, também o faz com aquela entre o animal e o humano, e entre este e o divino […]” (p. 28). Indefinível, ela ordena ao silêncio. “La ragazza indicibile”, como a chama Agamben, ensinaria, pela iniciação no seu mistério, “[…] que não há mistério algum, tão-somente uma moça indizível […]” (p. 32). E que aquilo a que os homens devem ser iniciados é nada mais que à própria vida: o único aprendizado é “[…] viver a vida como uma iniciação […]” (p. 32).[5]
Em sua última estrofe, o poema se dirige à figura que contempla, como tendo passado por um rito deste tipo. A deusa, ambígua, se recobre de véus, mas é pura matéria; é, sobretudo, “seio sem palavra” – silencioso e indizível. Corpo da arte, corpo de carne: humanidade.
Ó terra, ó monstro, ó pedra, ó doce manto
que os véus recobrem temporais e eternos!
Sem pernas e sem braços, sem cabeça,
ó torso e joelhos, seio sem palavra,
ó estátua prometida, carne imaculada!
Em “Céfalo e Prócris” (SENA, 1988, p. 87-88) surge uma ninfa renascentista numa pintura de Piero di Cosimo, artista florentino, contemporâneo de Botticelli e de Ghirlandaio. Ironicamente, essa figura de Metamorfoses que seria a mais próxima daquelas ninfas estudadas por Warburg parece a princípio ser um avesso seu: não uma sobrevivente, mas uma ninfa morta. O drapeado de suas vestes não é efeito do vento, mas da queda do corpo, em definitivo repouso; seus cabelos não esvoaçam: ondulam sobre o seu pescoço ferido e cascateiam em direção à terra, quase confundindo-se com a grama. O movimento fica restrito ao plano de fundo da tela, onde aves voam e aterrissam na água, atravessada por barcos de velas pandas. E, no entanto, há vento e brisa na história das personagens, assinalando eventos que as levaram a tal desfecho, e que o poema rememora.
Figura 5. Piero di Cosimo. A Morte de Prócris. Óleo sobre álamo. National Gallery, Londres. 1495.
A composição se inicia com uma genealogia de Céfalo e de Prócris, convocados em segunda pessoa. Sena faz questão de incluir tangencialmente nessa narrativa das origens a “deusa / (das águas ascendida fecundadas / pelo castrado sexo que a seu pai / Cronos cortou)”: Afrodite, depois retomada como um símile ao final do poema: “como a espuma / que as praias vem qual sémen de Cronos”. A primeira estrofe termina, no entanto, não em clave erótica, mas revelando, abruptamente, o destino trágico dos amantes: “[…] Céfalo que amaste e que te desposou / e que, por teu ciúme, te matou.” A seguir, porém, a história se expande em detalhes, numa relativização do tema do mito, do que efetivamente estaria aí em questão: “Ciúme apenas? Não.”. E, a meio de uma sequência “de enganos, / de mutações, de incestos e de crimes”, surgem, significativamente: “o cão veloz qual vento” e a “brisa que envolve [Céfalo] e à flor da pele o beija”, despertando os ciúmes de Prócris e levando seu marido a matá-la, inadvertidamente. Assim a cena estática se revela carregada de vento: em potência, no cão, figura marginal, mas destacada, que vela a ninfa; e como o motivo – insuspeitado, embora – de sua morte.
A leitura de Sena acaba por transformar o que seria uma trama de enganos de amor e ciúme numa alegoria da vida humana pensada como ato artístico. A morte de Prócris, a culpa de Céfalo os humanizam; a sua história trágica, de tantos mal-entendidos, torna-se exemplar da “liberdade de nascer-se humano”. Condição que o poeta descreve citando Pico della Mirandola: “nem dos céus, nem da terra, nem mortal / nem imortal, mas livre e altivo artista / que o próprio ser esculpe e que o modela / na forma preferida”. O poema termina aludindo a um “modelo ignoto, entre o devir e as coisas”: fórmula desconhecida da vida, do seu sentido, insistentemente buscada, insistentemente perdida; captada, se se pode dizer tanto, em sua irredutível dialética, na figura da Ninfa, no momento extremo do seu pathos, da sua metamorfose de ser a imagem, a fantasma:
esse modelo ignoto, entre o devir e as coisas,
e que se perde, livre, quando Prócris morre,
e se demora, altivo, quando a mata Céfalo.
