A única novela escrita por Jorge de Sena faz 50 anos e, embora já conte com apreciável fortuna crítica, permanece intrigante, a desafiar percursos de leitura.
A “Pequena nota introdutória a uma reedição isolada” que Jorge de Sena acrescentou ao texto da novela O Físico prodigioso em 1977 contém uma frase surpreendente, até inquietante: “Pouco do que eu alguma vez escrevi é tão autobiográfico como esta mais fantástica das minhas criações totalmente imaginadas”[1]. Em que sentido seria autobiográfico O Físico prodigioso? Que pontos comuns é possível encontrar entre a história do médico errante no tempo e no espaço duma vaga Idade Média e a vida real do seu autor, viajante também, mas num outro tempo e outro espaço? O Físico da novela opera milagres banhando donzelas e donas de fraca saúde em baldes do seu próprio sangre. Quem o concebeu não foi médico, mas sim, por educação recebida, um engenheiro, e mais tarde, durante o seu exílio no Brasil e nos Estados Unidos, um professor universitário de literatura portuguesa, poeta, crítico e ensaísta académico de grande prestígio. Os destinos imaginário e real até se distanciam um do outro, se considerarmos que o Físico se tornara vítima de persecução, o que a Sena felizmente foi poupado graças à sua condição de exilado [2]. Ainda mais difícil de interpretar em termos autobiográficos é o desenlace da intriga. O Físico funde-se, no fim da sua errância terrestre, com a sua dama. O casal humano transformado na cova num único ser dá origem a uma planta, milagrosa roseira brava, cujos ramos escorrem secreções masculina e feminina, o sangue e o leite.
É evidente que as semelhanças diretas entre a vida do autor e as andanças do Físico não existem. O denominador comum deve situar-se num outro plano. A solução do enigma da narrativa que propomos é a seguinte: trata-se duma autobiografia alegórica do Sena-artista, cuja chave reside na duplicidade andrógina do criador. O Físico é a figura do próprio Sena enquanto poeta, que, para criar, tem necessariamente de ser duplo, unindo os poderes criativos de ambos os sexos. Esta leitura do Físico prodigioso permite estabelecer pontos de contacto com muitas outras partes da extensa obra do escritor, em que a problemática da identidade genérica (gender) aparece como um dos aspetos fulcrais. A identidade masculina heterossexual é problematizada na figura do Minotauro que reaparece constantemente na obra poética de Sena. O Minotauro que encarna, de certa forma, a masculinidade absoluta, torna-se num desflorador de virgens animalizado e teratológico. A dimensão homossexual, que reaparecerá em Sinais de fogo, ocupa um lugar importante na intriga do Físico prodigioso, já que é em consequência duma relação carnal como o Diabo sodomita que o médico recebe o dom de obrar curas milagrosas por via do seu sangue. No entanto, esse encontro furtivo não parece ser, para o Físico, o cumprimento duma união carnal mais desejada. Onde reside então a forma mais completa e harmoniosa de realizar a potencialidade do ser humano que nasce como um ser dotado de sexo? Segundo a nossa hipótese, nem na realização heterossexual, nem na homossexual, mas sim numa superação da condição sexuada. Na nossa leitura, a mensagem de Jorge de Sena vai no sentido de transcender tanto a sexualidade biológica, como a identidade genérica imposta pela cultura, construindo uma forma de androginia associada pelo escritor à plenitude dos poderes criativos.
