Jorge de Sena: A dor é evidente

  • Categoria do post:Pesquisa / Verso

A editora Assírio & Alvim iniciou, em 2021, a publicação da obra poética de Jorge de Sena. Em 2022, as obras lançadas foram Pedra filosofal e As evidências. É este último que António Carlos Cortez resenha no mais recente JL, o Jornal de Letras, Artes e Ideias. Chamado pelo próprio poeta de “poema em 21 sonetos”, As evidências é uma obra fulcral na produção escrita de Sena e este comentário de António Cortez é mais do que necessário.

António Carlos Cortez

No breve, mas excelente prefácio de Silvina Rodrigues Lopes, e a respeito desta reedição de As Evidências, de Jorge de Sena, fala-se do seguinte: do problema que a realidade constitui para Sena nestes vinte e um sonetos; uma realidade “vista e sentida como evidência de uma representação que serve de instrumento de suplício e impedimento da singularidade de uma vida”, da poesia como “obstinação do pensamento”. Isto é, do que, pensando sobre o real, é nele afeto e afeção, que o mesmo é dizer de uma poesia que se lança sobre o desconcerto do mundo numa tentativa dupla de compreender o absurdo: poesia é em Sena chamamento das coisas, escreve a ensaísta, e “confiança em que sentir e pensar se fazem indiscerníveis”. Nesse livro primeiramente publicado na coleção Cancioneiro Geral em 1955 o “desconcerto humanamente aberto” nada tem que ver com uma situação política que possamos facilmente identificar. O desconcerto seniano é construção através da qual pensar e sentir é uma expressão desejante. Sena, fiel a um poundiano make it new, escreve “um poema em 21 sonetos”, tecendo neles itinerário que é espelho da vida e figuralidade de uma escrita: datas, diacronia, referências: as duas epígrafes de As Evidências: em Daniel G. Hoffman o eco da bomba que a natureza ignorou, mas que a poesia, como arma, fará lembrar; de Emerson, a referência aos deuses, a irrealidade prodigiosa, a invenção nossa de um real explicável.

Sonetos cuja organização, ao contrário dos que lemos em Coroa da Terra, são o reflexo mesmo da mudança não só enquanto lugar camoniano e lugar da modernidade literária, mas espelho mesmo daquilo que, dessa Modernidade, vindo de Baudelaire a Rilke, passando por Rimbaud e Paul Éluard (poetas que Silvina identifica, mas a que poderíamos juntar Antero e Nerval, já que Sena reelabora uma dicção que para estes poetas igualmente reenvia em subtis imagens e visão de mundo) é a afirmação de um corpo verbal constituído por “objetos multi-significativos” (a expressão é do próprio Sena no prefácio que para este seu livro escreveu), funcionando a textualidade destes objetos como evidência da mudança poemática da forma “soneto”.

Com efeito, As Evidências, que no prefácio a Poesia I, serão entendidas como parte do próprio testemunho poético – expor as evidências dos esquemas feitos, das ideias previamente concebidas, de tudo quanto, enfim, ofende e impede a verdade nas relações humanas e a “fiel dedicação à honra de estar vivo” – são um labor verbal nuclear no caminho do poeta que Sena foi. Há um pesar da linguagem que é diálogo com a Tradição e, numa fase em que Pessoa e o Modernismo, bem como outros ‘ismos’ podem rever-se (do presencismo ao neo-realismo e numa reequação do surrealismo a que Sena não aderiu por ter sido ele, no fundo, quem primeiramente o cultiva e, por isso, isoladamente o faz sem favores de escola) à luz da frieza analítica, estes poemas mostram o poliédrico fazer-se da poesia.

Daí, a desobediência relativamente a quantos queriam da poesia a sua inserção catalogável em regimes de escrita: o classicismo da sintaxe é ainda uma forma de revolução no meio dos “ismos” da moda: “Desta vergonha de existir ouvindo/ amordaçado, as vãs palavras belas/ por repetidas quanto mais traindo/ tornadas vácuas da beleza delas;// desta vergonha de viver mentindo/ só porque escuto o que dizeis com elas;/ desta vergonha de assistir medindo/ por elas as injúrias por trás delas// ao mesmo sangue com que foram feitas/ ao suor e ao sémen por que são eleitas/ e à simples morte de chegar-se ao fim;// desta vergonha inominável grito/ a própria vida com que às coisas fito:/ calai-vos, ímpios, que jurais por mim!” (p.30).

PÔR EM EVIDÊNCIA, ASSIM, A ILUSÃO de haver harmonia no real, mesmo se sentir e pensar são indissociáveis, pois que pensar o mundo é dizê-lo com palavras que sempre falham, incompletas na sua vontade de renomear o mundo e refazê-lo nesse gesto. Expor as “evidências da fatalidade”, como se refere no prefácio: a fatalidade, desde logo, do soneto enquanto espartilho indestrutível. Mudar a vida, desiderato de Rimbaud – o primeiro poeta sobre o qual Sena escreve, em 1942 – é projeto transferido para esse mundo verbal em que a própria mudança se faz “tensão” linguística, similar, afinal, à vida que pela linguagem se exprime.

Tocar a irrealidade das coisas, esse outro horizonte deste livro maior de Jorge de Sena: chame-se tempo, ou cultura, deuses ou o próprio Deus, eis – em boa hora – a reedição de mais um livro fundacional não só para a obra de Sena, que a partir deste livro atingirá alturas inigualáveis (Metamorfoses, 1960, Arte de Música e Peregrinatio ad Loca Infecta, de finais da década), mas da própria poesia portuguesa dos anos de 1950 até hoje.

Estes sonetos alteraram o modo como lemos retrospetivamente a tradição (Sá de Miranda, Camões…), mas abrem para uma outra evidência historicamente importante: Sena, no erotismo (soneto XIX) e na afirmação de um paganismo que é resposta sua àquele totalitarismo imposto por Hegel à História (di-lo Silvina Rodrigues Lopes), reconduz-nos a uma força elocutória, a um ethos que, dizendo dos deuses como formas humanas pensadas, mais do que os deuses, regressa.

Em rigor, lendo hoje este livro, outra evidência há em As Evidências: a realização de uma potência poética – a dor é verdadeira – que, poetas depois de Sena, com ele, reaprenderam, libertando-se de vez da sombra pessoana: de João Rui de Sousa a Fiama, de Gastão Cruz a Vasco Graça Moura, de António Franco Alexandre a outras vozes que repetiram, e repetem, com Sena, o enigma de existir na evidência de se estar vivo, este é um dos livros capitais da nossa poesia de sempre.

O livro está disponível no site da editora, em formato físico e e-book. Também é possível visualizar uma prévia da versão digital do livro no site.

Se você quiser saber mais sobre as publicações da Assírio & Alvim, comentamos as reedições da poesia seniana neste post.

FONTE: CORTEZ, António Carlos. “Jorge de Sena: a dor é evidente”. In: Jornal de Letras, Artes e Ideias. Ano XLII, nº 1363. Dez./Jan. 2023. p.22-23