Sabemos que Jorge de Sena é um autor polifacetado. Ele não só praticou diferentes registros escritos (poesia, ficção, teatro, ensaio, tradução), como também exercitou diversos gêneros poéticos, dentre os quais se destaca o soneto. Neste artigo, Paulo Pereira se debruça sobre um desses gêneros de poesia, o haicai, analisando as traduções de Bashô, incluídas no volume 2 de Poesia de 26 séculos, assim como os haicais autorais, presentes em 40 anos de servidão e Visão perpétua.
Paulo Pereira
Universidade de Aveiro, Portugal
1 Pseudo-haicais?
Num breve ensaio intitulado «Os haikais de Jorge de Sena», Paulo Franchetti[1] – sem duvida um dos especialistas que, no Brasil, mais demorada e fecunda atenção crítica tem dedicado a esta forma clássica japonesa e à sua irradiação em várias poéticas contemporâneas –, depois de determinar os limites do diálogo que, nos planos tradutório e lírico, o autor de Metamorfoses estabeleceu com a tradição do haicai, dá conta de uma perplexidade para a qual confessa não conseguir encontrar resposta cabal:
Jorge de Sena sem dúvida conheceu bem o haikai clássico. Introduziu 20 deles, de Bashô, no seu Poesia de 26 séculos. Por isso, a questão que se coloca ao ler os poemas de sua autoria por ele denominados haikais não é essa, e sim o que o poeta desejou fazer ou conseguiu fazer ao convocar o nome e o espírito da forma.
A questão não tem resposta simples. Tecnicamente, poucos desses poemas, se lidos isoladamente do conjunto e da denominação, seriam considerados haikais. Talvez um, talvez nenhum. (Franchetti 2013)
É desta bizarra dissonância entre o ‘saber’, que Sena – poeta ostensivamente litteratus – não podia deixar de deter sobre a tradição e as leis compositivas do micropoema japonês, e o ‘fazer’ estranhamente desviante ou mesmo incompetente de um Sena-poeta, criador de pseudo-haicais falhados, que parte este ensaio. Nele se procurará, num primeiro momento, precisar os contornos dessa revisitação pontual que, no opulento mare magnum poético que nos legou, Sena empreende da tradição do haicai,[2] para, de seguida, averiguar a apropriação idiossincrática desse molde formal e expressivo, ilustrada pelos textos que o próprio poeta compõe à maneira de haicais. Porque, com efeito, como observa ainda Franchetti (2013), se bem que resolutamente arrumados, por um «gesto soberano» do autor, no género do haicai, os poemas de Sena «não parecem pertencer a ele».
2 Sena e a tradição do haicai
O diálogo crítico e criativo de Jorge de Sena estabeleceu com a poesia japonesa foi, na realidade, fortuito. Ainda assim, como a circunstância de o autor ter composto poemas que expressamente classifica como haicais bem demonstra, esse convívio não ficou, como foi já afirmado, «circunscrito à atividade tradutória» (Teixeira 2014, 40).[3] Não restam, contudo, dúvidas de que o trabalho de tradução dos vinte poemas de Bashô, que Sena inclui no segundo volume da sua monumental antologia Poesia de 26 séculos (de Bashô a Nietzsche), dada à estampa em 1972, terá, em larga medida, sido responsável pela sua aproximação ao universo e gramática poéticos do haicai, tendo-se visto confrontado com o desafio de verter textos do mais emblemático cultor do género, compostos numa língua que não dominava.[4] Na breve, mas incisiva, nota biográfico-crítica de que faz acompanhar as traduções de Bashô,[5] observa Sena:
A poesia de Bashô é capaz de uma concentração extraordinária; capaz de, nos estreitos limites do haicai, incluir toda a gama da sensibilidade humana, num estilo que se não abandona nunca à sentimentalidade, e é de uma capacidade descritiva admirável, com por vezes uma aguda e muito realística ironia. (1972, 131)
Mesmo se lacónico, o julgamento de Sena é revelador da sua habitual penetração hermenêutica e certeiro na determinação da atitude poética e do quid tonal que singularizam o haicai: economia expressiva e contenção epigramática, semântica expansiva, antirretoricismo, ocultação do sujeito, preterição do pathos. As restantes anotações, que se encarregam de dilucidar questões de índole métrico-versificatória, não deixam de amplamente confirmar a suposição de se encontrar Sena perfeitamente familiarizado com o repertório temático e a oficina compositiva do haicai japonês. Longe de ser surpreendente, esse conhecimento é mais do que previsível num poeta que, como é o seu caso, foi também um scholar detentor de uma vastíssima cultura literária, alimentada de enciclopédica voracidade.
