Neste extenso e profundo ensaio, Francisco Cota Fagundes investiga a presença da temática da infância na poesia de Jorge de Sena, verificando e analisando as diversas situações em que as crianças aparecem nos versos senianos. A partir daí, o autor estabelece relações com outros pontos da produção escrita do poeta, assim como traça influências, diálogos e desdobramentos da referida temática.
Francisco Cota Fagundes
University of Massachussetts – Amherst
É no poema de Carlos Drummond de Andrade, “Menino chorando na Noite”, poema publicado, em 1940, no livro Sentimento do Mundo,[26] que temos o mais provável intertexto para o topos choro de criança. Já me referi, em outros estudos meus, a este poema cujo último verso é utilizado como epígrafe ao conto seniano “Choro de Criança”, sendo a outra epígrafe a já referida passagem do discurso de William Blake.[27] Eis o poema de Drummond:
Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um menino chora
O chôro atrás da parede, a luz atrás da vidraça
perdem-se na sombra dos passos abafados, das vozes extenuadas.
E no entanto se ouve até o rumor da gôta de remédio caindo na colher.
Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua,
longe um menino chora, em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.
E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça
e vejo o fio oleoso que escorre pelo queixo do menino,
escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas).
E não há ninguém mais no mundo a não ser êsse menino chorando.
Seria injusto restringir o impacto deste poema, quer no conto seniano “Choro de Criança”, quer nos poemas do Autor em que o topos se encontra, apenas ao choro, pois vários elementos constitutivos deste texto de Drummond têm a sua contrapartida nos poemas de Jorge de Sena aqui em foco, alguns deles discutidos acima: a paisagem urbana nocturna; o silêncio (“morta noite sem ruído”) que torna mais audível o choro do menino; a noção carceral que se depreende dos compartimentos do poema (“atrás da parede”, “atrás da rua”); a ideia de que, apesar da noção nítida de encarceramento desse menino, essa prisão está associada a um “longe”, localizada “em outro mundo”. Como ser privilegiado que é, o sujeito poético é capaz de ouvir essa voz, até ao ponto de não haver mais ninguém no mundo. Mas ouvi-la-á apenas porque essa voz é audível na consciência do poeta-testemunha, no seu dealbar pela cidade a horas mortas? Ou ouvi-la-á também porque ela lhe vem do interior, porque é a sua própria voz do longe, uma voz do mundo da própria infância/poesia?
É, sem dúvida, um acto criticamente demasiado redutivo – para não dizer arbitrário –, circunscrever os poemas senianos sobre a infância pessoal à esfera pessoal e os poemas sobre a criança testemunhada à esfera do Outro. Para além da crítica social e desconstrução de retóricas oficiais a que estes poemas, quanto a mim, inegavelmente almejam e realizam, alguns deles também podem ser lidos num contexto mais subjectivo, por exemplo, no contexto dum exílio interior e psicológico – constantes essas que, entre outros tipos de exílio, Paula Gândara tem vindo e está a estudar na poesia de Jorge de Sena. É Paul Ilie quem cunhou o sintagma “exílio interior” (inner exile), para se referir sobretudo aos escritores espanhóis que durante a Guerra Civil e nas próximas décadas permaneceram no país, ao contrário dos que optaram pelo êxodo. Esses escritores, apesar de permanecerem no país, viviam alienados das estruturas dominantes. Paul Ilie chama a atenção para a personalidade fragmentada do exilado, chamando-lhe “[an] individual split into several personages inhabiting time dimensions which converge upon an empty ‘now’“.[28] Essa noção de exílio interior está implícita em poemas como “Circunstancial”, onde não seria, aliás, descabida a associação entre as crianças que choram e o lamento dos próprios poetas dignos dessas crianças. Como já vimos, a associação entre poeta e criança é não só extremamente viável, mas é sugerida pelo próprio Poeta, no poema “Glória”, ao juntar, em versos quase contíguos ou mesmo contíguos, referências ao sofrimento das crianças e dos poetas:
todas estas crianças que não chegaram a desdobrar-se em carne viva
e de quem, contudo, fizeram carne viva logo morta,
todos estes poetas furados por balas
e todos os outros poetas abandonados pelos que
nem coragem tiveram de matar um homem,
(Poesia-I, 124; itálico meu)
Como será óbvio, o último dos versos citados do poema “Glória” é uma alusão a um discurso público de William Blake, uma passagem que Jorge de Sena cita como uma das epígrafes ao conto “Choro de Criança”, a que já antes aludi. A passagem é a seguinte: “It is in their Power to hinder Instruction but not to Instruct, just as it is in their Power to Murder a Man but not to make a Man.” Outro poema em que existe uma clara associação entre o sujeito poético e “uma criança dentro de casa chorando” é o já várias vezes referido “Requiem”.
