Neste extenso e profundo ensaio, Francisco Cota Fagundes investiga a presença da temática da infância na poesia de Jorge de Sena, verificando e analisando as diversas situações em que as crianças aparecem nos versos senianos. A partir daí, o autor estabelece relações com outros pontos da produção escrita do poeta, assim como traça influências, diálogos e desdobramentos da referida temática.
Francisco Cota Fagundes
University of Massachussetts – Amherst
No poema “Circunstancial”, Jorge de Sena trata o silêncio não como ausência de algo, mas como uma presença, aliás uma presença capaz de intensificação, passível de audibilidade: “Aumenta de silêncio contra o vento [o soluçar das crianças débeis]”, uma clara associação entre a precariedade da vida destas crianças e o aumentar do silêncio preconizador da morte. No poema “Esgoto”, como vimos antes, “A cidade, do alto, é silenciosa, / porque as vozes não passam entre os beirais tão próximos”, versos estes duma grande riqueza semântica. Por um lado, como já indiquei acima, e à primeira vista, dir-se-ia – e creio que assim se pode ler a referência – que a população que vive no alto da cidade é que, por essas mesmas “alturas” (passíveis de implicações socioeconómicas), votou as crianças ao esterco da rua, à sua geena socioeconómica. Por outro lado, também podemos ler estes dois versos como implicando que as vozes é que são prisioneiras – com tudo o que isso pode significar para uma sociedade em que a condição carceral é em parte determinada pela censura, pela repressão da voz humana. Independentemente de como leiamos estes dois portentosos versos, o resultado é que as duas esferas da cidade – a do esterco onde estão as crianças, e a do alto onde estão os outros seres, mais ou menos socioeconomicamente privilegiados –, não há comunicação possível entre eles. Ambos estão condenados ao silêncio das suas respectivas celas. Aliás, ao contrário da maioria dos outros poemas, em que se ouvem gritos ou choros de crianças, todo este poema é uma câmara de silêncio – desde a primeira estrofe (pois as crianças aqui brincam em silêncio no esterco da rua) à última. A única “voz” que se ouve é a do próprio poema na sua denúncia.
Perante o acontecimento dum funeral duma criança – em que a mãe “Não era uma das mulheres” –, as mulheres que integravam o séquito “Falavam tranquilas”. A qualidade sonora da sua fala sugere, no contexto do poema, resignação, falta de alarme ou de queixume. A criança, que “quase não vivera”, poderia ser de uma delas. A calma implícita no seu falar tranquilo é quase tão dramática como a própria sorte da criança, pois sugere que, nesta sociedade carceral, até a morte duma criança é um acontecimento normal.
Já me referi em parte, no contexto da discussão do papel representado nestes poemas pela imagética da luz, à terceira estrofe do poema “Cantiga de Embalar”. Nessa estrofe há também uma importante referência ao silêncio:
No céu, sem estrelas como um fumo inútil,
espraiam-se olhares, silêncios, cartas esquecidas,
e túmulos perdidos no subsolo das casas.
(Poesia-I, 121)
Trata-se duma estrofe em que, semanticamente, o denominador comum é o abandono das crianças. No plano humano, “espraiam-se olhares, silêncios, cartas esquecidas” – com tudo o que esses “olhares” podem sugerir de impotência e, inclusive, de emigrações e exílios (“cartas esquecidas”). A circunstancialidade do “grito de criança” transformou-se, em parte devido à centralidade do “silêncio” nesta terceira estrofe –, a central, pois, dum poema de seis estrofes – em que o lexema “silêncio” é ainda o centro do verso, estando como está flanqueado pelos sintagmas “espraiam-se olhares” e “cartas esquecidas” –, um comentário muito abrangente, e até universalizante. O verso conclusivo da estrofe – “e túmulos perdidos no subsolo das casas” –, acentua dramaticamente o abandono e o silêncio a que, inevitavelmente, será votada a criança que agora “docemente” chora.
Num plano transcendental temos o primeiro verso dessa mesma estrofe, que claramente acrescenta ao poema uma nota existencial. Este “céu, sem estrelas como um fumo inútil” não poderá deixar de trazer à mente do leitor o conto “O Homem”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, conto social e existencialista escrito em 1959 – portanto quinze anos depois do poema de Jorge de Sena –, onde a narradora faz afirmações, no contexto do abandono humano e metafísico das figuras humanas (um homem e uma criança) de reminiscências cristológicas, que “Era um céu alto, sem resposta, cor de frio”, “Mas o céu eram planícies e planícies de silêncio.”[13]
Os poemas “‘Eu, que passei…’” e “Requiem” são, entre os onze poemas distópicos em foco, textos em que a imagem do silêncio representa um papel importante. No primeiro destes dois poemas, “Eram gritos de um dor humana / e um vento distante nas copas das árvores / embalando o silêncio e a lividez da rua”. Aliás, diga-se de passagem, não há, em todo o poema, nenhuma referência a crianças. Neste caso, o grito é proveniente “de uma dor humana”. O que me persuadiu a incluir o poema no grupo da criança testemunhada foi, precisamente, o sintagma “embalando o silêncio” e a afinidade entre a paisagem e outra imagética distópica deste texto e dos outros textos senianos (poéticos e ficcionais) em que a criança é mencionada. Na minha leitura, que seja o vento a “embalar” o silêncio – em vez, presumivelmente, de se ser a mãe ou o pai a embalar esse ser humano que chora e que identifico como criança –, é consistente com o alcance ideológico da imagética dos outros poemas distópicos aqui referidos. No poema “Requiem”, embora o lexema “silêncio” não apareça, essa imagem está implícita em duas referências: a primeira “sussurra ao vento como areal deserto”, onde a única “voz” que se ouve é a do vento no deserto e onde a única “humanidade” presente é a da personificação desse mesmo vento; a segunda é a já mencionada referência a um anterior choro de criança no contexto duma série de caóticas imagens distópicas – “estradas solitárias, apitos de comboio, cães ladrando, / […] / vidros partidos remendados a jornal” – culmina, numa óbvia intextextualidade com os “túmulos perdidos no subsolo das casas” do poema “Cantiga de Embalar”, numa imagem, já acima referida, de luz moribunda no implícito silêncio duma cave: “candeeiros numa cave”.
