Neste extenso e profundo ensaio, Francisco Cota Fagundes investiga a presença da temática da infância na poesia de Jorge de Sena, verificando e analisando as diversas situações em que as crianças aparecem nos versos senianos. A partir daí, o autor estabelece relações com outros pontos da produção escrita do poeta, assim como traça influências, diálogos e desdobramentos da referida temática.
Francisco Cota Fagundes
University of Massachussetts – Amherst
Jorge de Sena escreveu 75 poemas ostensivamente sobre a infância e a criança. Destes 75, 36 – um pouco menos de metade –, são poemas em que esses temas dominam o texto poético ou constituem um dos temas dominantes. Identifico esses textos como sendo de temática dominante (TD). Não há, nem seria de esperar que houvesse, poemas tematicamente puros, isto é, exclusivamente dedicados ao tratamento da infância ou da criança. Na maioria dos casos, esses temas interagem com outros temas complementares. Por outro lado, também se identifica um grande número de textos – que, na minha contagem, perfazem um total de 39 – em que as referências à infância/criança não constituem temas dominantes, embora possam ter um significado e alcance importantes na economia global desses textos. Esses poemas são rubricados como contendo referências (CR) (vejam-se os Apêndices A e B).
Os 75 poemas que compõem o corpus primário sobre a infância/criança são passíveis de subdivisão em três modalidades: a infância pessoal (e aqui predomina sobretudo o tema da infância do sujeito poético); a criança testemunhada (e neste grupo é mais comum a criança vista como terceira pessoa), de longe a modalidade temática em que o Poeta foi mais profícuo; e a criança, também evocada na terceira pessoa, passível de ser vista como arquetípica. Isto não quer dizer, porém, que estas três modalidades sejam inteiramente separáveis ou estanques, e muito menos que o “pessoal”, o “social” e o “arquetípico” não sejam detectáveis em todos os poemas, dependendo do foco do leitor. As modalidades infância pessoal, criança testemunhada e criança arquetípica são, admito-o, intencionalmente vagas e aqui propostas, em parte, por comodidade expositiva. Uma divisão mais específica aproximar-nos-ia demasiado duma leitura ou interpretação que, nesta altura do trabalho, quero evitar. Admito também que, nalguns casos, a atribuição de um poema a determinada modalidade temática é, de per si, já um acto interpretativo e até, em casos de poemas particularmente difíceis, necessariamente controverso.
Os poemas senianos de que em seguida me ocuparei – onze poemas ostensivamente sociais e, mais particularmente, de protesto político, tendo a criança testemunhada como tema – são os seguintes. Dou os poemas na ordem em que aparecem nos livros de que fazem parte. Para uma ordem cronológica, veja-se o Apêndice B. No corpo principal do texto dão-se os poemas de temática dominante. Os poemas de protesto contendo apenas referências à criança serão dados em nota de rodapé.[1]
Perseguição:
“Circunstancial” (3/7/40)
“O último Dia” (1/10/39)
Coroa da Terra:
“Esgoto” (25/6/42)
“Longitude” (12, 13/6/42)
“Dia de Sol”(20/2/44)
“Cantiga de Embalar” (21/11/44)
“Glória” (6/4/42)
Pedra Filosofal:
“Eu, que passei” (23/4/48)
“Requiem” (23/4/48)
As Evidências
Soneto “XV” (9/3/54)
Visão Perpétua
“Viagem Extática ao Templo da Sabedoria” (21/4/33)
Na presente leitura destes poemas, a qual será muito mais abreviada do que eles mereceriam, vou recorrer ao conceito impulso distópico, sublinhando sempre que se trata apenas de um ângulo de abordagem entre tantos outros. Parto da definição de distopia proposta por M. Keith Booker, no seu livro Dystopian literature: a theory and research guide:[2]
Briefly, dystopian literature is specifically that literature which situates itself in direct opposition to utopian thought, warning against the potentail negative consequences of arrant utopianism. At the same time, dystopian literature generally also constitutes a critique of existing social conditions or political systems, either through the critical examination of the utopian premises upon which those conditions and systems are based or through the imaginative extension of those conditions and systems into different contexts that more clearly reveal their flaws and contradictions. ( 3; itálico meu)
Proponho como tese que o impulso distópico (e utópico, a que não poderei dedicar o tempo devido) na poesia seniana que vamos tratar corresponde, pelo menos em parte, à necessidade de intervir poeticamente para expor e criticar um dos momentos mais dolorosos da história portuguesa e europeia deste século; e, por outro lado, à concomitante necessidade de evocar, para os desconstruir mediante recursos satíricos e paródicos, alguns aspectos mais conhecidos da utopista retórica fascista peninsular.