(SENA, 1988, p. 88)
A próxima ninfa é mais feliz: “balouça pelos ares no espaço / entre arvoredo que tremula e saias / que lânguidas esvoaçam indiscretas!”. A dama no “Balouço” de Fragonard (SENA, 1988, p. 107) produz seu próprio vento, visível no drapeado de sua roupa que já não é “acessório em movimento”, mas em frenesi. Didi-Huberman (2013) recupera do tratado de arqueologia de Maurice Emmanuel sobre A dança grega antiga (1896) um apontamento que vai bem para pensar essa imagem: “[…] a roupa torna-se algo como o espaço intersticial – igualmente dançante – entre o corpo e a atmosfera que ele habita […]” (p. 223). O voo da moça, expresso pelo enfunado e pelos volteios de suas saias, contamina todo o cenário, descrito pelo poema como envolvido numa “vertigem” em que “estátuas e […] muros se balouçam” – deslocamento que, como Warburg dizia, intensifica o movimento ao atribuí-lo a elementos inanimados; neste caso, de pedra. (Como em “Deméter”, mais uma vez a pedra dança em Metamorfoses.) O desejo da moça, que ela encarna e desperta, igualmente se transmite para (e se traduz por) um jardim que “se emprenha de volúpia”.
Figura 6. Jean-Honoré Fragonard. O Balanço. Óleo sobre tela. Wallace Collection, Londres. 1766.
O movimento da roupa gera ainda uma exposição da intimidade, em pernas que se abrem e se desnudam, numa nova configuração, em diferentes trajos, do “belo paradoxo da Ninfa”: “Aérea, mas essencialmente encarnada, esquiva, mas essencialmente tátil” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 220), reunindo
[…] duas modalidades antitéticas do figurável: o ar e a carne, o tecido volátil e a textura orgânica. De um lado, o drapeado lança-se sozinho, criando suas próprias morfologias em volutas; de outro, ele revela a própria intimidade – a intimidade movente/comovente – da massa corporal. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 220)
Em sua próxima aparição, a Ninfa seniana tem afetada mesmo essa “massa corporal”. Torna-se inteira fluida, chamejante.
Figura 7. Fernando Azevedo. Ofélia. Coleção Jorge de Mécia de Sena. Capa da tradução americana de Metamorfoses.
Ofélia tem uma longa história, de muitas metamorfoses, na cultura ocidental. É a amada de Hamlet, mas tem antecedentes muito mais antigos, de que Shakespeare se apropriou para a criação de sua heroína trágica. Essa inspiração em diferentes fontes, mescladas pelo dramaturgo inglês numa figura compósita, poderia explicar suas instigantes contradições, visíveis não apenas no trânsito da personagem pelas artes plásticas e pela literatura, que faz de Ofélia uma espécie de figuração das tensões dos tempos que atravessa, mas já na peça de Shakespeare. Ela é casta e lasciva, pura e decaída, ingênua e perversa, noiva e cortesã, amante abandonada e irresistível sedutora, fragilidade e decisão, razão e loucura, mulher-anjo e belle dame sans merci, santa e sereia. Mutável e capaz de acolher antíteses, marcada pela fluidez das águas de seu destino de afogada, que se faz um traço seu, incorporado na cabeleira ondeante e num manto que ondula na sua iconografia (o drapeado, ainda uma vez), não será surpresa descobrir que há ninfas na sua origem. James Vest (1989) retraça a genealogia da personagem até tão cedo como o século X, encontrando, num poema islandês, o drama de um príncipe vingativo misteriosamente associado a ninfas do mar.