Como é óbvio, fora de alguns raros casos anómalos, um ser humano nasce seja como um homem, seja como uma mulher. A distinção biológica é em seguida aprofundada e reelaborada pela cultura, que indica a cada individuo papeis sociais distintos em função da identidade sexual recebida à nascença. O movimento queer, cuja intenção é a de relativizar esta polarização genérica imposta pela cultura (gender binarism) é, na sua formulação definitiva, bastante posterior [3] à escrita do Físico prodigioso, finalizada em 1964. A novela poderia portanto ser tomada por um precedente literário duma corrente cultural emergente, ainda por definir no momento em que Sena escrevia. Ao mesmo tempo, o texto reflete bem os interesses eruditos da época, em que a questão de androginia, descoberta e explorada tanto na história de ideias, etnologia, como no âmbito de estudos comparativos das religiões, começou a ganhar visibilidade. Talvez não seja por acaso que a feitura
do Físico prodigioso coincide com a publicação do livro mais importante de Mircea Eliade sobre este assunto, Méphistophélès et l’androgyne (1962). Em Eliade, a figura andrógina vem a ser associada, basicamente, à noção da plenitude dos poderes mágicos. O estudioso romeno elucidou, ao nível do que ele chamava o estádio “pre-sistemático” do pensamento, a lógica imaginária segundo a qual o andrógino resume os poderes de ambos os sexos. A condição andrógina podia ser “vivida” no trance do xamã, aspeto já apresentado num outro dos estudos Eliadianos clássicos, Le chamanisme et les techniques archaïques de l’extase (1950). No entanto, na tradição de cultura ocidental em que Jorge de Sena se sentia tão fortemente enraizado, a figura do andrógino também podia ser associada à lucidez e sabedoria supra-humanas. O sonho de transcender o condicionamento sexuado do homem é bem enraizado na antiguidade greco-romana, associado desta vez com os mistérios da criatividade artística. Assim, é na perspetiva da androginia que se deveriam interpretar as representações de Orfeu enquanto mulher [4]. A mudança do sexo revela-se uma condição de alcançar uma visão aprofundada da condição humana no caso de Tirésias. Como comenta Jiménez, “o adivinho deve ser andrógino para que a sua visão alcance a dualidade profunda de todas as coisas” [5]. A androginia é também associada aos primórdios da humanidade. Como é sabido, Banquete (189d-e), Platão reflete a crença, sem dúvida muito mais antiga, em que o homem originalmente fora um ser andrógino. A sua condição sexuada apareceria como resultado duma malograda intervenção divina que condenou o homem sexuado à eterna saudade dessa condição primordial. Assim, é pela androginia perdida que se explica a origem do amor. O outro motivo crucial do Físico prodigioso, a identificação do homem com a planta, também tem raízes na antiguidade grega. Como escreve Zolla, “no frenesim dionisíaco, o devoto identificava-se com cada aspeto da natureza, fazendo-se similar a uma planta hermafrodita, capaz tanto de florescer e dar fruto, como ciclicamente dar e receber a semente da vida” [6]. Na interpretação clássica de Karl Kerényi, um dos pontos culminantes dos mistérios em Eleusis fora a visão da Koré enquanto “virgem divina” presente no interior do homem [7].
No entanto, nas “Notas” acrescentadas ao texto do Físico prodigioso, não é nessa direção que o próprio escritor parece apontar. A noção da androginia não foi invocada nem revelada; o autor indicou outras pistas. No contexto da civilização ocidental cristã, o grande modelo paradigmático do Físico tentado pelo Demónio é o próprio Cristo. Sena chama a atenção do leitor para os intertextos de carácter religioso, patentes na base da sua narrativa. O exemplum tomado do Horto do Esposo, obra anónima nascida no ambiente do Mosteiro de Alcobaça entre os finais do séc. XIV e os inícios do séc. XV, fala dum médico que cura todas as doenças com o seu sangue, escondendo, evidentemente, a imagem de Cristo. Esta alusão cristológica permanece como elemento fulcral do significado do Físico prodigioso, mesmo se a noção do amor divino é transformada na do amor humano e carnal [8]. No entanto, a teia