Estes textos temporalmente correspondem a, e poeticamente retratam, um dos momentos mais violentos do século XX, os anos de 1939 a 1953 – para nos atermos, arbitrariamente, aos 14 anos compreendidos no período da escrita dos poemas: anos de guerra mundial, de pós-guerra civil espanhola, de perseguições, de prisões, de exílios, de emigrações legais e clandestinas, de censuras, de pobreza chocante e de miséria moral. Caracterizando, em termos claramente distópicos, a realidade evocada n’Os Grão-Capitães, livro escrito “na atmosfera de um Brasil livre”, publicado em 1976 mas visando a época de 1928 (tempo da acção de “Homenagem ao Papagaio Verde”) a 1961 (tempo da acção de “Capangala não Responde”), Jorge de Sena chama-a “era de decomposição do mundo ocidental e desse tempo de uma tirania que castrava Portugal”.[3]
Como se sabe, porém, para as forças reaccionárias, essa mesma época (sentido lato) surgira – não só em Portugal mas na Espanha, na Alemanha e na Itália –, como utopia que, numa orquestrada poetização do discurso político, era um alvor, uma aurora vermelha, o sol, a primavera, o trigo verde, a espiga, o ímpeto e (em estridente imagem sonora) o som do clarim redentor. Poucos poetas ibéricos encarnam este impulso utópico e sintetizam esta imagística euforizante melhor do que o jovem poeta falangista Dionisio Ridruejo (que viria a ser chefe de propaganda no Ministério do Interior no primeiro governo nacionalista de Franco), que assim evoca o “glorioso amanhecer”, no seio mesmo da guerra civil, guerra essa higienizada, como costumava ser, na retórica política e na poesia falangistas. (Em abono da verdade, constate-se que, como é do conhecimento geral dos estudiosos da literatura espanhola, Ridruejo evolui para uma fase em que se afasta do fascismo.)
llegó a mojar las ascuas del estío
en el anuncio rojo de la aurora.
Ahora está la guerra sobre julio
adelantando el alba esclarecida
con un filo agudísimo de espada.[4]
A suposta utopia portuguesa, que encarna sobretudo nos vários tomos de discursos de Salazar e nos trabalhos propagandísticos de António Ferro, é assim caracterizada em parte por Eduardo Lourenço:
uma lusitanidade exemplar, cobrindo o presente e o passado escolhido em função da sua mitologia arcaica e reaccionária que aos poucos substituiu a imagem mais ou menos adaptada ao País real dos começos do Estado Novo por uma ficção ideológica, sociológica e cultural mais irrealista ainda que a proposta pela ideologia republicana, por ser oficial, imagem sem controlo nem contradição possível de um país sem problemas, oásis da paz, exemplo das nações, arquétipo da solução ideal que conciliava o capital e o trabalho, a ordem e a autoridade com um desenvolvimento harmonioso da sociedade. Esse optimismo de encomenda teve nas famigeradas “notas do dia” o seu evangelho radiofónico. Não vivíamos num país real, mas numa “Disneyland” qualquer, sem escândalos, nem suicídios, nem verdadeiros problemas.[5]
Referindo-se particularmente ao mito da nova idade, o do Portugal glorioso das Descobertas e Conquistas, Rui Aragão escreve:
Povo de heróis conquistadores e navegadores, nada mais fácil, para isso, do que olhar comodamente para as glórias da história nacional e para o que delas ainda restava enquanto sobrevivência desse passado: a presença portuguesa em África. Aquilo que, para o regime fascista, constituía o ‘ser próprio’ português, aquilo que individualizava positivamente a Nação em termos de identidade era, de facto, o glorioso passado histórico, por um lado, e a missão civilizadora em África (a sobrevivência recente desse passado), por outro.[6]
Talvez nenhum poeta melhor que Jorge de Sena tenha sintetizado uma imagem da vida que se vivia em Portugual nos anos 40 (por vezes com implicações de carácter inegavelmente universalizante), nos seus poemas de protesto, privilegiando-se aqui aqueles em que figura a criança. Antes, porém, de discutirmos esses textos, chamo a atenção para poemas como “Ode à Mentira” (31/3/49) e “Ode para o Futuro” (7/10/49), ambos de Fidelidade, em que o impulso distópico é por demais óbvio e em que a refutação da retórica fascista é muito evidente, atingindo, no segundo poema, uma dimensão particularmente virulenta ao visar, como visa, alguns dos tópicos imagísticos dessa retórica. “Ode à Mentira” é um poema que privilegia, no primeiro verso ao menos, o mostrar sobre o dizer, isto é, que evita/suspende as modalidades narrativa ou descritiva – que são frequentemente elementos constitutivos destes poemas – e entra, de chofre, numa modalidade presentificativa/enumerativa:
Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,
como sereis cruéis, como sereis injustas?