Duas vias terão plausivelmente contribuído para que Sena se acercasse das tradições poéticas extremo-orientais e, em particular, do lirismo miniatural do haicai. Por um lado, os imagistas norte-americanos e, na qualidade de sua figura tutelar, Ezra Pound irão adotar, na senda das poéticas chinesa e japonesa, o culto da dicção concentrada e da justaposição metafórica – silenciosa, mas semanticamente sobredeterminada – de imagens díspares, aliviando o poema de qualquer excrescência ornamental ou explicativa. Com efeito, se «el haiku respondía perfectamente a las pretensiones de objetividad, lenguaje coloquial, y plenitud sugerente de los imaginistas» (Rodríguez-Izquierdo 1994, 193), Pound converteu-se, na justa formulação de Paulo Franchetti, no «inventor da poesia japonesa» para o nosso tempo (Franchetti, Doi, Dantas 2012, 47). Explorando, na sequência da leitura do estudo The Chinese Written Character as a Medium for Poetry, do orientalista Ernest Fenollosa,[6] as virtualidades poético-icónicas da composição ideogramática,[7] o autor dos Cantos irá acentuar a essencial afinidade destas com as postulações estéticas defendidas pelos imagistas. Ora, a consabida erudição anglófila de Sena fazia dele um natural conhecedor da tradição imagista. Em 1974, dá à estampa, no Diário de Notícias, um artigo precisamente intitulado «Imagismo», onde procede a uma «apresentação geral do movimento», texto que virá a ser republicado, quatro anos mais tarde, como anexo ao volume Poesia do século XX, porquanto, como aí se explica, «o termo ‘imagismo’, como ‘imagista’, tem sido aplicado indevidamente por alguma crítica portuguesa» (Sena 2001, 71). Numa nota sobre Pound, inserida no volume A Literatura Inglesa, não hesitará, além disso, em sustentar que, apesar da sua exigente opacidade, os
Cantos se contam, de pleno direito, entre «as realizações literárias mais ambiciosas no nosso século» (Sena 1989, 413).
São, por outro lado, conhecidas as relações, a um tempo cúmplices e críticas, que o poeta de Metamorfoses manteve com os concretistas brasileiros, também estes seduzidos, por influência do magistério de Fenollosa a que terão acesso por interposto Pound, pela escrita ideogramática.[8] Confirmando o convívio do autor com os círculos concretistas, os seus iconoclastas Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena virão originalmente a lume, em 1962, na revista concretista Invenção e, nesse mesmo ano, Sena não se absterá de endereçar ao grupo concretista uma «sátira amigável» (Sena 1989, 250), em forma de poema. Em «Noções de Linguística», posteriormente incluído em Peregrinatio ad loca infecta (1969), Sena contesta, em registo derrisório, a linhagem poundiana de que os concretistas se reclamavam herdeiros, especificamente no que dizia respeito à conceção ideogramática do trabalho poético. Vale a pena transcrever a nota explicativa que Sena adiciona ao seu poema:
Este poema parte do facto de o ideograma chinês para palavra significar figurativamente «fumo da boca»; e era uma sátira amigável ao Concretismo que, através de Ezra Pound, considera a criação ideogramática como uma das suas bases formais. Pound, por sua vez, foi influenciado nas suas ideias teóricas e práticas pelo ensaio The Chinese Written Character as a Medium for Poetry, de Ernest Fenollosa, primeiro publicado em 1920 […] e que os sinólogos têm considerado como uma extrapolação imprópria dos reais valores fonéticos e semânticos da escrita tradicional japonesa. (Sena 1989, 250)[9]
Seja como for, o orientalismo modernista do imagismo de Pound e dos concretistas, e, mais particularmente, o ascendente que sobre ambos os movimentos exerceu a poética minimalista do haicai, não escapou decerto a Sena e, mesmo em medida que é difícil apurar, não pode ter deixado de instigar criativamente tanto o tradutor como o poeta.