No poema “Viagem Extática ao Templo da Sabedoria” faz-se um uso muito especial da imagem da voz e do silêncio. Este poema pertence – como indica o seu título –, aos poemas-quadro. Trata-se duma viagem extática feita pelo poeta ao “templo da sabedoria”. Sem pretensões a esgotar o sintagma, o templo da sabedoria pode ser uma referência sarcástica à prisão, isto é, ao “templo” desta sociedade carceral. No que respeita à imagem do silêncio, essa é tratada com muita subtileza: o sujeito poético refere-se ao “repuxo na tarde”, aos “pássaros cantando” e faz referência sobretudo às “vozes / dos presos, cujas mãos nas grades…” O verso termina assim, em eloquentes reticências… No quadro seguinte – quadro que se segue à reacção do poeta que permanece extático ante a cena –,
Um pai tão esfarrapado trouxe uma criança,
para que aprenda a andar na relva do jardim
E a criança corre trôpega. Sorri.
É muito loura. Tudo é loiro e verde.
Algumas flores não são. Vejo-as daqui.
(Visão Perpétua, 59)
Neste poema, como é óbvio, não há choro ou grito de criança. Esse “choro” foi desviado para a mis-en-scène e para as “vozes dos prisioneiros” – do tal templo da sabedoria. Essas vozes não são caracterizadas, mas o gesto suspenso das mãos é suficientemente eloquente nesse sentido. Os personagens humanos – os prisioneiros, o “pai tão esfarrapado” –, não estão em harmonia com o ambiente primaveril das “folhas novas do arvoredo” e dos “pássaros cantando”. Aliás, temos aqui uma evocação dos “paraísos artificiais” do poema do mesmo nome, a que abaixo me referirei novamente – em que a realidade humana, incluindo a da criança que terá que viver neste mundo –, está em profunda desarmonia com a placidez da Natureza indiferente. O drama da criança, neste poema, é apresentado indirectamente, por referência dramática àquilo que a espera. O seu silêncio e o do pai são tão eloquentes e conspícuos, pela sua ausência, como seria o seu choro, pela sua presença; como o é pela sua presença indistinta “ao longe [n]as vozes / dos presos”.
Como vemos em “Viagem Extática ao Templo da Sabedoria”, uma das estratégias senianas nestes poemas de protesto sobre a criança testemunhada é o choque entre retóricas: a retórica paródica e a retórica parodiada. Passando à discussão desta técnica de evocação de elementos utópicos associados à ideologia e retórica oficiais para os desconstruir ou parodiar – antes de me referir ao choro/grito da criança –, gostaria de reiterar o mais que óbvio: esta compartimentalização da discussão das estratégias retóricas e elementos constitutivos dos poemas só se pode justificar com base numa maior comodidade expositiva. Já tivemos mais de uma ocasião de ver que, nos poemas em que se integram, todos estes elementos funcionam interdependentemente uns dos outros.
A estratégia de evocar textos e retóricas ideológicas utopistas para os transformar em distopias é relativamente comum na poesia (e na ficção) de Jorge de Sena. Já me referi a esse assunto em vários estudos meus.[14] Para só mencionar dois exemplos óbvios, o poema “Os Paraísos Artificiais”, que acima brevemente comentei, não pode deixar de trazer à mente do leitor o célebre poema “A Portugal”, de Tomás Ribeiro (1831-1901), poema esse cujo primeiro verso (“Meu Portugal, meu berço de inocente”) é citado por Jorge de Sena como epígrafe à secção IV de Exorcismos, livro este que contém alguns dos poemas mais distópicos do Poeta, constando, como consta, dessa série que compreende os seus poemas de retorno a Portugal, série essa seguida pelo arqui-distópico “Envoi” intitulado “O Beco sem Saída, ou em Resumo”.[15] Como indiquei no meu livro A Poet’s Way with Music, e como é por demais sabido, esse poema utópico da pena do autor do D. Jaime foi, em grande parte, apropriado pela retórica do Estado Novo e transformado em slogans – lugares-comuns como “jardim à beira-mar plantado”, “a nossa pátria é a melhor de todas as pátrias e merece todos os teus sacrifícios”, enfim, evocações dessa espécie de Disneyland de que, décadas depois, nos falaria Eduardo Lourenço no Labirinto da saudade, ao caracterizar, como vimos, a visão utopista de Portugal nos discursos de Salazar. Aliás, este texto de Tomás Ribeiro é uma pequenina mina de slogans. Não tenho quaisquer pretensões a saber quantos dos célebres slogans estadonovistas provêm daqui. É inegável, porém, que embora nem todas as imagens de Portugal nele contidas tenham sido adaptadas pela retórica do Estado Novo, quase todas elas poderiam ter sido – e quase todas elas se encontram, embora variadas, na retórica falangista espanhola a que acima me referi. Uma enumeração aleatória dessas imagens comprova-o, como também sugere que as imagens distópicas nos poemas sobre a criança de Jorge de Sena não andam nunca muito longe duma inversão radical destes clichés utopizantes, que constantemente apelam para uma infância e adolescência feliz, para uma imagem do paraíso terrestre, sobretudo na supercélebre terceira estância que começa “Jardim da Europa á beira-mar plantado”: “Lisa estrada que andei debil infante; / Variado jardim do adolescente, / Meu laranjal em flor sempre adorante, / Minha noite de amor, meu dia ridente, / Minha tarde d’estrellas rutilante / Meu vergado pomar d’um rico outono, / Sê meu berço final no ultimo somno!” Isto para não insistirmos no “pôr do sol do ameno estio”, no “azul e prata em cada rio”, no ostensivo “terno paraíso”, no “sol das primaveras”, “as priscas eras / Em que lhe ensinaste a erguer altares”.