A Ofélia de Sena (1988, p. 119-120), inspirada numa tela que o poeta recebeu como presente do pintor, Fernando Azevedo, é uma Ninfa surrealista que se eleva, alada, das águas, como uma chama sanguínea, com asa de borboleta; e que a elas retorna, escorrendo, diluindo-se, em ciclo interminável, uma prisão de movimento. Na tela, essa corporeidade fluida contrasta com a solidez pétrea do castelo ao fundo. Mas parece não haver pedra que resista em Metamorfoses. O poema de Sena faz a muralha de Elsinore tremular em seu reflexo nas águas, se arrepiar ao vento que detém da praia; faz rochedos escoarem como um “manto real / pendendo aereamente de ombros invisíveis”. Movimento transferido, confirmado pela écfrase, em metamorfoses da paisagem que repercutem a mais dramática metamorfose da cena (consumando a simbiose de exterior e interior, atmosfera e intimidade, vento e desejo): o desvirginar de Ofélia, “uma ansiedade colorida e crua / tão levemente insinuada a toques / de penetrada posse virginal.”. Ao final do poema, essa Ninfa visualmente espectral se recolhe, como se Afrodite se recolhesse nas águas: “Sanguineamente se dilui perdida / a borboleta ao longo de águas mansas.”. Bastará certamente um sopro de vento para que retorne, neste cenário tão próprio de fantasmas, já bem sabia Hamlet.
“Per monstra ad Astra”
O último poema de Metamorfoses, se considerada a data de composição, é “O Dançarino de Brunei” (1988, p. 131), escrito em 1974 e incluído no livro na edição de 1978 de Poesia II. Esse é também o único poema do conjunto que dialoga efetivamente com uma fotografia enquanto objeto estético, e não apenas com a obra plástica nela reproduzida. Essa percepção se torna tanto mais significativa por se tratar de uma fotografia de dança: um paradoxo, já que a operação fotográfica fundamental é imobilizar o movimento, interromper o fluxo do tempo (KRAUSS, 2002). Interromper, suspender, mas não abolir; antes, concentrá-lo em um momento decisivo, impregnado de tempo. É neste instante aberto na temporalidade que se permite ver (e o poema se permite ler) um passo de dança cristalizado, “[…] carregado, ao mesmo tempo, de memória e de energia dinâmica […]” (AGAMBEN, 2012, p. 25):
de um corpo que se ondula duro e frágil
como de amor a força requebrada,
a mesma dança nesta imagem quieta
é suspendida num momento. […]
(SENA, 1988, p. 131)
Figura 8. Dean Conger
Em suas reflexões sobre a Ninfa, Agamben (2012, p. 23) recorda um tratado do século XV, De la arte di ballare et danzare, composto por Domenico da Piacenza, “o mais famoso coreógrafo do seu tempo” e mestre de dança nas cortes de Milão e Ferrara. Aparecem ali listados o que seriam os seis elementos fundamentais da arte da dança. O último a ser exposto, e considerado central, é a fantasmata:
Digo a ti, que quer aprender o ofício, é necessário dançar por fantasmata, e nota que fantasmata é uma presteza corporal, que é movida com o entendimento da medida […] parando de vez em quando como se tivesse visto a cabeça da medusa, como diz o poeta, isto é, uma vez feito o movimento, sê todo pedra naquele instante, e no instante seguinte cria asas. (PIACENZA apud AGAMBEN, 2012, p. 23-24, grifo nosso).
O fantasma para Piacenza, esclarece Agamben (2012), é uma pausa tensa, um vértice de tempo, comportando virtualmente toda a memória de uma série coreográfica. Séculos mais tarde, Jorge de Sena parece ter redescoberto esse princípio graças à imagem técnica.