3 Sena, tradaptador de Bashô
Mesmo desconhecendo o critério a partir do qual Sena terá fixado o elenco de vinte haicais de Bashô que seleciona para figurar na antologia Poesia de 26 séculos, não parece improvável que, doublé em tradutor, o poeta tenha sobretudo ponderado quer o estatuto arquetípico dos textos – como acontece com o impreterível haicai da rã que, por prestígio metonímico, alcançou a condição de verdadeiro arquitexto fundador do género –, quer a sua diversidade retórico-modal, permitindo ao tradutor-adaptador – ou ao tradaptador, para retomar um sugestivo neologismo cunhado por Patrick Le Nestour (2013, 35-54) – ilustrar a estrutura flexuosa e a semântica reverberante do haicai. Por outro lado, agudamente consciente das propriedades formalizantes que definem o género, Sena dá conta, em nota às traduções, da medida do seu zelo métrico-versificatório:[10]
O haicai é, na sua forma clássica, um poema de três versos, respectivamente de 5-7-5 sílabas. Outras variações, de ordem daqueles números de sílabas, ou de transformação de um dos valores no outro, eram permitidas. Nas traduções, respeitamos rigorosamente o número de sílabas que Bashô usa em cada verso (não contando, como se deve na metrificação portuguesa, as sílabas depois da última tónica) dos seus haicais. (Sena 1972, 131-2)
Os vinte haicais de Bashô que integram a seleção de Sena são suficientemente expressivos do pluriestilismo e da ductilidade poético-idiomática da forma, que pode oscilar entre o sketch descritivo e o instantâneo naturalista («Não ver tinha graça | O Fuji-Yama escondido | na névoa da chuva»), o apontamento narrativo circunstancial, devolvido com impassibilidade quase fotográfica («Um gato maltês | pela racha na lareira | foi ter com a amada»), o símile de ressonâncias animistas («Qual velha sem dentes | a cerejeira sem folhas | juvenil floresce») ou a associação inesperada e cifradamente simbólica de referentes codificados pela tradição («Mal pensas na morte | que cedo espreita: as cigarras| cantam no arvoredo»).
Dispondo, como é de regra, os versos em tercetos e sinalizando as cesuras (kireji)[11] presentes na frase poética japonesa original através de pontuação gráfica («Quebrando o silêncio | do charco antigo a rã salta | n’água – ressoar fundo»; «Amigos, adeus: tal como os gansos selvagens | perdidos nas nuvens»), Sena opta por uma restituição tendencialmente literalista dos haicais de Bashô, dispensando a intromissão de qualquer glosa ou adenda explicativa.
Por ser o haicai tão excêntrico à tradição poética ocidental – como o seria, por exemplo, um soneto para um leitor japonês (Albert 2001, 14) –, Sena submete os textos de Bashô a espécie de dupla tradução, em função da qual procede tanto ao seu transvase interlinguístico, como à aclimatação da sua mundivisão lírica.[12] A hiperidentidade estilística do tradutor-poeta não deixa, deste modo, de insinuar-se, com discrição variável, nas escolhas idioletais denunciadas pelas suas versões. Assim, por exemplo, a especial predileção do autor pela torção sintática – expressa na distintiva assiduidade com que o hipérbato ou a sínquese vêm transtornar, na frase poética seniana, a ordem convencional – torna-se evidente em haicais como os seguintes:
Para ver o que dá
de lavar gosto o pó do mundo
nas gotas de orvalho. (1972, 12)[13]
Alta brilha a lua
enquanto o verme escondido
A castanha roi. (1972, 12)
Noutros casos, a ingerência autoexpressiva do sujeito no poema, a hierarquização temporal ou causativa dos fenómenos observados ou a tentação efabulatória acusam o trabalho criativo de Sena, que não hesita em adaptar estilisticamente os textos, mesmo com prejuízo da depuração elíptica e da consubstancial abertura semântica que tornam inconfundível a dicção do haicai:
Quebrando o silêncio
do charco antigo a rã salta
n’água – ressoar fundo. (1972, 11)[14]
Fiquei aterrado
ouvindo um grilo cantar
dentro do elmo antigo (1972, 13)[15]
Como lembram Record e Abdulla,
haiku is often thought of as ‘circular’, ‘open-ended’, ‘timeless’. It is not thought of as a kind of progression through material, nor a kind of argument, which is often what underlies the rhymed couplets and quatrains of Western poetry. (2016, 182)[16]
Sena nem sempre parece disso estar consciente, projetando nos textos uma teleologia narrativa ou uma densidade gnómica totalmente estranhas ao género, neles inscrevendo uma (involuntária?) senha de identidade estilística, que os haicais que ele próprio irá compor não deixarão de confirmar.