É Fernando Pessoa, no entanto, quem, através da pena de Bernardo Soares, nos dá uma das mais pungentes descrições de exílio social e psicológico que conheço. E conquanto o célebre semi-heterónimo pessoano também nos diga, em outra passagem (vol. I, 84), que a infância é apenas um sonho que sonhou, ele vive esse sonho como uma realidade psíquica. E é como tal que este trecho do Livro do Desassossego nos toca:
Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas porque deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, porque deitaram fora o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível do meu coração.[29]
Retenhamos as imagens duma criança a chorar nas ruas e duma criança exilada dos outros. Sem querer forçar nenhum paralelo entre a infância pessoal de Fernando Pessoa (lembremo-nos que este saudosista da infância pessoal nos chegou a dizer, extra-poeticamente, que não tinha, na verdade, saudades nenhumas da infância!) e a de Jorge de Sena, mas tão-somente chamar a atenção para a representação da infância a que chamei pessoal na poesia seniana e para a representação da criança testemunhada nos poemas sociais em foco, esta passagem de Bernardo Soares sugere-me a seguinte possibilidade: a de que haja uma relação muito mais íntima do que à primeira vista poderá parecer, e até duma certa projecção, da criança solitária dos poemas pessoais, por exemplo daquela configurada no poema “Deve ser por isso” (Post-Scriptum II, vol. 1) – à qual poderíamos acrescentar a da criança solitária e tiranizada do conto “Homenagem ao Papagaio Verde”, que Jorge de Sena identifica como sendo autobiográfica, e as crianças destes poemas sociais que, como se lê no soneto “Circunstancial”, choram “Nas dobras melancólicas da Terra, / na beira dos passeios mais restritos, / no côncavo dos lagos infinitos”. Claro que, poder-se-ia dizer, seria eticamente repreensível identificar totalmente a representação daquilo a que chamei a infância/criança pessoal na poesia seniana e a criança testemunhada nos poemas ostensivamente sociais que estamos a discutir. O próprio Poeta, no poema “Ode ao Destino”, de Pedra Filosofal, refere-se a si mesmo como “menino burguês” (Poesia-I, 175). As crianças que o Poeta foca nos poemas sociais em epígrafe estão longe de serem burguesas. O que irmana uns e outros, independentemente das classes sociais a que pertencem – e daí certa comunalidade de experiência social e psicológica entre eles –, é que o mundo em que viveram, mundo esse que os adultos confeccionaram, para seu mal e das crianças, não era um mundo consentâneo com os seus direitos humanos e muito menos com a felicidade a que tinham/têm jus.
Para dar apenas dois exemplos das possíveis dificuldades que podem resultar duma categorização desta massa de poemas – na qual, como indiquei anteriormente, me deixei embarcar em parte por facilidade de exposição – gostaria de me referir a apenas dois poemas, classificados como “testemunhais” e como “contendo referências”, isto é, como não sendo poemas sobre a infância pessoal ou de temática dominante, que ilustram muito bem a interpenetração, chamemos-lhe assim, da modalidade pessoal e testemunhal. Os poemas são “Andante”, de Perseguição, e “Regresso”, de Post-Scriptum (Poesia-I). Ambos são poemas pessoais, isto é, poemas em que o eu narrador e o eu narrado coincidem, mas em que as crianças aparecem referidas na terceira pessoa. Em ambos os poemas, porém, essa criança é passível de aproximação a temas que vimos – e repetidamente tornaríamos a ver, se este fosse um trabalho sobre o exílio na poesia de Jorge de Sena –, tratados em poemas inegavelmente denomináveis pessoais.