Jorge de Sena, como é sabido também, escreveu um poema com o mesmo título do célebre poema de Tomás Ribeiro. Carolina Michaëlis incluiu esse texto de Tomás Ribeiro na sua antologia d’As Cem Melhores Poesias (Líricas) da Língua Portuguesa.[16] Só que o “A Portugal” de Jorge de Sena tem dois, não apenas um, óbvios intertextos: titularmente não pode deixar de evocar o do ex-ministro plenipotenciário de Portugal no Brasil; por outro, como também é evidente para quem conheça o poema, traz à baila, palimpsesticamente, uma série de estâncias d’Os Lusíadas, de entre as quais avultam sobretudo a 17, 20 e 21 do Canto III e a célebre 145, do Canto X. Onde Camões geograficamente coloca a Pátria “Como cabeça ali de Europa toda” (III, 17), Sena inverte esta posição, chamando-lhe “Torpe dejecto de romano império” (40 Anos, 85); e onde Camões afirma ser “Esta […] a ditosa pátria minha amada” (III, 21), Sena contrapõe-lhe um peremptório “Não”, acrescentando “Nem é ditosa, porque o não merece. / Nem minha amada, porque é só madrasta. / Nem pátria minha, porque eu não mereço / a pouca sorte de nascido nela”. Mas o poema, à medida que avança na sua retórica distópica, baseada, insista-se, em parte na retórica utópica de Camões e Tomás Ribeiro – ambos eles, mais aquele do que este, poetas cujos versos foram, em várias ocasiões, descontextualizados e transformados em slogans fascistas –, também incorpora versos distópicos do próprio Camões, por exemplo, os da famosa estância 145 do Canto X, sobretudo os últimos três versos: “Não no dá a pátria, não, que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / Dhua austera, apagada e vil tristeza”, versos estes claramente evocados nos primeiros dois versos da terceira estrofe do seniano “A Portugal”: “irrisória face / de lama, de cobiça, e de vileza”. É óbvio, portanto, que Jorge de Sena utiliza passagens utopizantes de Camões para as inverter, como usa passagens distopizantes do autor d’Os Lusíadas para reforçar a sua visão distópica. Que este poema é indubitavelmente de impulso distópico parece, inclusive, estar sugerido nos versos “terra de pedras esburgadas, secas / como esses sentimentos de oito séculos / de roubos e patrões, barões ou condes; / ó terra de ninguém, ninguém, ninguém. Como indica Michael Wiley, “In Thomas More’s famous etymological pun, after all, a utopia, like a geographical blank space, is at once a ‘no place’ (or ou-topos) and a ‘place’, specifically a ‘good-place’ (ou eu-topos).”[17] Assim, o eu-topos camoniano e ribeiriano – apropriados, como sabemos que foram, pela retórica fascista – são convertidos em distopia, em ou-topos, ou terra-de-ninguém.
Os poemas em foco que evocam, para distopização, imagens duma realidade utópica, nalguns casos ostensivamente associada com a conhecida retórica utopista do Estado Novo, são de dois tipos: os poemas que criam uma relação oxímora entre o título e o conteúdo dramático do poema; e, numa variante desta estratégia retórica seniana, os poemas que, em conjunção ou independentemente do título, criam, de início, falsas expectativas no leitor, apelando ou sugerindo impulsos utópicos, que depois são brutalmente distopizados. Uma vez mais, estas estratégias aparecem, por vezes, no mesmo poema. A sua separação justifica-se sobretudo com base na facilidade de exposição. Admita-se, também, que por vezes – por exemplo, no poema “Esgoto” –, o Poeta dá-nos precisamente a distopia já anunciada no título. Aliás, este poema contém uma das mais directas desmitificações da retórica fascista: a retórica associada à exaltação dos Descobrimentos, exaltação essa também contida no poema de Tomás Ribeiro e à qual, como se viu, Rui Aragão se refere. Na segunda estrofe de “Esgoto”, o Poeta refere-se às “formas náuticas” que o esterco toma – no contexto de distopicamente aludir ao futuro destas crianças, destes descendentes dos (fascisticamente tão badalados) nautas. Como Jorge de Sena indicou numa nota ao conto “Campanha da Rússia”, a referência a este empírico cano de esgoto portuense entraria não só neste poema mas no conto “Choro de Criança”.
Alegremente o esterco toma formas náuticas;
um murmúrio de água incita-o com ternura,
um murmúrio no cano coberto de lages gastas,
um ciciar de restos não comidos, restos digeridos, vidas não geradas.
(Poesia-I, 93)
Outro poema que nos dá o que o título nos promete é “Circunstancial”. Quando Jorge de Sena decidiu utilizar, na primeira secção do livro Pedra Filosofal, secção essa que intitulou “Circunstância”, uma epígrafe tirada das “Conversações de Goethe com Eckerman”, estava a chamar a atenção para uma componente da sua poética que, havia muito já, vinha praticando: o testemunho em geral e, mais especificamente, e como consta da afirmação de Goethe usada como epígrafe, o circunstancial como fonte de inspiração poética, um dos princípios mais básicos da Modernidade, como bem sabemos: “O mundo é tão grande e tão rico, e a vida tão cheia de variedade, que nunca faltarão motivações para poemas. Mas hão-de ser sempre poemas circunstanciais, quer dizer, a realidade terá de proporcionar-lhes o motivo e a matéria.” (Poesia-I, 129). E “Circunstancial” – sendo, segundo o Lello, uma das suas acepções, “coisa importante, momentosa” – se chama um dos poemas mais distópicos, e também mais universalizantes, sobretudo no seu alcance geográfico, dos onze poemas em foco. “Requiem” –, um poema que, como já se indicou, é ao mesmo tempo uma meditação sobre a morte da parte do sujeito poético e, no contexto dessa meditação, um rememorar de errâncias pretéritas em que figura a criança num ambiente distópico, é um poema que, obviamente, anuncia o seu conteúdo dramático no título.