4 Sena, cultor do haicai
Na obra poética de Sena, contam-se dez textos pelo autor expressamente designados como ‘Hai-Kais’: uma sequência de nove integra a coletânea 40 Anos de Servidão (1979), acrescentando-se-lhe, no volume Visão Perpétua (1982), apenas um texto assim denominado. Todos foram compostos na mesma data – 11-12 de janeiro de 1974 –, deixando perceber que, longe de constituírem prática de escrita regular, os haicais de Sena foram exercício de estilo irrepetível, circunscrito a dois «dias triunfais» sem sequência. Mais do que a sua natureza espúria, será talvez importante salientar que o tempo de escrita destes ensaios haicaístas dista em apenas dois anos da data de publicação das traduções de Bashô que o autor inclui na antologia Poesia de 26 séculos, autorizando a conjetura de que a necessidade de verter os poemas japoneses para português não terá deixado de induzir Sena à recriação de um formato poético que bem conhecia e, como antes se disse, confessadamente admirava.
Ora, como notou Paulo Franchetti, no breve estudo já citado que dedicou aos haicais de Sena, uma vez lidos os dez textos assim expressamente classificados pelo poeta, o leitor não pode deixar de se sentir algo desconcertado. Não só, como salienta ainda o mesmo ensaísta, em virtude de neles não se adotar a disposição «ocidental» dos versos em tercetos, com alternância de heptassílabos e pentassílabos (apresentando-se, antes, como dísticos e, num único caso, como uma quadra), «mas principalmente porque a quase todos falta a objetividade despojada que identificamos como essencial para a definição do gênero» (Franchetti 2013). Parece, pois, incontestável que, como justamente deduz Franchetti, «ao vincular tais textos ao gênero haikai, então, o poeta buscava outra coisa». Falta, pois, descobrir
o que ela seja.
Muito pouco, à partida, parece aproximar a poiesis seniana da geometria tensa e disciplinada do haicai. Propendendo para o discursivismo palavroso e congeminante, o lirismo de Sena é atravessado por uma compulsão indagativa que frontalmente se opõe a essa espécie de epoché da razão analítica e à pura contemplação desinteressada pressupostas pelo momento-haicai. As atitudes de constante assombro perante o mundo fenoménico e de captação do instantâneo natural que, no género japonês, precedem a notação lírica, não encontram correspondência sensível na poesia de Sena, o que, aliás, seria de esperar num autor que admite que «a natureza [me] interessa se os seres humanos ou marcas humanas estão nela. De outro modo, não estou interessado nada na natureza» (Sena 2013, 441).[17] No plano retórico, a tendência dilatória do verso seniano, que se espraia em incisos e circunlóquios, não podia encontrar-se mais distante da modéstia nominativa e da miniloquência faux-naïf do haicai.[18]
No polo oposto, contudo, é indesmentível que Sena não deixou de se sentir especialmente desafiado pelos constrangimentos temáticos ou compositivos de formas poéticas fixas ou hipercodificadas, regra geral acompanhadas de uma coerciva tradição preceptística. Entre estas, contam-se naturalmente os inúmeros géneros líricos, de ascendência clássica ou medieval, que, com assiduidade e escrúpulo mimético diversos, o autor não deixou de cultivar. As formas poéticas da cantiga e da balada, do madrigal e do vilancete, da ode e do epigrama, da elegia e do soneto – e o inventário está longe de ser exaustivo – encontram-se todas amplamente representadas na obra poética de Sena, em composições cujos títulos, de tipo explicitamente remático, não deixam dúvidas sobre a intenção taxinómica do autor e a filiação genológica dos textos, numa sedução evidente pelo exercício do pastiche culto que, no seu caso, parece sempre ter entendido como instigante repto criativo.