O poema “Andante” era, ao que parece, um dos predilectos de Jorge de Sena. O Poeta não só o inclui na antologia que organizou da sua própria poesia, Trinta Anos de Poesia, como é o primeiro poema com que se faz representar na antologia da poesia portuguesa que organizou, Líricas Portuguesas. “Andante” é, de facto, um poema que toca numa série de elementos fulcrais da temática – e da poética – senianas. O seu título é claramente peripatético e trata-se, na verdade, de um walk-poem em que um dos temas primaciais, o primeiro e/anunciado é o do destino. Trata-se, portanto, de um poema em parte sobre o destino do poeta – tema muito versado por Jorge de Sena, como é sabido; mas, curiosamente, neste caso do destino visto como caminhada, ou no contexto de uma caminhada pelas ruas. E como acontecerá em muitos dos seus poemas-errância – quer errância espacial, quer errância espacial e mental, como aqui –, surge a criança, que aliás é referida em três das quatro secções do poema separadas por numerais romanos, divisão essa que é típica de outros poemas-errância senianos, como vimos anteriormente. O aparecimento da criança, neste caso, prende-se ao tema da passagem do tempo, da passagem da infância para a adolescência – “a sabedoria dos gestos / com que as crianças começam a sentir-se reais.” A segunda secção do poema, dividida em duas estrofes de, respectivamente 3 e 2 versos, desenvolve a meditação iniciada, na primeira secção, sobre o destino e logo sobre a passagem do tempo:
Ternamente,
as crianças vêem-se iluminadas dos dois lados,
e o que era liso acabou.
Todos nós vimos
o enrugar-se o céu para assentar na terra.
(Poesia-I, 63)
Estamos na órbita temática do poema sobre a infância pessoal, “Infância”, de Perseguição, em que o símbolo da luz (“Noite de infância, luminosa e pálida”) é também central para nos comunicar a perda-em-progresso da infância, que fora luminosa e que agora está a empalidecer, e o eclodir da adolescência: crianças, pois, que estão na noite da infância, imagisticamente representada por “céu”, um céu que se enruga, preciosa prosopopeia para evocar o paraíso da primeira fase da vida e a sua eclosão rápida, prenunciadora já das rugas da velhice. A adolescência, essa, é o “assentar na terra”, sugerindo-se assim uma queda arquetípica, como a do Lúcifer seniano ao Paraíso (“Paraíso Perdido”, in Genesis). Se olharmos retrospectivamente, deparamo-nos assim, neste lamento pela perda da infância, com o poema “Infância”, escrito dois anos antes e incluído no mesmo livro Perseguição; e ouvimos, escusado será lembrar, um eco dos spots of time de William Wordsworth. Se olharmos prospectivamente, porém, esse assentar na terra não deixa de positivar-se, pois foi humanamente necessário que o liso acabasse – “liso” no seu sentido de pele humana e no sentido de paradisíaca inconsciência do tempo –, para que um poema como “Tu és a Terra”, de Conheço o Sal… – “Macia, suave, terna, e dura o quanto baste / a que teus braços como tuas pernas / tenham de amor a força que me abraça” (Poesia-III, 30) – pudesse um dia ser sentido e escrito, por um adulto em cuja obra perpassa constantemente o amor humano em muitas das suas ramificações, incluindo, talvez acima de todas as outras, a erótica. Nos últimos três versos do poema, fazem-se três afirmações, uma em cada verso, que vemos tematizadas através dos poemas sobre a infância pessoal e a criança testemunhada:
As crianças nascem com uma coragem que perdem.
As mães provocam-nas em si com uma coragem de carne
E os homens levam-nas sem as conhecer.
(Poesia-I, 64)
Leio a primeira afirmação como essa “coragem” que vem, precisamente – e de que vimos exemplos no poema “Deve ser por isso”, nas actividades do menino que tinha de ser “ambos os partidos em guerra” e “o comandande do barco e a própria tempestade” – da invencibilidade irmã da inocência.
