Carlos de Oliveira e Jorge de Sena: Paisagens de rigor e testemunho

Da seção “Seniana” da revista Metamorfoses, esta aproximação entre dois dos grandes nomes da Literatura Portuguesa do Séc. XX, empreendida por uma das grandes leitoras de poesia da universidade brasileira.

 

picasso

Já de início aviso que este artigo é uma impossibilidade. Convocar, no limite de poucas páginas, esses dois nomes maiores da poesia portuguesa do século XX,  em busca de suas paisagens de rigor e testemunho, é certamente um gesto de desmedida. Mas, ao  pensar em REPÚBLICA [1], na expressão latina RES  PUBLICA – coisa do ou para o povo, e na sua relação com as Letras, aciono imediatamente no meu album de leituras esses poetas, dois homens de palavra(s) [2], que nos deixaram, cada um a seu modo, obras exemplares do compromisso do escritor com seu tempo e com o mundo. São dois nomes fortíssimos da literatura portuguesa moderna e contemporânea, com obras que comprovam indubitavelmente seus lugares de observação da existência e a atenção com as coisas de todos nós, ou melhor dizendo, com a realidade que nos cabe viver e compreender. Ambos já falecidos, Sena em 1978 e Oliveira em 1981, deixaram em seus escritos a marca indelével de uma ética, de um humanismo, que é de justiça lembrar.

Vidas literárias que se desenrolaram ao longo de quatro décadas ˗ ambos começaram a publicar em livro no ano de 1942 ˗, muito deveria ser explicado se  o objetivo fosse  apresentá-los aos leitores brasileiros que os desconhecessem. Mas, como não é, entro no assunto como, em Os Lusíadas, a viagem de Vasco da Gama, em média res, considerando o que já se produziu de melhor ensaisticamente sobre esses dois escritores, nomes referenciais da cultura literária portuguesa.

Folheio  páginas fundamentais desses dois poetas: de Sena, o prefácio (datado de 27/03/1960, no Brasil) da primeira edição de Poesia I  e o seu pos-facio a Metamorfoses (datado de 1963) em Poesia II . De Oliveira, O aprendiz de feiticeiro (1a.ed. de 1971), para além de seus livros de poesia reunidos em Obras [3] (1992). Nesses livros, encontra-se isso que nomeio de paisagens de rigor e testemunho, pois lá se desenvolvem  reflexões e afirmações as quais comprovam estarmos diante de dois escritores comprometidos com a História, com seu tempo, compromissados com a escrita enquanto ação no mundo, forma de oposição a tudo que desgasta valores, impede a liberdade de ser e agir, nega a dignidade humana e sua memória. Souberam ambos aliar estética e ética de maneira exemplar para seus pares e seus leitores. Duas personalidades diversas, com diferentes experiências de escrita, eles bem podem dialogar na partilha da mesma utopia que tiveram: a literatura. Os dois preocuparam-se com a existência humana num mundo degradado, marcado intensa e continuamente por formas diversas de violência, de opressão e de silenciamento. Frente a essa certeza, os trabalhos poéticos de ambos (ou deveria dizer: todo o conjunto de suas obras) firmaram sua atenção no questionamento da História (individual e coletiva), indagando seus sentidos, buscando, nos silêncios, nas rasuras, nos descentramentos, espaços de resistência e de questionamento, de metamorfoses, frente ao tempo, à morte, ao vazio. Realizaram fortemente o que Octavio Paz,  em O arco e a lira (1982, p. 225-226), discutiu sobre a relação entre Poesia e Historia: “O poema não teria sentido – nem sequer existência – sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta. […] O poema é sempre presente – o poeta escapa à sucessão e à história, [mas isso] liga-o mais inexoravelmente à história. […] O poeta consagra sempre uma experiência histórica, que pode ser pessoal, social ou ambas a coisas ao mesmo tempo.”