Quando instado a esclarecer, em entrevista, as razões da escolha, em As Evidências (1955), da forma canónica do soneto, sustenta Sena:
não penso que haja uma diferença tão grande entre a forma fixa e a forma livre da poesia, desde que em ambos os casos se trate realmente de poesia. A liberdade também pode consistir nisto, em escolher, se se quiser, uma forma fixa como modo de expressão. (2013, 270)
Esta liberdade constrangida foi já, ainda a propósito do soneto, muito justamente salientada por Fernando J.B. Martinho, para quem
a aceitação da disciplina do soneto por Sena […] não implica uma sua sacralização, e consequentemente […] uma subordinação aos esquemas da cultura de que a ordem do soneto seria um reflexo, antes muitas vezes significa precisamente uma forma de minar o sistema e, assim, dessacralizá-lo por dentro. (Martinho 2017a, 43)
Estas palavras poderiam, sem alteração de monta, ser usadas para descrever a atitude ambivalente com que Sena se acerca da forma do haicai: se, por um lado, insiste, através de um deliberado gesto de titulação, em reivindicar para os seus textos a linhagem do género clássico japonês, em que, de resto, só muito livremente se inspira (respeitando, quase exclusivamente, a concisão epigramática que é sua marca distintiva), por outro, ignora sobranceiramente das suas leis estrófico-versificatórias e quase todas as convenções que lhe conferem reconhecível identidade poética, como o kigo, a marca lexical alusiva à estação do ano, à semelhança do que acontece no texto a seguir reproduzido:
Para encontrar-se o acaso
Ai quanto caminhar! (1989b, 140)
Como já sublinhou Franchetti, é precisamente o seu teor puramente abstrato, desprovido de qualquer vestígio referencial ou informante espaciotemporal instanciador, que afasta este texto do haicai, aproximando-o bastante mais da agudeza lapidar do paradoxo ou da concisão sapiencial da máxima filosófica. Na realidade, a flagrante confinidade dos haicais senianos com outros formatos poéticos breves ou brevíssimos explica que quase nada permita distingui-los, por exemplo, dos abundantes dísticos e epigramas que encontramos na restante obra poética do autor e de que abaixo se apresentam, a título exemplificativo, alguns exemplos:
De que tristeza me farei liberto,
se a liberdade me atraiçoa em tudo? (1989a, 121)
Imaculada – branca –
– silenciosas – triste –
– quem me garante é treva onde não haja luz? (1989a, 122)
O sol nasce nas folhas de altos ramos
hialina cor que à delas escurece. (1989c, 140)
Assim, se, no âmbito das multímodas relações de natureza transtextual ilustradas pela poesia de Sena, os haicais podem, em parte, integrar-se, como propõe Fernando J.B. Martinho, na categoria dos textos «à maneira de», por serem «feitos em obediência à concentração expressiva que as convenções do género exigem» (2017b, 71-2), a simples observância da brevidade não é, em qualquer caso, suficiente para nos fazer esquecer o atrito semântico e o desacerto formal que afastam modelo e decalque.
Regressemos, pois, aos pseudo-haicais de Sena para lembrar que, em alguns deles, a intromissão destoante do tema erótico – proscrito no haicai clássico, por dever ser antes relegado para outros géneros poéticos, como o senryu ou o tanka – se compagina nitidamente com «um dos ângulos mais salientes da poesia seniana» (Carlos 1999, 167), numa demonstração clara do processo de ressemantização autocêntrica a que o autor submete o género, modelando-o à contraluz da sua própria poética:
Roupa que se abre e cai:
surpresa; ou muito ou pouco. (1989b, 140)[19]
No escuro cresce o amor
que só nocturno se ama. (1989b, 140)
Que Sena reinventa o haicai à sua imagem e semelhança, convertendo-o em molde formalizante com função autoexpressiva, parece-me indesmentível. Não surpreende, portanto, que, ao contrário da ocultação do sujeito cognoscente e sentiente, preceituada pela poética impessoal do haicai, a subjetividade do eu lírico se inscreva, com destoante despudor narcísico, no plano da enunciação:
Tem chovido bastante: insuportável tempo.
Na noite do quintal, o sapo canta. (1989b, 140)
Conversam como ao longe
não comigo.
Se comigo falavam
cansar-me-iam. (1989b, 140)
Se, no primeiro poema, como já observou Paulo Franchetti, a «notação subjetiva», comunicada pelo adjetivo de evidente coloração emocional «insuportável», inviabiliza a desejável dissolução do eu na captação do instante, no segundo, torna-se, por seu turno, conspícua a participação afetivo-cogitativa do sujeito observador. Esta polarização narcísica do enunciado, mais comprometido com a experiência pessoal e intransmissível do eu poético do que com a observação do mundo fenoménico, afasta nitidamente a sensibilidade destes textos do amor por todas as coisas criadas de que se alimenta o haiku clássico.