“Dia de Sol”, “Cantiga de Embalar” e “Glória” são outros três exemplos mais evidentes, de entre os onze poemas que continuam a reter a nossa atenção, de textos onde está patente essa relação oxímora entre título e conteúdo dramático. Note-se que estes títulos são extremamente significativos no âmbito da semântica ideológica do Estado Novo: o Sol, e tudo o que essa imagem implicava de carácter utopista, como já vimos (“Dia de Sol”); a importância que se dava à harmoniosa família patriarcal (“Dia de Sol” e “Cantiga de Embalar”); e o papel da religião cristã num país onde, embora tecnicamente houvesse separação entre a Igreja e o Estado – ao contrário da Espanha –, na prática estava longe de ser assim.
Quanto a mim, porém, o exemplo mais dramático de choque entre uma retórica utopista – passível de associação à ideologia oficial – e o seu dramático desmentido ocorre no soneto XV, de As Evidências, que passo a citar na íntegra:
Manhã de glória! – ó deuses, ó imagens,
palavras, gestos, silenciosa crença,
ó plácida ternura das paisagens,
brincar das crianças na convalescença,
lembrado vento das remotas viagens,
saber perpétuo das ciências novas,
sereno deslizar de astrais paragens,
mentiras, crimes, proclamadas provas
de tudo contra tudo: universal
visão que sois, só porque sois tão mal
a mão que toca e que a si própria sente;
nessa mentira veramente ouvida,
nessa verdade que, de o ser, já mente,
o mal que sois é o bem de haver só vida.
(Poesia-I, 190)
Sem pretensões a explicar em todo o seu alcance este, a meu ver, difícil poema, creio no entanto que é possível lê-lo, no presente contexto, como expressão dramática dum confronto de ideologias, sendo os primeiros 7 versos do soneto uma (falsa) promessa dessa tão fascística e falangisticamente apregoada “Manhã de glória” – recorrendo-se, sarcasticamente, à ternura das paisagens, ao brincar idílico das crianças, às remotas viagens (dos nautas?). Essa utopia, porém, logo esbarra na distopia dos segundos 7 versos do soneto, recorrendo o Poeta à técnica da enumeração caótica de imagens distópicas, técnica essa que já víramos em poemas como “Glória”.
A imagem do Sol – geralmente escrito com maiúscula –, é uma das mais férteis nesta poesia de protesto de Jorge de Sena, tanto de cunho distópico como utópico (caso este último de que mais adiante trataremos). E não me refiro, ao fazer esta afirmação, apenas aos poemas relacionados com a temática da criança. Darei apenas um exemplo, o poema “Cidade” que, em Coroa da Terra, imediatamente precede “Esgoto”, poema este último em que o Sol (“qual Sol que supurasse das paredes altas / em vão rodeadas pela mão da morte”) desempenha, evidentemente, um papel distópico muito importante. No poema “Cidade”, a imagem da erosão, da ida das pessoas, em massa, para a praia e, sobretudo, os jogos de luz-e-sombra do casario que no rio se reflecte – é tudo transformado numa longa metáfora em que o Sol, em dardos, “sobre o mar as crava”. No poema, temos a criação dum mini-cataclismo, duma cidade e dum campo (dum país, pois) a esboroar-se sob a acção impiedosa do Sol, esse astro-rei de utopias e retóricas utópicas, mas que, em Jorge de Sena, tanto pode assinalar a utopia como o seu oposto. Essa era, aliás, uma velha estratégia retórica do Autor, já presente no conto “Paraíso Perdido”, escrito aos 17 anos. Esse conto, escusado é dizer, também é uma utopia, momentaneamente transformada em distopia, para de novo se transformar em promessa de utopia mediante o imperativo do desejo humano.
Adão sentia-se satisfeito. Não entrava com ele o mais pequeno cansaço. O Paraíso em eterna primavera oferecia-lhe a vida nos seus frutos loiros, na sua floresta virgem, na água límpida que agora lhe corria aos pés. O céu muito azul, sempre sereno, olhava-o com benevolência; e até o Sol o acordava carinhosamente de manhã quando se levantava detrás da montanha do Éden, transformando o Paraíso numa roseira de luz – o Sol tão lindo! Que ele adoraria se não soubesse que Jeová o vigiava a cada instante. Tudo o que pedira lhe fora dado: o pensamento, a fala e Eva.[18]
Não é surpreendente, para quem acredita, como eu, que muita da ideologia humanística seniana está embrionariamente contida nestes dois continhos de Genesis,[19] que o Sol que aqui prometia utopias, logo vai ameaçar essa condição quando a liberdade de Adão e Eva se vê ameaçada pelo espiar de Jeová, isto é, quando Jeová ameaça converter o paraíso deles num cárcere. Não andamos muito longe da “prisão” do menino de 9 anos no conto “Homenagem ao Papagaio Verde”, nem das “prisões” explícitas e implícitas dos poemas que nos ocupam; nem estamos muito longe do uso metafórico do Sol nesses mesmos poemas.