das relações intertextuais estabelecidas é muito mais densa, sobretudo no que diz respeito à literatura medieval e renascentista portuguesa. Assim, como o autor esclarece nas “Notas”, um dos poemas intercalados na narrativa, que começa com as palavras “O meu doce amigo”, retoma a “primeira estrofe de um belíssimo poema do poeta e prosador devoto, quinhentista e esquecido dos compêndios, Jorge da Silva. O poema é referente à Ascensão de Cristo e faz parte do quase perdido Tratado da Criação do Mundo, e dos Mistérios da Nossa Redenção, primeiro impresso em 1552” [9]. Não é de estranhar que os estudos críticos dedicados à novela seguiram prontamente as pistas deixadas pelo escritor. Não escapou à atenção da crítica a presença das cantigas de amigo de Martim Codax e Estevam Coelho e doutros intertextos medievais [10]. Mas por outro lado, foram também evidenciadas fontes modernas. Mike Harland associou a feitura da novela com a paixão do escritor pelo cinema, também na sua vertente popular, indicando, como uma hipotética fonte, o filme inglês The Thief of Baghdad, produzido por Alexander Korda em 1940 [11]
Mike Harland deixa também uma outra sugestão interpretativa importante, nomeadamente a de ler o espólio literário de Sena à luz dos seus escritos enquanto autor académico. A atividade de Sena como crítico, teórico e historiador da literatura revela as suas atitudes perante os condicionamentos básicos da escrita literária e aponta para os temas e motivos que lhe foram caros. Por isso, para delinear corretamente as ideias de Sena, é necessário estabelecer pontos de intersecção entre a “criação crítica” deste escritor estudioso da literatura e do passado cultural, e a criação literária propriamente dita, transformada num veículo privilegiado do que Jorge Fazenda Lourenço chamou “uma visão de mundo integradora de tudo” [12]. No entanto, na medida em que vamos na direção das inspirações eruditas, aparece o perigo de perder de vista a dimensão autobiográfica que tomámos como o ponto de partida. Mas não deve ser assim. A leitura dos textos críticos do Sena académico esclarece de que maneira o escritor conceptualizava a relação entre a vida e a obra literária, questão que suscita tantas polémicas entre os estudiosos. Para entendermos em que medida O Físico prodigioso pode ser entendido como uma espécie de autobiografia alegórica é útil saber como o próprio Sena via a relação entre a vida e a obra no caso dos outros. É também curioso ver como atribuía a mesma condição andrógina aos outros, sobre tudo a Fernando Pessoa. Como um argumento de partida, indicando que Jorge de Sena vislumbrava a tal necessidade de ser duplo para ser poeta, tomemos o seu ensaio sobre Pessoa, O Poeta é um fingidor que indiretamente indica que tipo de preocupações intelectuais Sena tenha tido no período que precede a feitura do Físico prodigioso [13].
No texto sobre Pessoa, Sena toma por ponto de partida os versos de Nietzsche:
Der Dichter, der lügen kann wissentlich, willentlich, der kann allein Wahrheit reden.
Ele próprio traduz:
O poeta capaz de mentir conscientemente, voluntariamente só ele é capaz de dizer a Verdade [14]
A seguir, o estudioso elucida os seus pontos de vista básicos, abrindo a perspetiva duma “verdade” do criador escondida debaixo da sua condição humana sexuada, que não passa portanto dum qualidade acidental, recebida à nascença. Resta revelar um outro ser, mais profundo: “A verdade em poesia, aquela verdade não perturbada pelos fatores ocasionais, e aquela verdade que é visão, resultarão da elisão da antinomia ‘verdadeiro-falso’, elisão essa que irá processar-se através de um ultrapassagem do em-si do poeta, ao qual tradicionalmente se identificava a essência da poesia que o poeta materializava, existenciava objetivamente. Isto mesmo, à sua maneira, realizou Fernando Pessoa” [15]. E isso mesmo, à sua maneira, realizou Jorge de Sena no Físico prodigioso, revelando a Verdade sobre si próprio enquanto artista, verdade depurada das circunstâncias, ultrapassando o “em-si” da sua própria biografia por via do “fingimento” que há-se ser entendido como a tal elisão da antinomia “verdadeiro-falso”.