(Poesia-I, 137)
Na “Ode para o Futuro”, o Poeta dirige-se àqueles que, no porvir, lendo versões oficiais da história de hoje, imaginarão utopias que a retórica fascista construiu, ou que eles, dando crédito a essa retórica, construirão. A terceira estrofe do poema –, uma vez mais abandonando o dizer para recorrer ao mais dramático mostrar –, vai contrapor a essa retórica uma efusão de imagens distópicas, cerrando-se a estrofe com um regresso à imagística utópica, criando-se assim um implícito diálogo de retóricas: a retórica satirizante do Poeta e a retórica satirizada do discurso oficial:
E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
– apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de ouro.
(Poesia-I, 141)
Aliás, muitos dos poemas de protesto de Jorge de Sena baseiam-se largamente neste diálogo de retóricas. Outro exemplo disso – para mencionar apenas mais um texto não ostensivamente relacionado com a criança testemunhada –, é o célebre poema com que Sena abre Pedra Filosofal, “Paraísos Artificiais”. O título já contém um sarcástico qualificativo, no sentido gramatical e ideológico, que o resto do poema vai desenvolver, recorrendo-se sobretudo à técnica do evocar para refutar: todas as estrofes contêm um “não há” que introduz mais um elemento de distopia, excepto a penúltima estrofe que, numa negativa desta vez sarcástica – “Na minha terra, porém, não há pardieiros” –, traz uma vez mais à baila um elemento “utópico” para concludente refutação. O poema, em parte mediante a reiteração do sintagma “não há” (repetido quatro vezes num poema de 15 versos, aos quais devemos adicionar um “não é” e um “não pode”) é passível de ser lido como um poema de protesto e exemplo máximo de energias distópicas no Poeta, orientadas no sentido duplo de crítica social e política, mas também de combate, neste caso paródico, às energias utópicas da ideologia e retórica oficiais.
Para uma caracterização geral dos poemas acima enumerados sobre a criança testemunhada enquadráveis no que chamei de impulso distópico, poderíamos utilizar, como ponto de partida, a maioria dos temas e imagens contidos na passagem citada do poema “Ode ao Futuro”. Aliás, poder-se-ia dizer, com algumas reservas, que essa enumeração caótica de temas (técnica, como é sabido, muito privilegiada pelo surrealismo que, muitos anos antes do seu aparecimento oficial em Portugal [1947], já enformava, como o próprio Sena defendeu tantas vezes, a poesia dos seus primeiros dois livros) e imagens distópicos são como que uma síntese dos temas e imagens variados nos poemas que agora nos ocupam. As seguintes estratégias formais e elementos conteudísticos enformam, duma maneira geral, os onze poemas aqui privilegiados: 1) a errância implícita ou explícita do sujeito poético vis-à-vis as cenas evocadas ou descritas; 2) o cenário urbano denominável como locus horrendus; 3) a paródia de elementos utópicos associados à ideologia e retórica oficiais; e 4) os leitmotive do choro ou gritos das crianças, com fortes ressonâncias intertextuais de obras senianas e de outros autores.