A natureza obliquamente autorreflexiva de alguns haicais de Sena, distanciando-os embora dessa arte «não intelectual, sempre concreta e antiliterária» (Paz 1996, 163) do género clássico, não deixa de aproximá-los do «meta-haiku», de que Catarina Nunes de Almeida encontrou abundantes exemplos na poesia portuguesa contemporânea. Em rigor, não se trata, nos exemplares senianos do género, de refletir «sobre a sua [do haicai] própria construção e natureza», mas nem por isso eles deixam de poder ser lidos como «artes poéticas microscópicas», como as que se encontram condensadas nos dois textos seguintes:
Sentado, escreve e lembra
imagens que não viu. (1989b, 141)
Um pássaro canta: não tem voz
que só cantar dos outros ele imita. (1989c, 192)
Tematizando o encontro dialético entre memória e invenção que catalisa o trabalho lírico, o primeiro dístico inscreve-se na profusa reflexão de Sena em torno da fenomenologia da criação. No segundo, a inclinação metapoética, embora menos pronunciada, permite nele reconhecer uma reflexão veladamente satírica, desferida contra o mimetismo servil e o psitacismo reverencial de alguns dos seus pares poéticos.
Ficamos, assim, reduzidos a um haicai, aquele que Franchetti considera manter mais convincente parentesco com o género matricial:
O mar se alonga ao longe tão sereno,
no temporal, há pouco, era mais curto. (1989b, 140)
Uma vez tornado evidente o processo de misreading criativo que Sena empreende da tradição do haicai, compreende-se que seja vã a tentativa de, nos seus textos, encontrarmos uma realização modelar do género poético de que se apropriou sem, contudo, nunca verdadeiramente ambicionar replicá-lo. Num processo que evoca a ‘haikaização’ que Raymond Queneau praticou sobre os poemas de Mallarmé (Chevrier 1998, 112-26), poderia bem afirmar-se que Sena haikaíza a poesia do próprio Sena.
5 «Um ritmo a três compassos, mais do que regras tensas»
Numa crónica recente, publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias, o escritor Gonçalo M. Tavares descreve, nos seguintes termos, aquele que apresenta como o seu «projeto»:
Eis o projeto: escrever haikus, não direcionados para a natureza como dita a tradição; virados sim para a técnica e para a História, para o mal, para a guerra e para o gesto simples ou decisivo.
Um ritmo a três compassos, mais do que regras tensas. (Tavares 2020)
Com os devidos descontos e adições, não foi, anos antes, também este o projeto de Sena?
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NOTAS
1 O estudo (disponível em http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/antologias/traducao/jorge-de-sena-e-os-haika/), originalmente publicado no sítio Ler Jorge de Sena, da UFRJ, foi posteriormente reproduzido no blogue mantido pelo autor (http://paulofranchetti.blogspot.com/2013/04/jorge-de-sena-e-o-haikai.html). Tanto quanto me foi possível apurar, o texto não foi, até ao momento, objeto de republicação em volume.
2 Opto, neste texto, por empregar o termo ‘haicai’ para designar o micropoema japonês, por ser esse o que Jorge de Sena elege também para classificar os poemas de que aqui me ocupo, acrescendo a essa razão a circunstância de o presente ensaio ter sido escrito para integrar um volume a ser publicado no Brasil, onde é essa a designação mais corrente. Estou, contudo, consciente de que, designadamente na tradição crítica portuguesa, ele é, regra geral, substituído pelo de haiku. Como é sabido, a denominação haiku foi, em meados do século XIX, introduzida pelo poeta japonês Masaoka Shiki, para descrever o hokku, isto é, a estrofe inicial do haicai no renga, entretanto desagregada do poema encadeado coletivo de que originalmente era parte integrante. Sobre esta flutuação terminológica, nota José António Gomes que «se em geral os brasileiros preferem utilizar haicai (ou hai-kai ou haikai) em vez de haiku, em Portugal tem-se recorrido aos dois termos, embora o segundo seja talvez mais frequente. A razão por que
alguns cultores e críticos de língua portuguesa preferem usar o nome haicai não terá propriamente a ver com rigor terminológico e científico; a meu ver, prende-se antes com as associações semânticas cómicas que a segunda sílaba de haiku amiúde suscita na mente dos que ouvem a palavra pela primeira vez» (Gomes 2015, 236).