Portanto, no seu ensaio sobre Fernando Pessoa tomado como figura de criador paradigmático, Sena deixa algumas pistas que tanto elucidam a obra pessoana, quanto a sua própria. Sena fala de Pessoa porque pressente nele um génio parente seu: “um pensamento dual, em conexão transcendente com o dualismo esotérico da divindade” [16]. Ao mesmo tempo evoca Nietzsche – o Nietzsche dual de A Origem da Tragédia e da oposição complementar do apolíneo e do dionisíaco, “cuja distinção se fundamentará […] na relação vital com o principium individuationis, do qual ‘Apolo pode ser considerado como a gloriosa imagem divina’, enquanto Diónisos surgirá do ‘vero colapso’ daquele princípio” [17]. E ainda, evocando Kierkegaard, Sena fala da “impotência demoníaca” da confissão “que é a de todos aqueles que […] libertaram em si o demónio, ou melhor, dissociaram na imagem divina o bem e o mal que nela integrados não têm sentido” [18]. O Físico é assim mesmo, duplamente duplo, dissociando-se no feminino e no demónio, seu amante.
Na teia das referências cruzadas construida por Sena aparece ainda Albert Béguin com um estudo que já então se tinha tornado clássico, em que fala dos deuses andróginos da “iniciação órfica”: “o Zeus ao mesmo tempo masculino e ‘virgem imortal’ dos hinos; o Fanés arsenotelus (macho e fêmea) que é a primeira criatura saída do Ovo original e que, de modo muito significativo, se assimila ao Eros que preside aos amores dos deuses e ao coito dos elementos; ou ainda o Diónisos ‘de dupla natureza’[…]” [19]. A ideia de androginia divina, como nos lembra Sena, encontra continuação, no mundo romano, num “Júpiter macho, emitindo o esperma, e fêmea, recebendoo”. Finalmente, a tradição desagua na Cristandade primitiva: “Cristãos heterodoxos das primeiras épocas celebram ainda nos seus hinos um Deus ‘pai e mãe, macho e fêmea, raiz do cosmos, centro do que é, esperma de todas as coisas’”. Há ainda o prolongamento na tradição esotérica e na alquimia, nos “místicos da Renascença”, no Romantismo e finalmente, em Fernando Pessoa, no Antinous.
A figura do Físico, jovem, casto e belo, aparenta-se à imagem pessoana de Antínoo, divino éfebo da tradição e arte grega, a imagem da “Criança Primordial” – a “Eterna Criança, o deus que faltava” do poema 8.o do Guardador de Rebanhos, que se metamorfoseia, no imaginário português, na figura do casto D. Sebastião. O herói de Sena, em contacto constante com o princípio feminino, conserva a sua virgindade bem paradoxal. As curas milagrosas operam-se através do
sangue, elemento que podia ser facilmente confundido com o fluxo menstrual. No entanto, por uma troca simbólica, o corpo de D. Urraca escorre água. O Físico, pelo contrário, oferece o seu sangue assimilável ao princípio masculino, fecundador. Na interpretação de Ana Sofia Laranjinha, a cura milagrosa funciona como uma inversão do ato sexual: “é D. Urraca que penetra no sangue do Físico, contido numa celha, recipiente redondo como um ventre feminino” [20]. Deste modo, o Físico torna-se numa inversão da figura do Minotauro, também tão típica para o universo poético de Sena. Enquanto o Minotauro encarna a masculinidade expansiva, desfloradora e afinal destrutiva, a masculinidade invertida do Físico opera milagres, não só ao benefício dos outros, como em primeiro lugar em benefício próprio do Físico que, por via de abnegação, oferecendo-se a si mesmo, alcança uma forma superior da existência, mesmo se no plano prático o seu dom cause eternos problemas com “os guardas, o bispo, os teólogos, os inquisidores, os físicos” [21].