Em todos estes poemas está implícita ou explícita a errância do sujeito poético, conceito-chave da poética de Jorge de Sena, conceito esse aplicável e por ele aplicado tanto à poesia como à prosa de ficção. Dos onze poemas em epígrafe, cinco deles – “Circunstancial”, “O último Dia”, “Dia de Sol” e “Cantiga de Embalar” e “Viagem Extática ao Tempo da Sabedoria” – eu chamaria de quadros dramáticos. Neste caso, o poema representa uma vinheta mais ou menos circunscrita a um espaço senão delimitável, pelo menos estático, espaço esse que seria concebível que alguém pudesse, ao passar e parar, ter observado – em oposição aos poemas que, qual câmara ambulante, vão registando acontecimentos ao longo dum percurso mais longo. O que importa salientar é que, nestes poemas-quadro, pressentimos a presença do sujeito poético que, vindo de algures, por ali passou e se deteve o tempo suficiente para fixar o evento narrado. Estes poemas são concebidos como sendo poemas dos sentidos, não da memória. Está para além deste estudo traçar o percurso da poesia urbana e do caminhante ou flâneur que, escusado é dizer, remonta ao autor das Fleurs du Mal e do Spleen de Paris, passa por Rimbaud e, para apontar apenas dois dos casos mais flagrantes na literatura portuguesa, marca a poesia de Cesário Verde e de Álvaro de Campos. Acentue-se, no entanto, que existe uma diferença bastante grande entre o deambulador baudelaireano e o seniano, sobretudo entre o dandismo daquele e o empenhamento deste.[7] Alguns destes poemas de Jorge de Sena evocam os tableaux vivants de Baudelaire. Nesses quadros, o leitor tem a impressão que o sujeito poético se transforma, por um lado, em voyeur e, por outro lado, em consciência empática. É óbvio que existe uma diferença social entre observador e observados, as crianças. Assim, é inevitável a noção de quem está livre, ou da liberdade da poesia – ou ao menos tem a liberdade de se deslocar dum lugar para outro –, e quem está encarcerado no quadro que se fixa no tempo e no espaço. Por outro lado, o que trouxe o sujeito poético até aqui – e, escusado é dizer, o que fez com que o Poeta escrevesse o poema, em primeiro lugar – foi um impulso no mínimo fraternal, no máximo dialógico.
Um poema, “Glória”, apresenta-se, em oposição aos poemas-quadro, como um panorama geral, tanto em termos espaciais como temporais. É um poema que pretende caracterizar toda uma época e todo um mundo. Aliás, o sujeito do poema – como consta do primeiro verso –, é o mundo inteiro: “Um dia se verá que o mundo não viveu um drama”. O poema “Requiem”, por sua vez, não é – ao contrário dos quatro poemas-quadro, que eram perceptuais, e do poema “Glória”, que é uma colagem de eventos duma amplidão geográfica e temporal não abarcável apenas pelos sentidos – um poema de evocação mental da parte do sujeito poético de cenas testemunhadas em errâncias anteriores. Juntamente com os poemas-quadro que reflectem cenas ao vivo, este poema faz, uma vez mais, pensar em “Choro de Criança”, no sentido em que, neste conto, as várias sequências representam o conteúdo de percursos ao vivo em relação contrapuntística com percursos rememorados. “Requiem” é, de facto, uma meditação da parte do sujeito poético sobre a própria morte. A breve vinheta associada à criança é que corresponde ao evento rememorado.
Os outros três poemas – “Esgoto”, “Longitude” e “‘Eu, que passei…’” –, são poemas-errância, ou walk-poems (“walk” na sua acepção nominativa), um subgénero lírico rubricado pelo poeta A. R. Ammons, conceito esse que foi subsequentemente desenvolvido por Roger Gilbert no seu livro Walks in the world: representation and experience in modern American poetry, onde se identificam como walk-poems e se estudam textos de Robert Frost, Wallace Stevens, William Carlos Williams, Theodor Roethke, Elizabeth Bishop, Frank O’Hara e John Ashbery. Como o seu nome indica, o poema-errância prende-se tematicamente a eventos percebidos ou rememorados durante uma caminhada, real ou imaginária, a qual geralmente é cotérmica com o próprio poema. Como é óbvio, este tipo de poema – de que há numerosos exemplos em Wordsworth e do qual “O Sentimento dum Ocidental”, de Cesário Verde, é um exemplo paradigmático –, casa-se perfeitamente com os conceitos-chave da poética seniana de errância e de testemunho. Não admira, portanto, que Jorge de Sena tenha escrito um número bastante significativo de poemas-errância que estão por estudar especificamente como exemplos desse subgénero poético. Escusado é dizer que este não é o momento para o fazer. Direi apenas que nestes três textos, obviamente concebidos por Jorge de Sena como poemas-errância, o sujeito poético é uma personagem homodiegética, isto é, figura nos poemas como “personagem” e refere-se a si próprio, embora o “papel principal” nestes mini-dramas poéticos pertençam aos indivíduos – as crianças, por exemplo –, apresentados na terceira pessoa.