Já antes me referi a este poema no contexto deste trabalho; e já antes fiz uma breve análise dele, no meu livro A Poet’s Way with Music, análise essa feita duma perspectiva um tanto ou quanto diferente. Neste momento creio que os dois elementos mais dramáticos resultam, por um lado e como acima indiquei, do choque oxímoro entre o que o título promete ao leitor – Dia de Sol – e o que, logo na primeira estrofe, começa a ser uma progressivo escurecimento desse Sol, dessa anunciada Primavera ou Verão: “Sob a teia de sombra dos galhos outonais”. Neste poema, e em contraste com os poemas peripatéticos de Jorge de Sena – alguns deles, como vimos, relacionados com a criança testemunhada –, torna-se particularmente dramático o facto de serem as crianças a passar e o poeta o que se queda, presumivelmente parado, a ver passar o funeral: “passaram crianças / guiando na aragem / a outra já morta”. Claro que o verbo “guiar” introduz, nesta cena, um elemento de estranhamento e ironia dignos de nota. As crianças não levam ou transportam o caixão da outra criança – cujo destino será muito provavelmente ou de alguns deles (no poema “Esgoto”, o sujeito poético, referindo-se às crianças que brincam no esterco, afirma que só “algumas serão homens”) – guiam (cujo primeiro significado, segundo o Lello, é “acompanhar alguém para lhe ensinar o caminho”), com tudo o que isso pode sugerir, não excluindo o hipograma the blind leading the blind (em plena luz do Sol, para que se note a ironia) que, neste caso, seria mais apropriado traduzir por as crianças moribundas guiando a criança morta.
Uma rápida olhadela a estes poemas senianos de protesto – como também a toda uma série de contos do Autor, sobretudo em Os Grão-Capitães –, sugere que uma das estratégias de Jorge de Sena, no que respeita ao impulso distópico das suas obras (poéticas e de ficção) era o minar/destruir o conceito em que se baseava, em grande parte, a utópica ideologia do Estado Novo: a hierárquica e harmoniosa família patriarcal. Sena compôs uma série de textos que questionam brutal e distopicamente este modelo de família, incluindo os já referidos “Homenagem ao Papagaio Verde” e “Choro de Criança”. De facto, poderíamos dizer, com base nuns quantos textos de ficção seus, que existe uma prototípica família seniana – de alcance alegórico e com intuitos de parodiar o modelo tão reforçado da família no Portugal do Estado Novo –, e que o paradigma dela é a família retratada em “Homenagem ao Papagaio Verde” e, a nível mais amplo, no “Choro de Criança” e n’“A Grã-Canária”, cujo navio é uma alegoria do navio do Estado, com outras famílias mais ou menos pessoais, e mais ou menos sociais, representadas em outros contos e no romance Sinais de Fogo. Este é, obviamente, um tema que está muito para além do presente trabalho. Eu dediquei algumas páginas à desmitificação seniana do mito da família no Estado Novo no meu ensaio sobre “A Grã-Canária”, incluído no meu volume de estudos Metamorfoses do Amor.
Sem entrarmos, por enquanto no tema choro de criança, o título “Cantiga de Embalar” – que denota uma canção para fazer adormecer ou para tranquilizar uma criança, e portanto implica a presença da mãe ou do pai – choca brutalmente com o ambiente de abandono que depois se cria no poema. Isto, porém, depois do poeta começar o poema com um verso que, à primeira vista, parece encaminhar-se para uma cena, senão propriamente utópica, ao menos não tão distópica como acabará por ser: “Tão docemente se ouve um grito de criança”. Aqui, o advérbio “docemente” é, dir-se-ia, uma mis en abyme do título, isto é, reforça o contraste estabelecido entre título e conteúdo dramático – porque o lexema “grito” o vai brutalmente contradizer. Se fosse “docemente um choro” poderíamos manter a noção de positividade. Com o lexema “grito”, porém, ela queda profundamente abalada. E o poema é, como já vimos tantas vezes, um dos mais distópicos dos onze aqui comentados. De facto, nem se trata dum poema circunscrito a um determinado espaço, mas a um teatro universal:
Um grito de criança. E, no entanto,
há uma guerra, uma paz, armamentos sem fim,
e é importantíssimo estudar economia política.
(Poesia-I, 121)
Claro que poderíamos ler o poema positivizando o seu título. Nesse caso, a cantiga de embalar referir-se-ia ao poema: o sujeito poético estaria no papel de mãe ou pai, e o poema seria a cantiga de embalar. Esta leitura introduz, escusado é dizer, um elemento poético de longo alcance no contexto da poesia social de protesto. Até que ponto é que a poesia pode constituir uma exploração literária da miséria humana e até que ponto pode contribuir para aliviá-la? No contexto duma obra partidária da poesia social, como confessadamente era a de Jorge de Sena, nesse caso com relevo especial para livros como Coroa da Terra, onde figuram alguns dos poemas aqui discutidos, a pergunta não será de todo descabida. Jorge de Sena terá, como poeta empenhado, no sentido mais lato desse termo, e testemunhador de realidades historicamente distópicas no seu país, pensado muitas vezes neste dilema – que aliás ele tematiza nalguns poemas com passagens ostensivamente metapoéticas, em que a poesia é humanamente responsabilizada. Um dos exemplos mais enfáticos é o poema, incluído em Visão Perpétua – poema, aliás, relativamente tardio e portanto não pertencente à fase mais “neo-realista” da poesia seniana –, “Expulsão da Poesia”. A responsabilidade atribuída à poesia – responsabilidade essa que, escusado é dizer, a poesia moderna e não moderna nem sempre cumpriu –, é expressa em relação com as crianças, a quem, implica o Poeta, essa responsabilidade é sobretudo devida. Quando a poesia falta aos seus deveres, os quais são abundantemente enumerados ao longo deste longo poema –, a poesia deveria, ao menos, ter a coragem (?), a integridade (?) de se penitenciar perante aqueles a quem moralmente mais deve: “Vai! Vai! Espoja-te no chão, / e pede humildemente que as crianças do mundo, / te mijem em cima” (VP, 77).