3 Em post-scriptum à sua tese de doutoramento, Claudio Teixeira esclarece que, embora tencione comentar as traduções dos haicais de Bashô apresentadas por Sena na antologia Poesia de 26 séculos, «não dedicará um capítulo específico à obra do memorável poeta, tradutor e ensaísta português por considerarmos que o seu diálogo com a poesia japonesa foi ocasional e circunscrito à atividade tradutória» (Teixeira 2014, 40).
4 Justificando a representatividade mais expressiva da poesia europeia na antologia, Sena admite que os «poemas orientais [lhe] ofereciam maiores dificuldades de entendimento linguístico» (Sena 1971, 22).
5 Através destas notas, ambicionava o antologiador, como refere na «Introdução à Primeira Parte», incluída no primeiro volume da antologia, vindo a lume em 1971, facultar «para o grande público amador de poesia, uma visão coerente e coordenada (iluminada por informações históricas pertinentes), que todavia será também sensível na sucessão dos poetas e poemas traduzidos, e postos por ordem cronológica e não por literaturas, para acentuar-se a universalidade da poesia por sobre a estreiteza das histórias literárias nacionais ou dos especialistas de uma língua só» (Sena 1971, 21).
6 «Ezra Pound toma contacto com a poesia do Japão e da China através de um conjunto de notas e traduções de Fenollosa ainda por editar, que a viúva do autor lhe entrega em mão pouco após a sua morte em Londres, no ano de 1908 (deste conjunto faria parte o estudo publicado mais tarde por Pound com o título The Chinese Written Character as a Medium for Poetry)» (Almeida 2012, 29).
7 Como explica Discroll, «Fenollosa’s emphasis on the concreteness of expression supposedly built into the style of Chinese written characters is claimed to have contributed to the development by Pound of the ‘ideogramic method’. This method juxtaposes images in English poetry in pattern that mimic the way Chinese characters supposedly form their meaning from juxtaposing visual patterns representing concrete things» (apud Almeida 2012, 29).
8 Como lembra Paulo Franchetti, «o interesse da Poesia Concreta pelo haicai tem, como realizações principais, a publicação por Haroldo de Campos de dois artigos no jornal O Estado de S. Paulo, em 1958 e 1964: “Haicai: homenagem à síntese” e “Visualidade e concisão na poesia japonesa”. Esses artigos […] traziam, além da exposição das idéias de Pound e da importância do haicai para a sua constituição, comentários ao texto de Sergei Eisenstein sobre a montagem (Film form, 1929) e exemplos de tradução de haicais clássicos japoneses, de acordo com as idéias de Fenollosa e Pound sobre o ideograma» (Franchetti 2008, 263-4).
9 Idêntica impugnação da paternidade poundiana reivindicada pelos concretistas será apresentada por Sena na «notícia biográfico-crítica» que, sobre o poeta dos Cantos, redige para o volume Poesia do século XX: «Os concretistas brasileiros, que fizeram muito para popularizar Pound no Brasil, apresentaram-no como antecipação do Concretismo, que Pound não é: o caos dos Cantos de Pound é uma sintaxe extremamente organizada que não depende da visão gráfica para o efeito e inteligibilidade do poema, e tudo nele, ou muito, é calculado ou acumulado numa apaixonada fúria que, em grande parte, depende, principalmente, da erudição que entenda todos os nexos implícitos» (2001, 441). Como bem observa Fernando J.B. Martinho, «por mais ‘amigável’ que fosse a sátira feita ao Concretismo no poema de Peregrinatio, o caso é que a nota crítico-bibliográfica redigida para Poesia do Século XX nos permite concluir que Sena discordava dos concretistas brasileiros quando apresentavam Pound como a antecipação das suas propostas» (2007, 148).
10 Diga-se, de passagem, que o escrúpulo na restituição da métrica original dos poemas de Bashô defendido, neste passo, por Sena não é consensualmente subscrito pelos tradutores do género poético japonês, até porque «la métrica de la poesía japonesa se basa en un sistema moraico más que en un sistema silábico, por ello, resulta erróneo afirmar que el haiku se constituye de sílabas» (Hernández Esquivel 2012, 76). Sobre as dificuldades levantadas por estas particularidades fonológicas e prosódicas do japonês para o tradutor do haicai, cf. Record, Abdulla 2016, 173-4.