Se “Andante” é, em parte, um poema dum exilado da infância, “O Regresso” (Post-Scriptum, in Poesia-I) é, em parte, o dum retornado dum mundo reminiscente de paisagens e experiências exílicas impossíveis de jamais serem rasuradas da mente. “O Regresso” é configurado como uma visão de sonho – de que o poema sobre a infância pessoal, “Lamentação” (Coroa da Terra), é outro exemplo. Embora não haja nota explicativa ao poema “Regresso” em que me possa apoiar para fazer esta afirmação, creio que este poema se enquadra perfeitamente na órbita de textos – os dois continhos de Genesis, por exemplo, e, segundo Mécia de Sena, o poema “Deve ser por isso” –, no grupo de textos que resultaram dessa fatal viagem de cadete da Marinha no navio-escola Sagres. Nem falta, no poema, uma referência a “um mar tão calmo”, uma das poucas imagens positivas num poema que é dos mais distópicos que Jorge de Sena jamais escreveu. O poema começa com a dramática chegada do retornado:
Como este fósforo que acendo para subir as escadas
da casa onde nasci, cujos degraus não conheço
hoje, nem conhecerei nunca, embora às vezes,
o luar, um automóvel que passa os adivinhem,
é quanta assim verdade, quanta fantasia –
(Poesia-I, 199)
A ausência de luz no primeiro verso é já prefiguradora da distopia que é o poema. O subir das escadas, prefigurador do começo do conto “Super Flumina Babylonis”, a seniana história desse outro retornado (Camões) dum exílio externo a um exílio interno enformado pela alienação. Em “O Regresso”, a alienação do mundo circundante aplica-se ao presente – “cujos degraus não conheço” –, mas também em relação ao futuro, pois trata-se dum poema de desesperança total: “nem conhecerei nunca”. Pondo de parte umas quantas referências positivas, incluindo à criança, nos cinco versos transactos (referências a que dentro em breve voltarei), vejamos que o retornado, num só verso, nos dá uma vaga mas metaforicamente poderosa explicação para o seu sentimento de alienação: “que nada consegue esconder a escuridão que vi” (sublinhado meu) Assim, a alienação que víramos em relação ao presente e ao futuro, aplica-se também ao passado, fazendo com que a condição existencial deste retornado seja comparável à do exilado descrito por Paul Ilie, acima citado: “[an] individual split into several personages inhabiting time dimensions which converge upon an empty ‘now’“. Esse presente vazio, como nos indica o sujeito poético, nem poderia ser aliviado por imagens derivadas dum impulso utópico, pois
pode o sol desdobrar os campos, as crianças rirem,
as mães esperarem […]
(Poesia-I, 199)
que ele não poderá jamais esquecer a “escuridão” que viu. Aliás, nem a presença do amor na vida do retornado – sendo o amor um dos principais impulsos utópicos na poesia seniana –, será capaz de apagar essa “escuridão” que, no último dos versos da passagem seguinte o sujeito poético torna a metaforizar como “treva”:
A tua mão passará como quiseres por mim,
deixando um rasto de presença, da realidade,
serei feliz ou não, terei a certeza de que o poderia ser,
mas nunca mais, nunca mais a treva acabará.
(Poesia-I, 200)
É na penúltima e mais longa estrofe deste poema que o leitor aprende que a história do retornado narrada até agora foi uma visão de sonho:
De repente, acordei, estava dormindo,
vim de longe, subia as escadas, não trazia bagagem
senão esta visão […]
(Poesia-I, 200)
Creio este poema fundamental no corpus poético seniano, por várias razões. Em primeiro lugar pelo que conterá de transmutação de experiências pessoais (se não é uma evocação das experiências relacionadas com a demissão da Marinha, poderia ser); pelo que implica em termos de prenúncio para a futura temática da poesia seniana, relevando-se aqui a vivência dum exílio interno e psicológico e metafísico muito antes do exílio externo, tanto assim que este poema escrito em 30/8/45 tem uma relação intertextual muito acentuada com o grupo de poemas de retornado, incluídos no volume Exorcismos, poemas esses baseados num retorno dum exílio externo, que eu já estudei em parte no artigo precisamente dedicado ao exílio na poesia de Jorge de Sena.[30] Este poema é ainda importante, no contexto do presente trabalho, pelas referências que faz à criança, seguindo, como lhe chamei, um impulso utópico. Como vimos acima, o sujeito poético afirma que nem a presença do amor é capaz de erradicar o pesadelo de “escuridão”, de “treva” experimentada nesse tempo/lugar donde regressou. Antes de se referir ao amor, porém, o sujeito poético já se referira a outra imagem associada com uma realidade positiva, com “o sol [a] desdobrar os campos, as crianças [a] rirem”. A imagem do sol – desta vez escrito com minúscula, referência pois a um sol natural (em oposição a um Sol simbólico ou retórico?), é por demais óbvia para precisar explicação, sobretudo no contexto da discussão do Sol nos poemas distópicos sobre a criança testemunhada. Mas é a imagem das “crianças [a] rirem” que desejaria acentuar, pois é essa imagem que vemos reiterada através de muitos poemas contendo referências à criança que configuram aquilo a que já chamei impulso utópico na poesia de Jorge de Sena.