É prodigiosa a agilidade com que Sena desvenda, aparentemente sem os desvendar, os mistérios da sua própria obra. Falando dum outro, fornece-nos pedaços do “puzzle” que ele próprio é, formando assim um campo de auto-intertextualidade onde esclarece com um ensaio uma narrativa e com o alheio a sua própria obra, realizando a “confusão crítica”, crítica enquanto “confusão dos espíritos”, “necessária à destruição das falsas seguranças ou das convicções pretensas” [22]. Aliás muito no rasto do que Pessoa fazia, Sena joga com a inteligência do leitor, deixando nos seus escritos alguns sinais dispersos que apontam para os significados ocultos da sua própria obra. O ensaio de Sena pretende “ver com outros olhos o que, na Autopsicografia, está e o que não está” [23]. Ao mesmo tempo, fornece-nos as chaves da “autopsicografia” do Sena-artista que é O Físico prodigioso.
Isabel Allegro de Magalhães reafirma que “sincréticas são as fontes de Jorge de Sena, como ele próprio tem o cuidado de mencionar: muitas histórias e mitos, lendas e tradições confluem para este texto que é, afinal, uma grande ‘cantiga de citações” [24]. O Físico prodigioso é uma obra que se inscreve num contexto tão rico que podia ser tomada por uma lenga-lenga de erudição, composta no ensejo de impressionar o leitor. No entanto, acentuando o seu carácter autobiográfico, Jorge de Sena talvez tenha tentado chamar a nossa atenção ao sentido vital da literatura, que a tal “cantiga de citações” nunca se reduz. A tradição literária, mesmo se composta por obras que se fazem eco umas às outras, não constitui um sistema a parte, incomunicante em relação à vida. Antes pelo contrário, a literatura deve ser entendida como um repertório de soluções para os problemas essenciais da condição humana. A questão: que farei com a minha sexualidade? pertence a este conjunto. O escritor não quer permanecer ao nível do jogo intertextual, mas sim oferecer um exemplo garantido pela referência à sua própria vida. O que pretende dar ao leitor é uma síntese existencial que presenta a vida humana como um caminho do ser sexuado em direção à androginia. Mesmo se esta condição ideal permanece, tal um horizonte, fora do alcance imediato do homem, realiza-se plenamente post mortem, como uma sobrevivência da obra, tal uma roseira brava, nascida dum esforço de auto-superação.
A androginia, tanto ao nível do motivo literário, como no de postura a adotar perante
o facto da sexualidade como que cada um de nós é confrontado, permanece atual tanto no contexto moderno, como pós-moderno. A vontade de transgredir todos os condicionamentos básicos para se tornar não só o outro, como todos os outros já foi clara em Fernando Pessoa – Álvaro de Campos na sua aspiração de “sentir tudo de todas as maneiras” [25]. Essa mesma vontade de aproveitar todas as possibilidades que o mundo e a vida oferece não é alheia ao homem pós-moderno. Segundo José Jiménez, “o velho sonho da unidade, da androginia, retorna na flexibilização dos papeis sexuais, tão característico da nossa cultura. […] Entre o “homem” e a “mulher” não há, na atualidade, um corte simbólico forte, preciso, assim como o houve em outras épocas da nossa tradição cultural. Isto se espelha não só na importantíssima modificação que experimentam as condutas sexuais, como também numa profunda transformação dos valores e sentidos das nossas vidas” [26]. Estas mudanças podiam ser, e de facto são encaradas por alguns como um prelúdio duma catástrofe moral. A diluição das fronteiras, até tão básicas como a entre o feminino e o masculino, causa uma profunda inquietação dos tradicionalistas. Tanto mais importante é relembrar a lição de Jorge de Sena sobre o valor positivo da transgressão genérica. Exacerbando a sua identidade sexual, o homem vai na direção do Minotauro, abdica da plenitude humana para se aproximar ao animal. Diluindo-a, vai na direção da harmonia original, da sua verdadeira natureza e da sua semelhança primordial com a instância criadora. É enquanto andrógino que o homem é simile Dei.