No grafismo do seu corpo, que trança energicamente as linhas da geometria abstrata, estéril, que se vê no tapete sob seus pés (de novo os pés da ninfa de Ghirlandaio), nas tábuas do assoalho, no gradeado e na parede ripada às suas costas, o dançarino fotografado é vida intensificada, é toda uma coreografia. O poema a declina e encena por versos que dançam, reconstituindo movimentos, poses pela sequência de enumeração das partes d’ “este corpo se dançando em si”. Se na fotografia ele assume uma qualidade pétrea, de estátua, o poema o recorda corpo orgânico, fluido. E desvela ainda outra duração, muito mais extensa – e histórica – que se inscreve, superposta e alegorizada, no seu corpo:
É de Bornéu e um povo primitivo
esta figura. Uma elegância tal
são séculos de humana perfeição
que gente gera num saber da vida.
(SENA, 1988, p. 131)
O dançarino de Brunei é uma fórmula – de dança e de história humana. Mais uma encarnação de ninfa, que, de certo modo, incide sobre todas as suas outras metamorfoses no livro de Sena. Não será a série de poemas uma coreografia dançada por fantasmata? Uma história repensada, reordenada em atravessamentos e encontros anacrônicos, dada a ver em pausas tensas, momentos significativos – a que o homem, o artista, dá sentido? Convém tornar ao “Post-fácio”, onde escreve Sena:
E acontece que o homem – se pode viver e criar abstrações – é pelo rosto e pelos seus gestos, e pelo que ele, com o olhar transfigura, que podemos, interrogativamente, incertamente, inquietamente, angustiadamente, conhecer-lhe a vida. E, se não fora a poesia olhando a História, nenhuma vida em verdade conheceríamos, nem a nossa própria. Não adianta muito, concordarei, este saber, e é mais do que prudente recusá-lo. Mas são precisamente as “metamorfoses” o que nos permite olhar a cabeça de Medusa. (SENA, 1988, p. 157).
A presença do “Dançarino de Brunei” nesse livro-museu que tem um acervo concentrado na arte ocidental pode gerar, talvez, certa estranheza. E, no entanto, pensando numa aproximação entre Sena e Warburg, a introdução dessa figura “primitiva” (um indígena da tribo Pumana – SENA, 1988, p. 221) em Metamorfoses toma o sentido de uma coincidência feliz. Não desviando-se, mas, ao contrário, buscando aprofundar sua pesquisa sobre as sobrevivências (Nachleben) e sobre as fórmulas de pathos (Pathosformeln), Warburg voltou-se de Florença para o Novo México, da arte clássica e renascentista para a mitologia dos índios Hopi, da dança das Ninfas para o ritual da serpente. Sena parece fazer excursão equivalente.
O ritual da serpente, cuja eficácia esperada era trazer a chuva, consistia em lançar serpentes vivas sobre representações suas desenhadas no chão, imbuindo os animais de seu valor simbólico. Depois, as serpentes, ainda vivas, eram transportadas de volta à natureza, enroladas nos corpos dos indígenas. Segundo Warburg (2015), tratava-se de incorporar o monstro e absorver sua força. Igualmente o fascinavam as serpentes da cultura clássica: as que envolvem os corpos de Laocoonte e seus filhos e as que grassam pela cabeça da Medusa. Didi-Huberman observa que Warburg (2013, p. 306-307) “sentia-se ‘paralisado’ diante dessa figura que o obsedava, literalmente”.
Será importante observar que nem Sena, nem Warburg, nem Agamben pretendem escapar à Medusa – imagem que compartilham. Para Agamben (2012, p. 23-24) (citando Domenico da Piacenza), é preciso mesmo deixar-se momentaneamente petrificar, numa pausa cheia de tensão, “como se tivesse visto a cabeça da Medusa”. Para Sena (1988, p. 157), as metamorfoses são a um tempo escudo e via de acesso a ela: “são precisamente as ‘metamorfoses’ o que nos permite olhar a cabeça de medusa”; para Warburg, havia que “passar pelos poderes do monstro” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 255), lição que ele exprimia pelo adágio “Per monstra ad Astra”: através do monstro chegar aos astros.