Não quero terminar sem uma referência ao clímax do poema “O Regresso”: “Acabou-se. Acabou-se. Voltei a mim. Falei.” A evocação, dentro da visão de sonho, duma experiência de alienação tal que talvez não possa ser rasurável nem pelo advento duma sociedade em que as crianças possam rir na companhia das mães, nem pelo amor que possa reinar na vida do retornado, é uma das mais poderosas afirmações poéticas de Jorge de Sena relacionada com o tema do exílio em várias das suas configurações, por exemplo, o exílio interno e o exílio psicológico. Mas essas “experiências” exílicas acabam por ser, de certo modo, transcendidas precisamente por serem plasmadas na fala, ou melhor, na poesia. Esse “Falei” com que termina o poema é, para o sujeito poético perseguido pelo exílio e pela consequente alienação irremediável, a única maneira que o Poeta tem ao seu dispor de parir-se novamente no tempo, reinventar-se, transcender-se. Neste sentido, este poema é um poema irmão de “Eternidade”, de Perseguição, o poemazinho passível de ser lido como celebração do poeta como mãe parturiente e do poema como filho recém-nascido.
Apêndice A
Poemas sobre a infância e a criança na poesia de Jorge de Sena divididos em ordem cronológica da publicação em livro. Na coluna da esquerda incluem-se os poemas de temática dominante; na da direita, os poemas contendo referências aos temas da infância e criança na poesia seniana. As letras que precedem os títulos indicam a modalidade temática do poema: P: pessoal; T: testemunhal; Arq.: arquetípico.
TD (total: 36) CR (total: 39)
Total por modalidade temática:
P: 9
T: 23
Arq.: 4
_____
36
P: 6 = 15
T: 32 = 55
Arq.: 1 = 5
________
36 75
Perseguição [1942]. In Poesia-I, 3.a ed. Lisboa: Ediçoes 70, 1988.
T: “Circunstancial” (3/7/40) T: “Andante” (18/1/42)
T: “O último Dia” (1/10/39)
P: “Infância” (1/10/40)
T: “Felicidade” (13/4/41)
Arq: “Eternidade” (22/9/41)
Coroa da Terra [1946]. In Poesia-I. 3.a ed. Lisboa: Edições 70, 1988.
P: “Lamentação” (13/12/42) T: “Núpcias” (15/3/42)
T: “Esgoto” (25/5/42) P: “Capilaridade” (1/12/42)
T: “Longitude” (12, 13/6/42) P: “A derradeira visita” (24/1/44)
T: “Dia de Sol” (20/2/44) T: “Reconhecimento” (7/10/42)
T: “Cantiga de Embalar” (21/11/44) T: “Contacto” (10/10/41)
T: “Glória” (6/4/42) T: “Apóstrofe à Loucura” (22/4/44)
T: “Soneto de Orfeu” (15/7/44)
T: “Natal 43” (27/12/43)
Pedra Filosofal [1950]. In Poesia-I. 3. a ed. Lisboa: Edições 70, 1988.
T: “‘Eu, que passei…’” (23/4/48) T: “Chuva, Crepúsculo e Arrabalde (Fantasia Municipal) (28/9/48)
T: “Requiem” (9/4/47) T: “Ode ao Destino” (17/10/47)
As Evidências [1955]. In Poesia-I. 3. a ed. Lisboa: Edições 70, 1988.
T: Soneto “IX” (26/2/1954) Arq: Soneto “XIX” (16/4/54)
T: Soneto “XV” (9/3/54)
Post-Scriptum [1960]. In Poesia-I. 3.a ed. Lisboa: Edições 70, 1988.