É de notar que a associação entre a hipotética condição andrógina e a plenitude original do homem funciona também no contexto cristão. A hipótese de o homem ser originalmente criado enquanto andrógino (a separação dos sexos acontecendo posteriormente a este ato de criação primitivo) aparece em Gregório de Nissa. Mais tarde, a ideia de que, sendo a coincidentia oppositorum a definição menos imperfeita de Deus, o homem criado à imagem divina tinha de ser andrógino, reaparecera em Nicolau de Cusa e nos textos herméticos renascentistas. No entanto, a androginia imaginada como a condição primordial da humanidade permanece fora do alcance do homem que concebe a sua existência como um estado de falência e de quebra da perfeição original. O reestabelecimento desta perfeição perdida pode no entanto ser proposta como uma meta. O homem sexuado talvez possa tornar-se andrógino ao fim dum caminho de aperfeiçoamento progressivo ao longo da sua existência terrestre. Talvez o amor seja a via mística capaz de conduzir o homem a este fim absoluto; talvez o amor não é mais do que uma máscara da criação artística. Pela arte, o homem seria capaz de transcender as limitações inatas da existência sexuada. O Físico, salvador invisível, é um novo Cristo, sujeito às tentações do Demónio, sacrificado na provação não da cruz, mas da prisão, uma forma mais moderna, mas equivalente, da tortura e humilhação dos tempos romanos. O novo Cristo, – e ao mesmo tempo o novo Orfeu, artista divino –, é-nos revelado nas suas esposálias místicas com a Sophia, divina sabedoria. Esta união que não implica a perda da virgindade faz-nos pensar na vírgem-martir dos primeiros séculos da Cristandade, Santa Catarina. Esta jovem de inteligência invulgar que se oferece em núpcias místicas ao próprio Cristo recusa as propostas do Imperador e é decapitada. Do pescoço cortado milagrosamente escorre leite. Similarmente, no Físico Prodigioso, esse leite escorre, não menos milagrosamente, cada vez que alguém quebre um ramo da roseira andrógina.
Em guisa de conclusão, convém repetir e sublinhar que a ideia de androginia em Jorge de Sena, um fio de ouro que se deixa vislumbrar nas densas telas intertextuais que caracterizam o escritor universitário, não se reduz nem à uma erudição entendida como um fim em si, nem à uma acumulação desmesurada de citações. Antes pelo contrário, o estudo da tradição adquire um sentido vivencial, facto ao que o escritor chama a atenção, apresentando o seu texto enquanto um suposto escrito autobiográfico. Tanto o trabalho literário, como a investigação académica transformam-se numa busca pessoal; o que está em jogo é o sentido mais íntimo da vida e do corpo. É a busca duma solução para o problema que a sexualidade coloca em frente do homem enquanto ser biológico que trespassa a sua biologia. O sexual que é entendido por Jorge de Sena “năo como ‘indecente’ e ‘impuro’ ou ‘pecaminoso’, mas como o ‘secreto’, o ‘iniciático’, o ‘orgiástico’, o ‘sagrado’ ou ‘natural’” [27]. No meio do universo fantástico do Físico prodigioso, Jorge de Sena transmite a sua lição do corpo, apontando para uma inteligência que reside nele, e não numa instância qualquer, definida pela oposição ao corpo.
A dimensão erótica permanece perduravelmente inscrita na roseira milagrosa que cresce na tomba dos amantes. É justamente a razão pela qual forças adversas se esforcem para a erradicar:
Eram rosas enormes, redondas, rosadas, cujo perfume entontecia. Era um perfume estranho, não bem de rosa: não… um perfume de… Frei Antão atirou-se à planta e tentou arrancá-la. Apenas quebrou um galho, de cuja quebra escorriam dois fios líquidos. Um, de resina esbranquiçada; outro, de uma seiva vermelha [28].