Jorge de Sena, no já referido prefácio de 1960,  bem conhecido  pelo confronto que faz entre a poética do fingimento e a do testemunho[4],  ainda que considere as razões necessárias do projeto pessoano, defende o  comprometimento do escritor  com a realidade do mundo. Considero importante repetir o que o escritor diz do testemunho para compressão de sua perspectiva estética:

 

Como um processo testemunhal sempre entendi a poesia cuja melhor arte consistirá em dar expressão ao que o mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, não apenas de outros mundos simultânea e idealmente possíveis, mas principalmente, de outros que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que o sejam de facto. Testemunhar do que, em nós e através de nós, se transforma, e por isso ser capaz de compreender tudo, de reconhecer a função positiva ou negativa (mas função) de tudo, e de sofrer na consciência ou nos afectos tudo, recusando ao mesmo tempo as disciplinas em que outros serão mais eficientes, os convívios em que alguns serão mais pródigos, ou o isolamento de que muitos serão mais ciosos – eis o que foi, e é, para mim, a poesia. (1988: 25-26)

 

Também no post-fácio (1963) a Metamorfoses, Sena aponta ao longo do texto como Arte e História se entrelaçam. Defende a “comovente historicidade da natureza humana” (1988a: 152), pois “a História tem de estar presente na compreensão da própria e pessoal humanidade com a qual lhe é dado compreender a dos outros”(idem, p.156), já que “toda poesia é uma meditação moral. Sem dúvida que o não é (ou não deve sê-lo) num sentido normativo; mas indubitavelmente o é num sentido escatológico, de inquirição aflita sobre as origens e os fins últimos do Homem.”(idem, p.157), concluindo que “E acontece que o homem – se pode viver e criar abstracções – é pelo rosto e pelos seus gestos, e pelo que ele, com o olhar transfigura, que podemos, interrogativamente, incertamente, inquietamente, angustiadamente, conhecer-lhe a vida. E, se não fora a poesia olhando a História, nenhuma vida em verdade conheceríamos, nem a nossa própria.” (idem, ibidem).

As afirmações de Sena, praticadas ao longo de toda a sua extensa e múltipla obra, fazem-nos considerar ainda hoje a relação do poeta com a coisa pública, demonstrando a impossibilidade de um poema ser um espaço fechado e sem ponte para o mundo real circundante. A poesia lírica muitas vezes é considerada, sob olhares depreciativos ou indiferentes, um exercício íntimo e despiciendo de emotividade, e não é à toa que continua sendo uma produção literária menos visível ou menos frequentada pelo leitor comum envolvido pelos apelos de um mercado de livros que valoriza uma produção de consumo rápido e fácil. No entanto, a poesia lírica, também ela, a partir de subjetividades encenadas, é coisa pública, voz individual e coletiva simultaneamente. Por isso, interessa-me o sentido de “histor (testemunha, aquele que vê, que sabe) para juntá-lo ao de “poiesis” (ação de fazer, criar alguma coisa)[5].

Disso, sempre falou o outro poeta, Carlos de Oliveira. Em seu O aprendiz de feiticeiro [6],  reunindo textos vários (crônicas, comentários, reflexões, esboços, análises), publicados ao longo dos anos em jornais e revistas,  o mais antigo de 1945 e os mais recentes de 1970, também Oliveira configura uma poética do testemunho, defendendo o compromisso da escrita literária com o mundo em que se dá a ver.  Ao longo desse material híbrido em sua genealogia, os leitores atentos encontram pontos fundamentais de sua compreensão  em relação ao trabalho literário  e ao compromisso de escritor. Há aí passagens capitais que   é necessário destacar em cinco blocos:

 

Preciso quase sempre de imagens e, embora me digam que é um hábito grosseiro em escritos destes, não desisto de ligar tudo o que penso ao mundo comum, quotidiano: os objectos, a paisagem, os homens (OLIVEIRA, 1992, p.433)

 o meu ponto de partida, como romancista e poeta, é a realidade que me cerca; tenho de equacioná-la em função do passado, do presente, do futuro; e, noutro plano, em função das suas características nacionais ou locais (idem, p.471)