E os monstros estavam por toda parte: em emaranhados de cobras, certamente, mas também na própria Ninfa (não serpenteiam, seus cabelos?): imagem de beleza, de cultura, sim, que é, no entanto, retorno de um fantasma; forma sintomal, que porta em si o recalcado:
A Ninfa dança, com certeza. Mas gira em torno de um buraco negro. Ela nos fascina como o atrativo visual de um processo de afloramento dos tempos sepultados. Eles ficam latentes, correm aqui e ali como os veios de um fóssil, entre cada prega do drapeado da Ninfa, entre cada mecha de seus cabelos ao vento. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 307, grifo do autor).
“[…] por mais bela que seja / cada coisa tem um monstro em si suspenso”, escreve Sophia de Mello Breyner Andresen (2011, p. 48) – contemporânea, amiga e correspondente de Sena –, formulando poeticamente o que Warburg reconhecia como a “dialética do monstro”:
[…] a fundamental e “inquietante dualidade” de todos os fatos culturais: a lógica que eles fazem surgir também deixa transbordar o caos que eles combatem; a beleza que inventam também deixa despontar o horror que recalcam; a liberdade que promovem deixa vivas as coerções pulsionais que tentam romper. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 255).
Jorge de Sena parece ter consciência dessa dialética. As (suas) “metamorfoses” permitem ver a cabeça da Medusa porque de alguma forma e em certa medida a contêm: verbo que deve ser entendido aqui em sentidos vários: tolher, amansar, mas também: abrigar. Deméter é um “monstro delicado”; Artemidoro tem um “olhar envidraçado”, como o da Medusa, que, no entanto, em metamorfose, já não petrifica, mas fissura corpos empedrados, fazendo ressuscitar “o que de deuses palpita […] em nós”. Corpos como o do dançarino de Brunei, que sabe “dançar por fantasmata”, parar “como se tivesse visto a cabeça da medusa”, dar a ver o tempo, a história, mas depois seguir dançando: um dos “humanos deuses / que já tão poucos sobrevivem límpidos”.
Per monstra ad Astra: aos deuses, aos astros, ao conhecimento, à superação da morte, à eternidade. A travessia de Metamorfoses – “poemas [líricos] integrados numa estrutura épica” (SENA, 1988, p. 159) – termina com o Sputnik, o primeiro objeto que o homem levou ao espaço sideral, e versos como estes:
O Sol, a Via Láctea, as Nebulosas,
teremos e veremos, até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
E quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em espaço caiba a Eternidade.
(SENA, 1988, p. 137; 138)
E termina de novo, em “Post-Metamorfose” com deuses que se levantam de um torpor, “ao vento que lhes faz vibrar a pele” (SENA, 1988, p. 141), e dançam e amam; termina com uma cariátide ondulada de desejo, que é “vida congelada, / que um toque liquefaz” e sustenta “o retornar do tempo” (SENA, 1988, p. 142). Termina, enfim, ou recomeça, com uma invocação a Afrodite Anadiómena: a “da superfície e do fundo, do fluxo e do refluxo, do avanço e do recuo, do aparecimento e do desaparecimento”, diz Didi-Huberman (1998, p. 33). Com a sua invocação numa língua nova, que guarda, porém, os restos de antigas palavras, fragmentadas e reordenadas, para efeitos de estranheza e reconhecimento. A lembrar o paradigma linguístico, uma das vias pelas quais Warburg explicou, por analogia, a sobrevivência (Nachleben): “[…] embora a identidade formal do vocábulo de base tenha de fato desaparecido, a introdução do elemento estranho só faz intensificar a significação primitiva […]”. (WARBURG, 1929, p. 171 apud DIDI-HUBERMAN, p. 216)[6].