“Glória” é, de todos estes poemas e talvez ainda mais que “Dia de Sol”, o poema que possui o título mais utópico. As suas implicações são, à primeira vista, de carácter secular ou religioso, pessoal ou colectivo. Aliás, convém talvez lembrar que, nos seus primeiros dois livros, Perseguição e Coroa da Terra – Jorge de Sena favorecia, como é facilmente constatável, os títulos de uma só palavra, geralmente um substantivo ou um adjectivo substantivado, e geralmente sem artigo (nos 51 poemas que perfazem Perseguição há apenas 6 excepções à regra, sendo um deles um substantivo precedido de um prefixo com hífen [“Pré-história”]. Os restantes, um total de apenas 5 poemas, ou 10% dos títulos, são sintagmas). Coroa da Terra, que consta de 52 poemas, todos eles com título, contém 37 títulos que consistem de substantivos não precedidos sequer de artigo. Escusado é dizer que este tipo de título se presta a ambiguidades, por exemplo, a de criar expectativas no leitor que se confirmarão ou não na leitura do poema.
Não só no seu título, mas ainda no primeiro dos seus versos – “Um dia se verá que o mundo não viveu um drama” –, o poema “Glória” começa por ser um dos mais enfáticos exemplos daquilo que venho a chamar o choque oxímoro entre título e conteúdo dramático. O facto de Jorge de Sena ter dividido o poema em três estrofes – consistindo a primeira apenas do verso citado; a segunda de onze versos; e a terceira, uma vez mais, de um só verso –, é extremamente significativo. O primeiro verso é assim reforço das potencialidades semânticas positivas do título. O facto de esse primeiro verso constituir uma estrofe – isto é, de estar separado da longa estrofe que o segue –, faz perdurar, na mente do leitor, a noção de positividade que elicitara o título “Glória”. Só quando chega à disfórica e anafórica segunda estrofe é que o leitor se apercebe de que foi vítima de falsas expectativas. Quando o Poeta nos atinge com a catadupa de enumerações disfóricas que compõem a segunda estrofe do poema é que nos apercebemos não só da armadilha em que, com base na promessa do título e do primeiro verso-estrofe, havíamos caído. Aliás, como resultará bastante óbvio, este poema tem uma relação intertextual muito forte com o poema, citado anteriormente, “Ode ao Futuro”, em que a “idade de ouro” evocava a retórica oficial e a enumeração de elementos disfóricos semelhantes aos enumerados no poema “Glória”, representava a sua sarcástica refutação. No último verso de “Glória”, porém, o título do poema é trazido à baila uma vez mais. Agora, ao menos para este leitor, o título esclarece-se um pouco. A titularmente anunciada glória, agora apercebemo-nos, e em confirmação com o que nos indicava o primeiro verso-estrofe, é que o mundo não viveu, de facto, um drama: o mundo viveu uma série de “mortes”; e dessas mortes o mundo, um dia, se libertará – sem deixar de morrer uma morte natural que, como nos diz Sena na “Carta aos meus filhos sobre Os Fuzilamentos de Goya”, é de todos e virá.
Em “O último Dia” e “Longitude” temos variantes das falsas expectativas que vimos no caso dos poemas “Dia de Sol”, “Cantiga de Embalar” e “Glória”. Só que no caso dos três poemas em foco, os títulos – com a possível excepção de “Longitude”, um título de reminiscências românticas mas de valor semântico relativamente neutral –, não denotam impulsos de retórica utopista. Aliás, no poema “O último Dia” – e não nego que este título pudesse ser ou positivo ou negativo, consoante o conteúdo do resto do poema –, o primeiro verso é ostensivamente utópico: “Crianças riem na varanda, riem”. Nos poemas de Jorge de Sena que resultam de energias sobretudo utópicas, esses momentos frequentemente se traduzem pela presença de crianças rindo ou brincando. Este primeiro verso de “O último Dia”, porém, é imediatamente problematizado – não refutado, mas problematizado –, no segundo: “e brincam de maneira que já não são crianças”. O sujeito poético coloca-se, assim, não só na posição de testemunha mas de leitor do comportamento e, como vamos ver, do destino das crianças, que não é tão promissor como o primeiro verso nos poderia levar a crer. Como vimos anteriormente ao discutir a imagem do Sol, neste preciso dia não há Sol. E, como o poeta nos dirá na terceira estrofe, “As crianças brincam de pensamento morno”. Porque são autómatas, poderia perguntar-se o leitor? Ou porque o seu brincar é, no contexto desta sociedade carceral, uma maneira de enganar os dias? O poema prossegue por mais duas estrofes, uma de dois versos, a última dum verso apenas. Na penúltima estrofe faz-se uma afirmação bastante ambígua: “Este poema está errado. / Se não está, é o mesmo – não termina.” O último verso, que também é a última estrofe, não nos deixa mais elucidados: “Repetir tudo várias vezes até não perceber.” Creio que, apoiando-nos na imagem do Sol (ausente) e do “pensamento morno” destas crianças “que já não são crianças” não será demasiado arriscado concluir, como eu concluo, que este poema se enquadra na série de poemas distópicos que têm a criança como tema central. Por outro lado, este poema não pode deixar de problematizar a noção de poesia testemunhal. O sujeito poético-testemunha é o “leitor” destas crianças e do seu comportamento. A leitura que ele faz – e talvez a isso aluda o Poeta no fim do poema –, poderá estar errada e ele poderá ter que repetir tudo de novo, ou tudo será repetido porque o Poeta teme que as circunstâncias que inspiraram a revolta do poema não mudem.