“Esgoto” é um bom exemplo de poema-errância. O poema divide-se em quatro secções separadas por numerais romanos, cada uma destas secções contendo um número diferente de estrofes: a secção I, 3; a II, 2; a III, 3; e a IV, 1 estrofe. O poema desenvolve-se, tematicamente falando, em conformidade com o que poderia ter sido visto e pensado num verdadeiro percurso a pé por uma cidade: a primeira secção foca as crianças a brincar no esterco e a não-reacção do resto da cidade segundo a percepção do sujeito poético; a segunda secção, que implica uma simultaneidade espacial mas certo distanciamento temporal relativamente à primeira secção, é dedicada a uma meditação do sujeito poético, presumivelmente resultante da cena testemunhada; na terceira secção há, claramente, um movimento em sentido oposto à mis-en-scène inicial, pois o sujeito poético especificamente se refere à sua própria errância e aos eventos testemunhados: “Ergo-me aflito da miséria do mundo.” Na segunda estrofe desta terceira secção, faz-se, novamente, uma reflexão de carácter geral, baseada ainda nos acontecimentos testemunhados. A última secção, que, dada a sua separação das demais por numeral romano, não pode deixar de implicar para o leitor um distanciamento, senão geográfico ao menos temporal dos acontecimentos iniciais, constitui uma reflexão de carácter metapoético. O poema-errância – na sua inerente analogia entre o caminhar e o escrever–, é eminentemente prestável a meditações de carácter metapoético.
No poema “Longitude” – também dividido em cinco secções separadas por numerais romanos, cada uma delas com um número alternado de estrofes, excepto a última (1, 2, 1, 2, e 4, respectivamente) –, presentimos o percurso geográfico-temporal do sujeito poético ao longo do poema. Como em “Esgoto”, algumas estrofes incluem deícticos que assinalam o movimento espacial de secção para secção – “Entre os pinheiras” (I); “Esperas, encostada a uma esquina” (II); “O jardim defronte das grades da prisão” (III). Algumas secções e estrofes, porém, tal como acontece no poema “Esgoto”, são dedicadas a reflexão. Nelas, o percurso do sujeito poético é mais mental do que peripatético. Em conjunção uma com a outra, estas duas estratégias criam uma noção nítida do caminhar e do comentar/reflectir, definidores em parte do poema-errância.
No poema “‘Eu, que passei…’” a própria caminhada do sujeito poético é tematizada, não só no título do poema e na enumeração dos distintos lugares por que vai passando – “[…] a lividez da rua / tortuosa, ambígua, de altos e mesquinhos prédios, / e becos e escadas e água correndo perdida / na beira de um passeio […]” –, mas nas referências directas ao caminhar: “eu que passei, que só passei”, o qual se reitera no último verso do poema: “meus passos tristes mais um cão que foge”. Para quem conhece o conto altamente distópico “Choro de Criança” é por demais aparente a intertextualidade desses dois textos (tendo o poema sido escrito em 23/4/48 e o conto de 20 a 22 de Maio de 1962), nem faltando a referência a um caixote de lixo, a um indivíduo desalojado no vão duma porta, a um cão que, naquele conto-errância, surge no contexto do último percurso do narrador e dum jovem que encontrara na rua: “Continuaram a subir pela rua estreita, e a cada passo se desviavam de caixotes de lixo voltados, que um ou outro cão farejava desiludido.” (Grão-Capitães, 97). Notar que, como ilustra o poema “‘Eu, que passei…’”, o Poeta frequentemente recorre ao enjambement para sugerir a noção de movimento inerente ao poema-errância.
A substituição implícita do clássico e utópico locus amoenus por um distópico locus horrendus é um dos mais óbvios elementos constitutivos dos poemas em foco. Embora haja uma variedade bastante grande de elementos de texto para texto, também existem elementos recorrentes nestas paisagens geralmente urbanas. (Aliás, o livro Coroa da Terra é dedicado em parte à cidade do Porto e tem esta cidade como cenário.) Os padrões imagísticos a que o Poeta recorre traduzem um conceito abrangente e dois concomitantes resultados: o da sociedade carceral e a resultante falta de luz e o silêncio sepulcral que, como se verá, é cortado pelo choro das crianças.
Como é por demais sabido, a ideia da sociedade carceral é um dos conceitos-chave do pensamento de Foucault, um filósofo que, com Friedrich Nietzsche, Karl Marx, Sigmund Freud, Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin e os neo-marxistas Louis Althusser e Theodor Adorno,[8] contribuiu muito para o pensamento distópico (e, na caso de alguns deles, como Marx, para o pensamento utópico e distópico) do século XX. No caso de Foucault, interessa-nos, de momento, o conceito de sociedade carceral, apresentado no seu livro Discipline and punish: the birth of the prison,[9] o seu estudo sobre a prisão moderna, com base na célebre prisão Panopticon do utilitarista Jeremy Bentham. Na concepção distópica apresentada por Foucault, a sociedade moderna é, toda ela, uma prisão. Nos 7 poemas em foco, a concepção seniana da sociedade humana apresenta diversas configurações carcerais – com a diferença que, na esmagadora maioria dos casos, os seus habitantes estão para além de serem objecto de espionagem, como na prisão benthiana. São, no entanto, objecto do foco do empenhado caminhante seniano. Em Jorge de Sena, cada poema configura uma ou várias prisões concêntricas onde as vítimas são, simplesmente, votadas ao abandono, sendo a sua existência registada apenas pelo testemunho do poeta.