Uma língua transformada, deslocada em poesia, faz surgir a ninfa em insuspeitadas metamorfoses, faz o tempo atravessar-se em cruzamentos: encontros de exilados nos espaços da arte – os museus, os livros. Também no mais feliz desses encontros as ninfas estarão: em Creta, nas sombras, observando um poeta que toma em paz o seu café, com seu monstro favorito.
Referências
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AGAMBEN, Giorgio; FERRANDO, Monica. La ragazza indecibile: mito e mistero di Kore. Milão: Electa, 2010.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra poética. Organização Carlos Mendes de Sousa. 2. ed. Lisboa: Caminho, 2011.
BARBOSA, Marlon Augusto. Uma arqueologia da instabilidade. 2021. 203f. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021. p. 145-170.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução José Carlos Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, (Obras escolhidas, volume 3).
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SALLES, Luciana dos Santos. De andróginos e leprosos: as metamorfoses da mitologia e da história na poesia de Jorge de Sena. Revista Metamorfoses, n. 1, v. 9, p. 77-85, 2008. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/
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VEST, James. The French face of Ophelia from Belleforest to Baudelaire. Boston: University Press of America, 1989.
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WARBURG, Aby; JOLLES, André. A Ninfa: uma troca de cartas entre André Jolles e Aby Warburg. In: WARBURG, Aby. A presença do antigo: escritos inéditos. Organização, introdução e tradução Cássio Fernandes. Campinas: Editora da Unicamp, 2018. p. 65-77. (v. 1).
NOTAS
* Professora Associada de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
E-mail: monicafagundes@letras.ufrj.br /Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-0787-2402
1 Por écfrase nocional (notional ekphrasis) entende-se a descrição de uma obra visual inexistente, desconhecida ou fictícia, que só existe, portanto, no discurso, como é o caso dos relevos descritos por Poliziano, assim como o daquela que é considerada a primeira écfrase da literatura ocidental: a descrição do escudo de Aquiles na Ilíada. A esse respeito, ver AVELAR, Mário. Ekphrasis. O poeta no atelier do artista. Lisboa: Cosmos, 2006.
2 DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962.
3 WARBURG, Aby. Mnemosyne. Grundbegriffe, II. Londres: Warburg Institute Archive, III, 102.4.
4 A respeito da relação entre Jorge de Sena e André Malraux, e especificamente suas concepções de metamorfose e arte, consultar SILVA, Edson Rosa da. A metamorfose da arte: do quadro ao poema. Revista Metamorfoses, n. 10, p.99-107, 2010.
5 Trechos originais de Agamben (2010), traduzidos por nós: “tende ad annullare e mettere in questione la distinzione fra le due figure essenziali della femminilità: la donna (la madre) e la fanciulla (la vergine)” (p. 8) / “la vita in quanto non si lascia “dire”, cioè definire” (p.12) / “La ‘ragazza indicibile’ è questa soglia. Così come confonde e indetermina la cesura fra la donna e la bambina, la vergine e la madre, così anche quella fra l’animale e l’umano e fra questo e il divino.” (p. 28) / “che non c’è alcun mistero, soltanto una ragazza indicibile.” (p. 32) / “Vivere la vita come un’iniziazione.” (p. 32).
6 WARBURG, Aby. Einleitung zum Mnemosyne-Atlas, org. I Barta-Fliedl, Die Beredsamkeit des Leibes. Zur Körpersprache in der Kunst. Salzburgo-Viena: Residenz Verlag, 1992. p. 171-173.
FONTE: FAGUNDES, M. G. Ninfa seniana: uma travessia por Metamorfoses. Texto poético, ISSN: 1808-5385, v.18, n.35, p.46-76, jan./abr. 2022.