11 Explica R.H. Blyth que «kireji are a kind of poetical punctuation, or the marks piano, forte, cresc., con sordino, in music, by which the composer of the haiku expresses, or hints at, or emphasizes his mood and soul-state» (apud Albert 2001, 16).
12 Como, revisitando a tese da intraduzibilidade do haicai, bem observa Sándor Albert: «le haïku japonais né d’une inspiration philosophique (zen) et ayant des connotations bouddhistes est aussi lointain de la culture poétique européenne que le sonnet est étranger à un lecteur japonais. Les traducteurs doivent donc ‘traduire’ le haïku non seulement dans leur propre langue maternelle, mais aussi l’adapter à leur propre poésie» (2001, 14).
13 Confronte-se a versão de Sena com as que apresentam respetivamente Joaquim M. Palma (2016) e David Landis Barnhill (2004): «escorrem as gotas de orvalho | na esperança de lavar | a sujidade do mundo» (Bashô 2016, 295); «uma minhoca ao luar | perfura uma castanha – segredo nocturno» (83); «dew trickles down: in it I would try to wash away the dust of the floating world» (Bashô 2004, 44); «at night, stealthily, | a worm in the moonlight | boring into a chestnut» (25).
14 «salta a rã | para dentro do velho tanque – plof!» (Bashô 2016, 85); «old pond! | frog jump-in | water’s sound» (Bashô 2004, 99).
15 «um grilo | debaixo do elmo – | música aprisionada» (Bashô 2016, 189); «so pitiful – | under the helmet, | a cricket» (Bashô 2004, 99).
16 A esta diferença de lógica compositiva se poderá atribuir «un certain dédain de la part de quelques Occidentaux pour cette forme poétique: elle ignorerait le développement discursif ainsi que l’épaisseur allégorique qui confère à toutes choses naturelles ou humaines d’autres possibilités de sens, dimension somme toute cultivée par la tradition métaphysique ou théologique occidentale à laquelle la culture extrême-orientale devait rester étrangère» (Marukawa 2018, 180).
17 Por ser assim, esperar-se-ia que, no repertório de géneros poéticos japoneses, Sena preferisse ao haiku o senryu, até pelo caráter satírico, humorístico ou mesmo obsceno de muitos dos textos que nele se integram. Como explica Catarina Nunes de Almeida, «em termos genéricos, o haiku privilegia a presença da natureza, o que o torna indissociável das referências sazonais; ao passo que o senryu privilegia sobretudo a natureza humana e os seus cambiantes, sem trazer para a composição as estações, e podendo usufruir, do ponto de vista estilístico, dos mais diversos ‘artifícios’ (incluindo a metáfora, a personificação e o símile)» (2012, 114). Observa ainda a mesma autora que «quando regressamos aos poetas ocidentais cultores do haiku, entendemos de imediato que, no fundo, estamos perante uma amálgama destes dois géneros ou, se preferirmos, uma oscilação mais ou menos casual de preceitos (115).
18 Como observa Stephen Reckert, «a contracção da sintaxe pela eliminação de conexões lógicas, que obriga e poeta a confiar na capacidade do leitor para extrapolar intuitivamente a linha do pensamento sem que este seja explicitado, é mais um método habitualmente adoptado pelo haiku para significar mais do que aquilo que diz» (1995, 14).
19 Confirmando essa mesma dinâmica ressignificante da forma poética do haicai – que, desse modo, passa acolher linhas temáticas coesivas da restante poesia de Sena, com destaque para a questão erótica–, são de salientar as evidentes semelhanças deste dístico com o poema «Despir alguém», de Conheço o sal… e outros poemas (1974): «Despir alguém peça por peça? Não. | Antes apenas mal despir abrindo | entradas e saídas para o corpo, | ou ver despir-se alguém rapidamente, | perto de nós a desnudar-se inteira | a carne sempre tímida e discreta.| | Num caso, as mãos, e noutro os olhos, | são quem primeiro rende o que entrevisto | assim se toca ou não se toca nada. | Ardor nas duas vezes mas diverso: | e quanto se possui numa ansiedade | diversamente queima o sempre igual| | amor de uma nudez que amor descobre» (Sena 1989a, 216).
FONTE: PEREIRA, Paulo. “O haijin acidental: Jorge de Sena e a poética do haicai”. In. Rassegna iberistica, v.45, nº 118, dez. 2022. p.295-310.