Um monumento ao amor quotidiano

Começando por ressaltar a pouco privilegiada produção epistolográfica em Portugal, nesta recente crônica Vasco Graça Moura comenta a correspondência trocada entre Jorge e Mécia durante o período do exílio brasileiro, compilada e editada por nossa colaboradora Otília Lage.  Encantado com o modo como estas cartas são capazes de  “surpreender o quotidiano complicado em que ambos se encontram”, conclui categórico: “podemos classificar este livro como um dos momentos mais altos da epistolografia portuguesa”.
 

JS-MS no Brasil
Jorge, Mécia e Adolfo Casais Monteiro numa exposição no Recife, agosto de 1960.

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Há perto de 50 anos, num livro pioneiro e luminoso, Anrée Crabbé Rocha lançou as bases essenciais para o estudo de um género literário pouco procurado e cultivado entre nós. Refiro-me ao seu livro A Epistolografia em Portugal (Almedina, 1965, IN-CM, 1985), que é um dos marcos decisivos da nossa história da literatura.

A variedade de peças recolhidas, apresentadas e comentadas dá bem para se ver o manancial de textos, uns com pretensão a literários, outros simplesmente “informais”, que existe nessa parte do nosso património literário. Não me deterei neles, que vão das cartas ao rei fazendo a reportagem de determinados acontecimentos ou dando-lhe conselhos, até às tão célebres quanto pouco interessantes cartas de amor de Pessoa (embora, noutras áreas, este autor tenha uma correspondência importante para a sua época), passando por textos da mais variada índole, entre eles a correspondência de Óscar Lopes com António José Saraiva.

O que me interessa é o aparecimento em livro de cartas de amor, como as de António José Saraiva, ou as belíssimas cartas de António Lobo Antunes para sua mulher, organizada pelas filhas do casal, D”este viver aqui neste papel descripto – Cartas da guerra (D. Quixote, 2005), situações em que problemas, emergências e sentimentos do quotidiano (ausência, saudade…) se manifestam com especial qualidade literária.

Mas, mais do que esses documentos, interessam, a meu ver, as edições em “espelho”, ou em diálogo, em que a correspondência provém dos dois lados: o destinatário da carta responde a esta e obtém nova resposta.

É o caso de um livro que acaba de me chegar às mãos e que acho fascinante. Refiro-me à Correspondência – Jorge de Sena e Mécia de Sena “Vita Nuova” (Brasil 1959-1965), editado pelo CITICEM /FCT e pela Afrontamento em 2013.

O livro começa com a ida de Jorge de Sena ao Brasil, a fim de participar na delegação “não oficial”, a convite do Governo daquele país, no IV Congresso Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, em Salvador da Bahia, de 10 a 12 de Agosto de 1959. Para Jorge de Sena, esse curto espaço de tempo iria transformar-se em 16 anos…

E o que é extraordinário é a frequência da troca de cartas entre marido e mulher, a minúcia das informações, a pertinência dos comentários, o retrato em duas linhas de alguma personalidade. Tratava-se de uma época em que o Brasil estava heio de intelectuais portugueses, uns exilados, outros que iam e vinham. E é durante essa estada que surgem convites a Jorge de Sena para ficar por lá.

Os simples problemas domésticos, a maneira como o casal, cada um de seu lado do Atlântico os enfrenta, as diligências junto de editores, as traduções e originais de que têm de se ocupar, as doenças dos filhos, a falta crónica de dinheiro, as demoras da correspondência, as decisões sobre quais dos filhos hão-de acompanhar a mãe na primeira viagem, os encontros e desencontros, os problemas da docência, das conferências, das viagens daqui para ali, a mudança de universidade, o andamento dos trabalhos de investigação, tudo isso e muito mais permite surpreender o quotidiano complicado em que ambos se encontram e a maneira como vão tentando dar-lhe solução. É um prodigioso microcosmo de actividades tão coordenadas quanto possível de duas vidas quotidianas que resulta da troca das cartas que prossegue, sem afrouxar, do princípio ao fim, umas vezes enviadas pelo correio, outras confiadas a amigos.

Mas o que me parece fundamental, para além do testemunho e da documentação pertinente a essa época tão rica da história intelectual dos dois países – e, note-se, percebe-se facilmente que estas cartas não foram escritas com o intuito de serem publicadas, pelo que podemos tomá-las como absolutamente sinceras – o que me parece fundamental é a história de amor que documentam. Jorge e Mécia têm uma maneira de falar do amor que os une da maneira mais surpreendente e mais frequente. Não há carta em que um ou mais parágrafos não exprimam toda a gama de sentimentos amorosos, da saudade intensa ao desejo, sem rodeios sem timidez, sem invocações do transcendente, antes como simples e fortíssima pulsão humana. O real, a vida prática, o pragmatismo das situações atravessadas, entrelaçam-se assim com um monumento ao amor entre dois seres humanos que o vivem em cada momento das suas vidas, apesar de tantas léguas e tanto tempo posto a conseguir enfim atravessá-las.

Se o exílio de Jorge de Sena, iniciado no Brasil por 16 anos e rematado por mais 13 anos não tivesse servido para mais nada, se a sua obra torrencial não constituísse um legado incomparável para as gerações futuras, bastaria esta troca de cartas para podermos classificar este livro como um dos momentos mais altos da epistolografia portuguesa.

 

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Lisboa, 16.04.2014