“Longitude” poderá sugerir, como sugere a este leitor, paisagens românticas a esfumar-se na distância, conquanto não deixe de evocar simultaneamente as ciências a que muitos dos títulos de poemas de Coroa da Terra aludem (e.g., “Espiral”, “Capilaridade”, “Ocaso”, “Causalidade”, “Zodíaco”, “Estalactite”, etc.). Bastaria pensarmos, por exemplo, na poesia de Wordsworth, em que a distância representa papel cruciante na poetização da paisagem; ou na poesia simbolista, inconcebível nalguns casos sem os seus longes evocativos e oníricos. Mas neste poema-errância de Jorge de Sena o elemento de distância não se utiliza nesse sentido transfigurador da poesia romântica, ou nesse sentido oneirista da poesia simbolista. Trata-se, como se disse antes, dum poema-errância e, como tal, de um visão análoga à de uma câmera que no máximo capta uma realidade em grandes planos e, no mínimo, capta-a em planos panorâmicos mas, para o sujeito poético, inteligíveis.
Entre os pinheirais,
ao lado de uma brisa que chiou nos campos,
demoro-me com a brisa alguns instantes,
e contemplo crianças que iniciam outras.
(Poesia-I, 94)
Não estamos, nos versos transactos, muito longe duma visão utópica, na realidade dum cenário que poderia ser palco dum idílio campestre, neste poema que, depois descobrimos, é citadino. (Uma das constantes mais importantes de Perseguição e Coroa da Terra, mas particularmente neste segundo livro, é a cidade que, como já se indicou, confessadamente se refere à cidade do Porto.) O quinto verso do poema é onde se começa a distopizar a promessa de utopia – “Porque esquecem [as crianças], mais tarde, o que aprenderam?” Na segunda secção do poema já estamos num mundo urbano distópico, na referência à degradação da prostituta. Na terceira secção – onde, como vimos anteriormente, se contrapõe, no mesmo verso, muito significativamente no contexto duma discussão da desconstrução do discurso utopista oficial, o “jardim” em frente da “prisão” – , é que já não há espaço para dúvidas que a promessa de idílio longe da grande actividade do mundo urbano não é de todo possível, permanecerá no domínio do desejo. (Aliás, vários poemas citadinos de Coroa da Terra contêm versos evocativos de paisagens rurais, que mais devem à tradição geórgica do que à bucólica.)
Passando a um dos temas fulcrais dos onze poemas de que vimos a tratar, o choro (ou grito) de criança, podemos dizer que essa imagem sonora (e nalguns casos o seu reverso: o riso/barulho de crianças a brincar) é um dos barómetros mais precisos da energia distópica ou utópica presente nos poemas. Quer acreditemos ou não com Philipe Ariès que a infância – e até certo ponto a criança –, é uma “construção europeia moderna”,[20] o certo é que só a partir do século XVIII, e particularmente depois de Rousseau, é que o “culto da criança”, como lhe chama George Boas,[21] se desenvolveu no Ocidente entre pensadores e poetas. E um dos primeiros grandes poetas a representar a criança sofredora – embora, segundo Boas (49), não tivesse feito uma grande contribuição para avançar o “culto da criança” – foi William Blake. Aliás, Jorge de Sena, como umas das duas epígrafes ao seu conto “Choro de Criança” claramente indica, utilizou um excerto dum breve discurso de William Blake em que o autor Songs of Innocence e Songs of Experience defende que são as Artes que “instruem” os Impérios e estes que “impedem a instrução”. Se bem que nesse texto paradigmático sobre o topos do choro de criança Sena não cite nenhum dos textos blakianos sobre a infância, opinei, no contexto do meu estudo sobre “Choro de Criança”, que o poema “London”, o que
contém a quadra
In every cry of every Man,
In every Infant’s cry of fear,
In every voice, in every ban,
The mind-forge’d manacles I hear.
é passível de ser encarado como um dos intertextos desse conto d’Os Grão-Capitães.[22] Aliás, a criança distópica – e, como veríamos se o tempo e espaço permitissem, a criança em poemas de impulso utópico –, fazem pensar nos dois estados a que se refere Blake em Songs of Innocence, que acentuam os elementos utópicos, embora haja nessa colectânea prenúncios da segunda; e Songs of Experience, em que se enquadra o poema “London”, que, conquanto não sejam todos poemas distópicos, é essa modalidade que na colectânea predomina. (Em ambos esses livros de Blake, que posteriormente foram publicados como um só, Poems of Innocence and Experience, do total de 50 poemas, 20 são sobre a criança.)
No que se refere especificamente ao topos do choro de criança, um texto que não pode deixar de vir à mente do leitor é o longo poema de protesto “The Cry of the Children”,[23] da poeta Elizabeth Barrett Browning, poema cujo tema foi caracterizado por M. A. Nersesova como “the slave labour of children in a mill under capitalism”.[24] Conquanto seja um texto dum vitoriano sentimentalismo que Jorge de Sena dificilmente subscreveria, a insistência, através das 13 estâncias do poema, no choro das crianças (“children weeping”, “weeping bitterly”, “young children in the sorrow”) parece ecoar nos vários poemas de Jorge de Sena, embora não ecoe nunca uma contrapartida do apologético “in the country of the free” da autora dos Sonnets from the Portuguese, que de português só têm o nome. Também poderia mencionar, no contexto da antologia seniana Poesia do Século XX, o excerto de “Il Picollo Berto”, de Umberto Saba, único exemplo nessa colectânea do topos em foco.