Embora, no que respeita à paisagem, haja elementos comuns a todos estes poemas, também é certo que a predominância de determinadas imagens nalguns deles tende a criar a impressão no leitor de subgrupos enformados por intertextualidades entre eles. Um exemplo do que acabo de dizer é constituído pelos poemas “Circunstancial”, “Esgoto”, “Longitude”, “‘Eu, que passei…’”, “Requiem” e “Viagem Extática ao Templo da Sabedoria”, sendo a maioria deles poemas que evocam, pela maior parte, paisagens urbanas e, todos eles, paisagens muitas vezes escusas e recônditas. No poema “Circunstancial”, a mis-en-scène é uma prisão ao ar livre, geograficamente localizada nos sítios mais insólitos e distanciados (“Nas dobras melancólicas da Terra”), nos mais próximos e banais (“na beira dos passeios mais restritos”), ou, recorrendo-se agora à profundidade em vez da horizontalidade, como no primeiro verso, no inacessível e ambíguo “côncavo dos lagos infinitos”. Servindo de banda a-sonora ao choro das crianças, temos o sinistro e, de poema para poema, recorrente vento: “Aumenta o silêncio contra o vento”. No poema “Esgoto” a paisagem é o “esterco da rua”. Esse esterco, como veremos ao tratar o tema da evocação da retórica fascista mencionado anteriormente, evolve no poema. Por agora, chamemos a atenção para outro elemento da mis-en-scène que enfaticamente acentua a ideia de sociedade carceral: as “paredes altas / em vão rodeadas pelas mão da morte”, clara figuração da sociedade carceral que ecoa, na terceira estrofe do mesmo poema, na “cidade, do alto, é silenciosa, / porque as vozes não passam entre os beirais tão próximos”. Não é preciso muita imaginação para ver nesta alusão à cidade, que é mais alta em relação à pocilga cercada de “paredes altas” em que estão enterradas as crianças, um encarceramento dessas mesmas crianças, com tudo o que isso comporta da estratificação social, de vidas paralelas que não se tocam.
No poema “Longitude” a referência à prisão é directa e ocorre, muito significativamente, em conjunção com “jardim”, justaposição essa a que mais adiante regressarei:
O jardim defronte das grandes da prisão
serve aos prisioneiros para lhes mostrar
o fluir das estações numa cadeia que é outra
(Poesia-I, 95)
Neste caso, e pondo de lado a subtileza ambígua que enforma alguns destes poemas em foco, o Poeta refere-se, directamente, a duas prisões: a prisão referencial do primeiro verso, e a cadeia metafórica da sociedade em geral, pois a possibilidade de ler “cadeia” no sentido de consecutividade das estações é um disfarce mais do que transparente. Em nenhum destes onze poemas em epígrafe Jorge de Sena se aproximou mais enfaticamente da evocação duma sociedade carceral.
“‘Eu, que passei…’” é outro poema de paisagem carceral urbana. O Poeta refere-se, como se viu anteriormente, à “lividez da rua / tortuosa, ambígua, de altos prédios, / e becos e escadas e água correndo perdida” – imagens, todas elas, consistentes com sinistras masmorras, só que estas masmorras localizam-se no centro da própria cidade, estando portanto em relação metonímica com a sociedade inteira, uma sociedade animalizada, como a justaposição do cão esgueirando-se duma lata de lixo entornada e dum vulto humano encolhendo-se num portal enfaticamente reforçam. No poema “Requiem”, a criança do poema é evocada no contexto duma meditação sobre a morte, de claros ressaibos unamunianos,[10] da parte do sujeito poético:
– e morrerei da morte que foi vindo
serenamente no pavor que a trouxe
todos os dias (altas horas, noites
de insónia, estradas solitárias,
apitos de comboio, cães ladrando,
uma criança dentro de casa chorando,
vidros partidos remendados a jornal,
candeeiros numa cave […]
(Poesia-I, 170)
Uma vez mais, quem está familiarizado com contos como “A Campanha da Rússia” (Andanças do Demónio), “As Ites e o Regulamento” e, sobretudo, “Choro de Criança” (Os Grão-Capitães), reconhecerá imediatamente a semelhança entre a temática e imagética destes poemas e desses contos. O próprio Jorge de Sena, claro está, foi o primeiro a apontar a comunalidade de inspiração – confessadamente derivada de experiências pessoais na cidade do Porto –, entre a alguma da poesia e alguns dos seus contos.[11] No poema “Viagem Extática ao Tempo da Sabedoria”, temos uma referência concreta a uma prisão, no contexto de uma série de imagens utópicas a que adiante regressarei:
Ouço pássaros cantando, ouço ao longe as vozes
dos presos, cujas mãos nas grades…
(Visão Perpétua, 59)
Não nos deve surpreender muito, no contexto da representação poética duma sociedade configurada em parte na prisão, que dois padrões imagísticos recorrentes nestes poemas sejam a falta de luz e o silêncio que chamei sepulcral. “Circunstancial”, “O último Dia”, “Esgoto”, “Dia de Sol”, “Cantiga de Embalar”, “‘Eu, que passei….’”, “Requiem” e “Viagem Extática ao Templo da Sabedoria” são, todos eles, poemas em que a falta de luz (ou o esmorecimento da luz) é tematizada, embora de maneiras diferentes. As “dobras melancólicas da Terra” e o “côncavo dos lagos infinitos” são cronótopos que não podem deixar de implicar a falta de luz. No poema “O último Dia”, depois duma primeira promissora estrofe de dois versos (a que mais tarde voltarei) em que “As crianças riem na varanda, riem”, o Poeta imediatamente nos bate, no primeiro verso da segunda estrofe, com “Não há Sol”, para depois fazer referência a “uma luz contínua que não entra dentro [do sítio onde estão as crianças]”. Uma insólita variação – não surpreendente, aliás, numa série de poemas distópicos em que o frequente recurso ao grotesco e ao estranhamento são técnicas compreensíveis –, encontra-se no poema “Esgoto”, numa clara implicação de que o Sol (com maiúscula uma vez mais e repetido em dois versos consecutivos) se havia, para as crianças, metamorfoseado em esterco:
como se o esterco fosse a perpetuação do Sol
qual Sol que supurasse das paredes altas
em vão rodeadas pela mão da morte.
(Poesia-I, 93)
“Dia de Sol” é, a vários títulos, um dos poemas mais inovadores desta série que estamos a discutir. No que respeita ao uso da luz, que é o que de momento nos interessa, a sua maior originalidade radica na relação oxímora que estabelece entre o título e o conteúdo dramático do resto do poema. O Dia de Sol é subtilmente minado no primeiro verso do poema – “Sob a teia de sombra dos galhos outonais”, em que tanto “sombra” como “outonal” diminuem o a/enunciado esplendor do “dia de sol” –, e completamente destruído, no plano dramático, pois trata-se, como sabemos, dum poema que descreve o funeral duma criança, uma dessas tais crianças que, para recorrer a um verso doutro poema desta série, “Glória”, “não cheg[ou] a desdobrar-se em carne viva”.
No poema “Cantiga de Embalar” temos uma outra paisagem nocturna, com importantíssimas referências à luz:
Até mim chegam indistintos halos
de luzes próximas, talheres fulgindo,
além, por sobre quintais abandonados.
No céu, sem estrelas como um fumo inútil,
[…]
(Poesia-I, 121)
Notar que, neste caso, a sugestão é que o “grito de criança” ocorre no contexto duma estrofe, a primeira do poema, em que a única referência à luz é a do seu esbater ou da sua fuga: “enquanto a noite se cerra”. Os indistintos halos, os talheres fulgindo, isto é, uma evocação de maiores confortos físicos, parece estar associado com esse mais além indicado no sintagma “por sobre quintais abandonados”, ideia essa reforçada pela referência, no último verso citado, a um céu também sem luz, sem estrelas – com tudo o que isso pode simbolizar em termos socioeconómicos (e obviamente existencialistas) no contexto deste poema.
“‘Eu, que passei…’” é outro poema da série em foco que faz um uso muito eficaz da imagem da luz. Depois da descrição da mis-en-scène em que se ouvem os “gritos de uma dor humana”, da cena do cão esgueirando-se e do homem desalojado no seu “cárcere” socioeconómico ao ar livre, o sujeito poético emerge, qual Dante peregrino do carceral Inferno, para certa claridade, acentuando assim o até aqui não mencionado negrume da cena deixada para trás: “ao fundo a claridade, imensa gente, a vida, / a que é dos outros, se adivinha, vozes / – meus passos tristes mais um cão que foge”. Os “vidros partidos remendados a jornal” do poema “Requiem”, por outro lado, não poderá deixar de trazer à mente do leitor a transparente relação intertextual com a vidraça do apartamento do narrador em “Choro de Criança”. Imediatamente depois deste verso, porém, o Poeta recorre à poderosa imagem “candeeiros numa cave” – sugerindo assim o aprisionamento da própria luz. No poema “Viagem Extática ao Templo da Sabedoria”, o sujeito poético prenuncia a referência ostensiva aos “presos, cujas mãos nas grades…” com a imagem “o sol é poalha prisioneira”.