P: “Os Soldados de Chumbo e a Eternidade” (Maio-Junho?/1947) T: “Regresso” (30/8/45)
T: “Acção de Graças” (1/10/50)
T: “Os Filhos Levam Muito Tempo a Crescer” (9/5/51)
Fidelidade [1958] In Poesia-II. 2.a ed. Lisboa: Edições 70, 1988.
T: “As Crianças Cantavam” (6/7/1953) T: “Sexta-Feira” (26/7/1951)
P: “Tríptico do Nada” (10 e 15/1/1953)
T: “A Paz” (10/4/1955)
Metamorfoses [1963]. In Poesia-II. 2. a ed. Lisboa: Edições 70, 1988.
T: “Carta a meus filhos sobre Os Fuzilamentos de Goya” (25/6/1959)
Arte de Música [1968]. In Poesia-II. 2. a ed. Lisboa: Edições 70, 1988.
P: “‘La Cathédrale Engloutie’, de Debussy” (31/12/1964)
Peregrinatio ad Loca Infecta [1969]. In Poesia-III. 2. a ed. Lisboa: Edições 70, 1989.
T: “Os Olhos das Crianças” (4/5/1963) T: “Couraçado Potemkin” (23/12/1961)
T: “Tentações do Apocalipse” (21/5/1964)
T: “Homenagem a Tristan Tzara” (1965)
T: “Travessia” (5/5/1969)
Exorcismos [1972]. In Poesia-III. 2. a ed. Lisboa: Edições 70, 1989.
T: “Noções de Linguística” (Outubro 1970) T: “‘Que dizer…’” (70)
P: “‘Pouco a pouco…’” (27/10/1971)
T: “Os perigos da inocência” (23/9/1970)
T: “Sobre um passo do Capítulo XLVIII do ‘Satíricon’ de Petrónio” (Maio 70)
T: “O beco sem saída, ou em resumo” (15/10/1970)
Conheço o Sal… e Outros Poemas [1974]. In Poesia-III. 2. a ed. Lisboa: Edições 70, 1989.
T: “Garcilaso em Toledo” (3/9/1972)
Sobre Esta Praia… Oito Meditações à Beira do Pacífico [1977]. In Poesia-III. 2.a ed. Lisboa: Edições 70, 1989.
T: Med. “II” (4/10/1972)
Quarenta Anos de Servidão [1979]. 3.a ed. Lisboa: Edições, 1989.
Tempo de Perseguição (1938-1942)
Arq: “Poema apócrifo de Alberto Caeiro” (17/7/1942)
Tempo de Pedra Filosofal (1945-1950)
Arq.: “‘Poeta: se teus anos contas’” (4/7/1948)
Tempo de Fidelidade (1951-1958)
P: “Natal de 1951” (24/12/1951)
P: “‘Quisera adormecer’” (8/4/1953)
Tempo de Peregrinatio ad Loca Infecta (1959-1969)
T: “Sobre uma antologia lírica do Natal – Natal de 1969”
(Dezembro de 1969)
Tempo de Conheço o Sal… (1973)
T: “‘Em 590 AC’” (16/3/1973)
Poemas “Políticos e Afins” (1972-1977)
“‘Com que então libertos, hein?…’”
(2/5/1974)
Sequências. Lisboa: Moraes, 1980.
P: “Vaunes” (9/Out/1974) T: “A vida e a morte como investimento segundo as
áreas geográficas” (Jan. 70)
P: “Auray, com St. Goustan na outra margem” (9/Out/1974) T: “O velho que não gostava de gatos”
(28/Maio/1970)
T: “A torre e a metralhadora ou Freud na prática” (Jan/1970)
Visão Perpétua [1982]. 2. a ed. Lisboa: Edições 70, 1989.
Arq: “Adonai” (6-7/12/1942) T: “Aviso” (27/4/1942)
T: “Viagem extática ao templo da sabedoria” (21/4/1944)
T: “Armistício da moda” (28/10/1944)
T: “Ao Zé Portugal” (20/1/1948) T: Expulsão da poesia” (26/5/1962)
T: “‘Nasceu-te um filho’” (son.) (21/9/1945)
T: “O desejado túmulo” (25/12/1970)
T: “Não há nada…’” (17/10/1965)
Post-Scriptum II. 2 vols. Lisboa: Co-Edição Moraes/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.