As forças contrárias a este erotismo sagrado são ao mesmo tempo forças contrárias à liberdade, fontes profundas dos despotismos e dos sistemas opressores aos quais Sena se opunha durante toda a vida. O erotismo é aqui entendido, na esteira de Georges Bataille, como uma chave das atitudes soberanas, a forma mais autêntica da autonomia do homem. Ao mesmo tempo, é um erotismo “virgem” que nada tem que ver com uma realização instintiva, puramente fisiológica da vocação sexual do ser humano, mas antes pelo contrário, é constituído pela superação da fisiologia humana numa condição andrógina, biologicamente impossível ou, pelo menos, improvável.
Na já citada “Pequena nota introdutória” que acompanha a primeira edição isolada do Físico Prodigioso, o escritor afirma ainda que o texto é uma “epopeia em prosa”. A tal dimensão épica, à primeira vista difícil de encontrar na narrativa fantástica que se diria mais um passatempo ou uma coisa miúda, está ali ao mesmo tempo escondida e patente. No seu significado profundo, O Físico prodigioso é uma gesta heroica dum artista em que o poder do amor, nas suas diversas realizações altas e baixas, tanto bem como mal sucedidas, permite de transgredir as fronteiras da condição humana. É uma epopeia em que Sena, talvez numa desmesurada falta de modéstia que caracteriza os artistas ou num gesto de provocação, coloca a si mesmo na posição do campeão dum erotismo transformador e libertador.
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NOTAS:
[1] J. de Sena, O Físico prodigioso, Lisboa, Edições 70, 1977, p. 7-12. A novela foi originalmente publicada em 1966 na coletânea Novas Andanças do Demónio.
[2] É de notar que as causas diretas que estavam por detrás da decisão de auto-exiliar-se, em 1959, são pouco claras. Uma tentativa revolucionária abortada em Março de 1959 fez com que Jorge de Sena, assim como outros intelectuais, podia sentir-se ameaçado de prisão iminente. No entanto, julga-se também que não foi um conflito aberto com as instâncias políticas do Salazarismo, mas antes a pequenez, a mediocridade e a mesquinhez do meios literários e intelectuais portugueses que fizeram Jorge de Sena emigrar. Seja como for, em Agosto de 1959, Sena aproveitou a ocasião de ser invitado pela Universidade da Bahia a participar no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros para ficar no Brasil, iniciando um dos períodos mais frutuosos na sua criação literária. Em 1964, a instalação da ditadura militar nesse país fez com que aceitou a proposta de ensinar a literatura portuguesa na Universidade de Wisconsin. A situação de Jorge de Sena exilado, até à sua morte em 1978, foi sempre a de um professor universitário, criando condições muito mais propícias para o trabalho literário e crítico do que as de que Sena alguma vez beneficiara em Portugal.
[3] O termo queer entrou no uso generalizado só nos anos 90., quando progressivamente perdeu a sua carga pejorativa e foi aceite como uma denominação das diversas práticas que se afastavam da heteronormatividade sem pretender no entanto formar novas “normatividades”. Assim o termo queer passou a conotar uma busca livre duma expressão pessoal e individualizada da identidade genérica. Nesta asserção, o termo queer entrou de pleno direito no âmbito dos estudos literários e culturais. A área dos estudos queer, seja estudos de diversidade sexual (sexual diversity studies), foi fundada por Eve Kosofsky Sedgwick e outros pesquisadores ativos maioritariamente nos Estados Unidos.
[4] Cf. É. Zolla, The Androgyne. Reconciliation of male and female, London, Thames and Hudson, 1981, p. 18.
[5] J. Jiménez, Cuerpo y tiempo. La imagen de la metamorfosis, Barcelona, Destino, 1993, p. 90, (trad. E.£.).
[6] É. Zolla, The Androgyne, op. cit., p. 5, (trad. E.£.).
[7] K. Kerényi, Eleusis. Arquetipal image of mother and daughter, New York, Pantheon Books, 1967, p. 174.