Acima referi-me ao silêncio sepulcral. As várias imagens da prisão já aludidas, sobretudo no contexto do drama das crianças que morrem (“Dia de Sol”), e das que ainda não morreram mas morrerão aos poucos (“Esgoto”), não pode deixar de sugerir uma existência tumular. Aliás, existe uma referência específica a “túmulos perdidos no subsolo das casas”, num dos mais distópicos poemas da série em foco, “Cantiga de Embalar”. O silêncio, como é lógico também, torna mais saliente a imagem fulcral da maioria destes poemas: o choro de criança. Poemas de forte visualidade e olfactividade (os côncavos, os estercos, as latas de lixo entornadas…), não é surpreendente, portanto, que também ensaiem importantes estratégias sonoras, começando com o que acima chamei a-sonoridade. Diga-se de passagem que a analogia entre o cinema – relevando-se, neste caso, o neo-realismo no cinema italiano – e estes poemas de protesto que estamos a estudar, para não mencionar tantos outros no corpus seniano, com atenção especial aos seis primeiros livros de poesia que o Poeta publicou –, mais que compensaria o esforço crítico de quem quisesse e pudesse estudá-lo.[12]
NOTAS
1 Coroa da Terra: “Reconhecimento” (7/10/42), “Contacto” (10/10/41), “Apóstrofe à Loucura” (22/4/44),
“Soneto de Orfeu” (15/7/44), “Natal – 43” (27/12/43); As Evidências: Soneto “IX” (22/6/54); Post-Scriptum: “O
Regresso” (30/8/45); Fidelidade: “Sexta-Feira” (26/7/51); 40 Anos de Servidão: “Sobre uma Antologia Lírica do Natal
– Natal de 1969” (12/69), “‘Com que então libertos, hein….’” (2/5/74).
2 (Wesport, ConnecticuT: Greenwood Press, 1994). Futuras referências serão incluídas no texto.
3 Os Grão-Capitães: Uma Sequência de Contos, 5.a ed. (Lisboa: Edições 70, 1989), 14.
4 Apud Juan Cano Ballesta, “La utopía del ‘amanecer’ y del ‘imperio’ en la retórica falangista”, in Las estrategias de la imaginación: utopías literarias y retórica bajo el franquismo (Madrid: Siglo XXI de España Editores, 1994), 40.
5 O labirinto da saudade, 2.a ed. (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982), 30-31.
6 Portugal, o desafio nacionalista: psicologia e identidade nacionais (Lisboa: Editorial Teorema, 1985), 263.
7 Estudei mais pormenorizadamente a figura errante na ficção breve de Jorge de Sena, particularmente em
relação ao conto “Choro de Criança”. Veja-se “Ser Testemunha em ‘Choro de Criança’: Uma Arte de Caminhar nas
Ruas do Porto”, in Metamorfoses do Amor: Estudos sobre a Ficção Breve de Jorge de Sena (Lisboa: Salamandra,
1999): 183-250.
8 A contribuição básica destes escritores para o pensamento distópico e utópico no século XX é estudada por M.Keith Booker, no se já referido Dystopian literature, p 11-39.
9 (New York: Vintage, 1979).
10 Refiro-me ao poema de Unamuno “Vendrá de noche”, segundo do Cancionero del destierro, de que Jorge de Sena cita o verso “Vendrá viniendo con venir eterno”, como uma das epígrafes a Metamorfoses.
11 Veja-se, sobre este assunto, o meu já citado “Ser Testemunha em ‘Choro de Criança’” Uma Arte de Caminhar nas Ruas do Porto”, in Metamorfoses do Amor: Estudos sobre a ficção breve de Jorge de Sena.
12 A relação, em termos de analogia entre recursos cinemáticos e literários, quer na poesia, quer na ficção seniana, é um estudo que está essencialmente por fazer. Eu fiz uma tentativa, embora muito esquemática, de estudo de alguns dos recursos cinemáticos na ficção seniana, no meu ensaio “Do Amor Fraterno e do Realismo Cinemático em ‘Os Irmãos’” no meu livro já citado, Metamorfoses do Amor: Estudos sobre a ficção breve de Jorge de Sena, 251-288.