Vol. I
P: “‘Deve ser por isso” (5/9/38; 16/7/39)
Vol. II
P: “Recordação” (11-12/12/39) T: “Viagem da Treva” (5/1/40)
T: “Viagem” (31/12/40)
Apêndice B
Poemas sobre a infância e a criança segundo uma ordem cronológica da escrita e também segundo as suas modalidades temáticas: 1) poemas pessoais em que a infância e a criança são rememoradas (P); 2) poemas em que a criança e a infância são testemunhadas (T); e 3) poemas arquetípicos em que a criança e a infância são sobretudo evocadas (Arq).
Ano | TD | CR |
1938 | P: “Deve ser por isso” (5/9/38; 16-17/ 10/39) (PSII-2) P: “Recordação” (11-12/12/38) (PSII– 2) | |
1939 | T: “O último Dia” (1/10/39) (Pers.) | |
1940 | T: “Circunstancial” (3/7/40) (Pers.) “Infância” (1/10/40) (Pers.) | T: “Viagem da Treva” (5/1/40 (PSII-2) T: “Viagem” (31/12/40 (PSII-2) |
1941 | T: “Felicidade” (13/4/41) (Pers.) Arq: “Eternidade” (22/9/41) (Pers.) | T: “Contacto” (10/10/41) (CT) T: “Andante” (18/1/42) (Pers.) |
1942 | P. “Lamentação” (13/12/42) (CT) T: “Esgoto” (25/5/42) (CT) T: “Longitude” (12, 13/6/42) (CT) T: “Glória” (6/4/42) (CT) Arq: “Poema apócrifo de Alberto Caeiro” (17/7/1942) (QAS, Tempo de Pers.) Arq: “Adonai” (6-7/12/1942) (VP) | T: “Núpcias” (15/3/42) (CT) P: “Capilaridade” (1/12/42) (CT) T: “Reconhecimento” (7/10/42) (CT) T: “Aviso” (27/4/1942) (VP) |
1943 | T: “Natal 43 (27/12/43) (CT) | |
1944 | T: “Dia de Sol” (20/2/44) (CT) T: “Cantiga de Embalar” (21/11/44) (CT) T: “‘Nasceu-te um filho’” (son.) (21/9/1945) (VP) | P: “A derradeira visita” (24/1/44) (CT) T: “Apóstrofe à loucura” (22/4/44) (VP) T: “Armistício da moda” (28/10/1944) (VP) T: “Soneto de Orfeu” (15/7/44) (CT) T: “O Regresso” (30/8/45) (PS) |
1945 | — | — |
1946 | — | — |
1947 | T: “Requiem” (9/4/47) (PF) P: “Os Soldados de Chumbo e a Eternidade” (Maio-Junho?/1947) (PS) | P: “Ode ao Destino” (17/10/47) (PF) |
1948 | T: “‘ Eu, que passei…’” (23/4/48) (PF) Arq: “‘Poeta: se teus anos contas’” (4/7/1948) (QAS, Tempo de PF) T: “Ao Zé Portugal” (20/1/48) (VP) | T: “Chuva, Crepúsculo e Arrabalde (Fantasia Municipal) (28/9/48) (PF) |
1949 | — | — |
1950 | T: “Acção de Graças” (1/10/50) (PS) | |
1951 | P: “Natal de 1951” (24/12/1951) (QAS, Tempo de Fid.) T: “Os filhos levam muito tempo a crescer” (9/5/51) (PS) | T: “Sexta-Feira” (26/7/1951) (Fid.) |
1952 | — | — |
1953 | P: “‘Quisera adormecer…’” (8/4/1953) (QAS, Tempo de Fid.) T: “As Crianças Cantavam” (6/7/1953) (Fid.) | P: “Tríptico do Nada” (10 e 15/1/1953) (Fid.) |
1954 | T: Son. “IX” de As Evidências (9/3/1954) (Evid.) T: Son. “XV” de As Evidências (9/3/54) (Evid.) | Arq: Son. “XIX” de As Evidências (16/4/54) (Evid.) |
1955 | T: “A Paz” (10/4/55) (Fid.) | |
1956 | — | — |
1957 | — | — |
1958 | — | — |
1959 | T: “Carta aos meus filhos sobre Os Fuzilamentos de Goya” (25/6/1959) (Met.) | |
1960 | — | — |
1961 | T: Couraçado Potenkim” (23/12/1961) (PLI) | |