[8] Nas conclusões de Cota Fagundes, as noções de reinterpretação, tradução e até parodia são usadas para delimitar as fronteiras do procedimento intertextual de Jorge de Sena que, na opinião do crítico, tentou reinterpretar e parodiar esta alegoria, substituindo o seu sentido figurativo por um sentido literal, e traduzindo o amor divino em termos totalmente eróticos”; cf. F. Cota Fagundes, “O artista com um malho: uma leitura d’O Físico Prodigioso”, em: Studies on Jorge de Sena, ed. de Harvey L. Sharrer e Frederick G. Williams, Santa Barbara, Bandanna Books, 1981, p.135.
[9] J. de Sena, O Físico…, op. cit., p. 133.
[10] Cf. P. A. Pereira, „Tradição e reescrita em O Físico Prodigioso de Jorge de Sena”, comunicação no quadro do VI Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Rio de Janeiro, 1999; <http://www2.dlc.ua.pt/classicos/reescrita.pdf> 15 de Dezembro de 2012.
[11] M. Harland, „Jorge de Sena on Cinema: some further insights into the genesis of O Fisico Prodigioso?”, Portuguese Studies, XX, 2004, pp. 169-185.
[12] J. Fazenda Lourenço, O Brilho dos Sinais. Estudos sobre Jorge de Sena, Porto, Caixotim, 2002, p. 17.
[13] Cf. J. de Sena, O Poeta é um fingidor, Lisboa, Edições Ática, 1961, pp. 21-60. O ensaio no qual Sena analisa a dimensão andrógina do Pessoa-fingidor contém a data da sua criação (1959), pelo que é anterior à versão definitiva de O Físico prodigioso, que ostenta, como data e lugar de nascimento, Araraquara, Maio de 1964.
[14] Ibid., p. 22. O fragmento citado aparece originalmente no espólio nietzscheano datado do ano 1884: Die Bösen liebend, Gedichte und Gedichtefragmente – Herbst 1884 (28 [20]); cf. numa edição eletrónica: The Nietzsche Channel, <http:// www.thenietzschechannel.com/notebooks/german/nachd/nachd28.htm> 15 de Dezembro de 2012.
[15] J. de Sena, O Poeta…, op. cit., p. 24.
[19] A. Béguin, “L’Androgyne”, Minotaure , XI, 1938, pp. 10-13; citado em português por J. de Sena, O Poeta…, op. cit., pp. 38-40.
[20] A. S. Laranjinha, „O eterno retorno em O Físico prodigioso, de Jorge de Sena”, Intercâmbio, IV, 1993, p. 237.
[21] J. de Sena, O Físico prodigioso, op. cit., p. 37.
[22] J. de Sena, O Poeta…, op. cit., p. 8.
[24] I. Allegro de Magalhães, “O Físico Prodigioso de Jorge de Sena -uma nova ordem da rebeldia?”, em: O Sexo dos Textos, Lisboa, Caminho, 1995, pp. 161-169.
[25] Na Passagem das horas: „Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados, / Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, / Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos / Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo”; F. Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos, ed. de António Quadros, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1990, p. 192.
[26] J. Jiménez, Cuerpo y tiempo, op. cit, p. 274.
[27] J. de Sena, “Amor”, em: Amor e outros verbetes, Lisboa, Ediçőes 70, 1992, p.37.
[28] J. de Sena, O Físico…, op. cit., p. 109-110.
[*] Professora Associada da Faculdade “Artes Liberales” da Universidade de Varsóvia. Ensaísta em Literatura Comparada, Estudos Culturais e áreas afins, autora dos livros: A tentação no deserto. Nomadismo como forma de sair da crise da modernidade nos escritos de José Saramago (2005), Território do mundo. Configurações imaginativas de espaço na Literatura Portuguesa do final da Idade Média até o presente (2003), Prosa contemporânea portuguesa (1939-1999). Tópicos, problemas, obsessões (2000).
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