Quanto ao topos do choro de criança na literatura portuguesa, podemos referir as Líricas Portuguesas, organizadas por Jorge de Sena, salientando algumas afinidades temáticas entre a poesia seniana e os poemas escolhidos pelo Autor. O topos do choro de criança não é, porém, um deles. E a consulta das dez dúzias de textos poéticos e ficcionais sobre a infância e a criança pessoal, na antologia A Infância Lembrada,[25] onde estão representados cerca de 90 escritores e dez dúzias de trechos de ficção e poemas, sendo a maioria textos poéticos (incluindo “Os Olhos das Crianças”, de Jorge de Sena), também indica que nesse imenso corpus abundam as evocações da infância paradisíaca, o tema do olhar das crianças, e, coisa raríssima nessa antologia, até a criança apresentada realisticamente – com todos os atributos que lhe podem ser impingidos, incluindo a maldade –, mas é conspícuo, pela sua ausência quase total, o topos do choro de criança. Embora admitindo que não se trata de uma antologia sobre a criança, em oposição a infância/criança pessoal, esperar-se-ia que o topos aparecesse umas quantas vezes. Os poemas que mais se aproximam duma representação das vozes de crianças são “Uma Voz de Criança”, de Francisco Luís Amaro (do livro Contravento; 1970), “Dois Meninos”, de Francisco Bugalho (de Poesia; 1960), “Riso”, de Afonso Duarte (de Ossadas; 1947), poemas em que as vozes das crianças são, respectivamente, “cristalinas, grácil”; uma canção misteriosa “que é [o menino] só que entende”; e o riso do menino contraposto ao choro do adulto. Dos grandes poetas representados nesta antologia, só o Fernando Pessoa de “A Criança que Fui” – “A criança que fui chora na estrada” –, e dum excerto do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, a que mais adiante voltarei, é que se aproxima do topos em foco na poesia de Jorge de Sena. Aliás, convenhamos que a poesia seniana também só na representação da criança testemunhada, e não na evocação da infância atribuída ao sujeito poético, é que recorre ao topos do choro. Um estudo comparativo do topos do choro de criança na poesia seniana e na poesia sobre a criança testemunhada na poesia portuguesa contemporânea fica aqui apenas sugerido.
NOTAS
13 “O Homem”, in Contos Exemplares, 24.a ed. (s/l: Figueirinhas, 1991), 156; 157. Não quero dizer que haja quaisquer influências, ou sequer intertextualidades, conscientes entre estes textos, o que, por outro lado, não seria impensável dado o facto de ambos estes escritores terem “pertencido” ao grupo dos Cadernos de Poesia. Não me aventuraria a dizer que existe entree os dois textos uma coincidência ideológica e expressiva, tendo em conta, necessariamente, o Catolicismo de Sophia e o humanismo secular de Jorge de Sena.
14 Vejam-se, para a poesia seniana, o meu A Poet’s Way with Music: Humanism in Jorge de Sena’s Poetry (Providence: Gávea-Brown, 1988); e Metamorfoses do Amor: Estudos sobre a ficção breve de Jorge de Sena, particularmente os ensaios “Eros na Ilha de Fascistas: ‘A Grã-Canária’ como Paródia da Ilha dos Amores de Camões”, “Ser Testemunha em ‘Choro de Criança’: Uma Arte de Caminhar nas Ruas do Porto” e “Do Amor Fraterno e do Realismo Cinemático em ‘Os Irmãos’”.
15 Estudo estes poemas de retorno ou re-entrada no contexto de outros poemas de emigração e exílio, no meu ensaio “O retorno do exilado: subsídios para o estudo dum drama humano na poesia de Jorge de Sena”, in Jorge de Sena em Rotas Entrecruzadas, org. de Gilda Santos (Lisboa: Edições Cosmos, 1999), p 103-116. Veja-se ainda o meu ensaio muito mais longo e que incorpora o ensaio acabado de citar, “Ser-se E/Imigrante e Exilado e Como: Subsídios para o Estudo de um Problemático Drama Seniano em Versos”, in “‘Para Emergir Nascemos…’: Estudos em rememoiração de Jorge de Sena, org. de Francisco Cota Fagundes e Paula Gândara (Lisboa: Edições Salamandra, 2000), 191-243.
16 As Cem Melhores Poesias (Líricas) da Língua Portuguesa, escolhidas por Carolinha Michaëlis de Vasconcelos (Philadelphia: George W. Jacobs & Co. Publishers, s.d.), 218-219.
17 Romantic geography: Wordsworth and Anglo-European spaces (London and New York: Macmillan Press and St. Martin’s Press, 1998), 10.
18 “Paraíso Perdido”, in Genesis (Contos) (Lisboa: Edições 70, 1983), 19.
19 A este assunto dediquei o meu livro In the Beginning There Was Jorge de Sena’s GENESIS: The Birth of a
Writer (Santa Barbara: Jorge de Sena Center for Portuguese Studies University of California, Santa Barbara in
association with Bandanna Books, 1991).
20 Veja-se o clássico Centuries of Childhood: A Social History of Family Life, trans. Robert Baldick (New York: Vintage, 1962).
21 The Cult of Childhood (London: The Warburg Institute, University of London, 1966).
22 Veja-se o meu já citado “Ser Testemunha em ‘Choro de Criança’: Uma Arte de Caminhar pelas Ruas do Porto”, in Metamorfoses do Amor, 201-202
23 “The Cry of the Children”, in Poems, 4th ed. vol. II (London: 1856), 142-49.
24 Apud Patrick Waddington, “Russian Variations on an English Theme: The Crying children of Elizabeth Barrett Browning.” Studies in Browning & His Circle: a Journal of Criticism, History, & Bibliography, 21 (Nov. 1997), 95.
25 A infância lembrada. Antologia. Textos de autores portugueses, org. de Matilde Rosa Araújo (Lisboa: Livros Horizonte, 1986).