1962 | T: “Expulsão da poesia” (26/5/1962) (VP) | |
1963 | T: “Os Olhos das Crianças” (4/5/1963) (PLI) | T: “Tentações do Apocalipse” (21/5/1964) (PLI) |
1964 | P: “‘La Cathédrale Engloutie’, de Debussy” (31/12/1964) (AM) | |
1965 | T: “‘Não há nada…’” (17/10/1965) (VP) | T: “Homenagem a Tristan Tzara” (1965) (PLI) |
1966 | — | — |
1967 | — | — |
1968 | — | — |
1969 | T: “Travessia” (5/5/1969) (PLI) T: Sobre uma antologia lírica do Natal – de 1969” (Dez. 1969) (QAS, Tempo de PLI) | |
1970 | T: “Lições de Linguística” (Out. 1970) (Exorc.) T: “A torre e a metrelhadora ou Freud na prática” (Jan. 1970) (Seq.) | T: “Os perigos da inocência” (23/9/1970) (Exorc.) T: “Sobre um passo do Capítulo XLVIII do ‘Satíticon’ de Petrónio” (Maio 1970) (Exorc.) T: “O beco sem saída, ou em resumo” (15/10/1970) (Exorc.) T: “A vida e a morte como investimento segundo as áreas geográficas” (Jan./70) (VP) T: “O velho que não gostava de gatos” (28/Maio/70) (Seq.) T: “O desejado túmulo” (25/12/70) (Seq.) |
1971 | P: “‘Pouco a pouco…’” (27/10/1971) (Exorc.) | |
1972 | T: “Garcilaso em Toledo” (3/9/1972) (CS) T: Med. “II” de Sobre Esta Praia (/10/1972) (SP) | |
1973 | T: “‘Em 590 AC’” (16/3/1973) (QAS, Tempo de Conheço o Sal…) | |
1974 | P: “Vaunes” (9/Out./1974) (Seq.) P: “Auray, com St Goustan na outra margem” (9/Out./1974) (Seq.) | T: “‘Com que então libertos, hein?…’” (QAS, Poemas ‘Políticos e Afins’) |
1975 | — | — |
1976 | — | — |
1977 | — | — |
1978 | — | — |
NOTAS
26 O poema é citado de Reunião: 10 Livros de Poesia, introd. de Antônio Houaiss (Rio de Janeiro: José Olympo, 1969), 48.
27 Vejam-se “The Transmutation of Autobiographical Experiences in Jorge de Sena’s Os Grão-Capitães, Kentucky Romance Quarterly, 30 (1983), p 203-216; este estudo, em trad. de Mécia de Sena, apareceu como “Transmutação das Experiências Autobiográficas em Os Grão-Capitães de Jorge de Sena”, in Estudos Sobre Jorge de Sena, org. de Eugénio Lisboa (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984), p 344-367. Veja-se ainda o meu já citado “Ser Testemunho em ‘Choro de Criança’: Uma Arte de Caminhar nas Ruas do Porto”, in Metamorfoses do Amor.
28 Paul Ilie, Literature and Inner Exile: Authoritarian Spain, 1939-1975 (Baltimore and London: Johns Hopkins University Press, 1980), 44.
29 Fernando Pessoa, Livro do Desassossego de Bernardo Soares, vol. 2, Leitura, fixação de inéditos, organização e notas de Teresa Sobral Cunha (Lisboa: Editorial Presença, 1991), 158-159.
30 Veja-se o meu já referido “Ser-se E/Imigrante e Exilado e Como: Subsídios para o Estudo de um Problemático Drama Seniano em Versos”, in “Para Emergir Nascemos…”: Estudos em Rememoração de Jorge de Sena.
FONTE: Fagundes, Francisco Cota e Paula Gândara (organizadores). Tudo Isto que Rodeia Jorge de Sena: Na International Colloquium. Lisboa: Edições Salamandra, 2003. 59-118.