 Tocámos no verdadeiro problema. O que vive em nós mesmo irrealizado precisa nestes tempos dúbios da rijeza da pedra. Orgulho autêntico. Recusa da conivência, do arranjo disfarçado. Dignidade. Elementos de que se faz a vagarosa teimosia dos sonhos. E então a partida está ganha. Pode perdê-la o escritor (por outras razões, aliás) mas o homem vence-a de certeza. (idem, p.369)

 Refiro-me aos perigos dum outro apocalipse, por dentro, menos espectacular mas também destruidor: a tecnocracia; a habituação passiva ao mecanismo, a uma atmosfera de metal diluído; e a idolatria, a sufocante obsessão dos objectos, fomentada por um aparelho publicitário formidável. É neste ponto que julgo ter a arte um papel de medicina humanista, de contraveneno insubstituível. Sartre diz algures que “o rigor científico reclama em cada um de nós outro rigor mais difícil, que o equilibra: o rigor poético”, sublinhando que se trata de duas formas culturais “complementares” (idem, p. 582)

 A poesia evolui, experimenta, liberta-se, mas não deixa de ser um produto directo, dilecto, da consciência humana. A verdadeira vanguarda não imita exactamente aquilo que mais precisa de combater, o esquecimento do homem na rápida aridez do mundo, que não advém do progresso mas do seu uso deturpado. Se a poesia é como queria Maiakovski uma “encomenda social”, o que a sociedade pede aos homens de hoje, mesmo que o peça nebulosamente, não anda longe disto: evitar que a tempestade das coisas desencadeadas nos corrompa ou destrua.”  (idem, p. 583)

 

Com essa recolha, tento chegar ao que importa: pensar como a escrita poética pode ser essa “medicina humanista, esse contraveneno insubstituível”. As poéticas  de Sena e de Oliveira não abrem mão do rigor, no domínio da técnica do verso, na exigência de comprometimento com a língua materna, na precisão de ideias, na compreensão do lírico em diálogo com a  tradição e a inovação. Apresentam ambas, por caminhos diferentes ─ em Oliveira, a concentração de imagens (disso é exemplar Micropaisagem e todo o trabalho de reescrita a que submeteu sua produção anterior a 1960); em Sena, a expansão imagética (vejam-se os poemas de Metamorfoses, meditações do olhar a partir de objetos estéticos os mais diversos) ─, paisagens humanistas das mais fortes na poesia portuguesa do século XX e entendo paisagem, de acordo com Michel Collot, como “[…] uma experiência onde sujeito e objeto são inseparáveis, não apenas porque o objeto espacial é constituído pelo sujeito, mas também porque o sujeito por sua vez encontra-se aí englobado pelo espaço. Ele constitui um excelente exemplo de espaço habitado, desdobrado em perspectiva, a partir do que Moles indica como o ponto Aqui-Eu-Agora”[7]. Com essa perspectiva, o meu ideal  de leitura seria poder entretecer os versos de um e de outro sem aspas ou marcas de transição,  porque os dois poetas testemunham juntos a “comovente historicidade humana” no espaço da língua que lhes coube habitar. Em ambos, a memória é ponto fulcral,  uma memória que é individual e coletiva, que é da vida e da literatura, tempo escrito e reescrito, tempo vivido e imaginado. Penso  agora no livro Entre duas memórias [8] (primeira edição de 1971), de Carlos de Oliveira, onde podemos examinar o conjunto de dez poemas sob o título “Descrição da guerra em Guernica” (na edição de Obras, 1992: 330-339) que, para os mais jovens leitores, talvez não seja uma referência significativa, mas foi e é  fortíssima para todos que continuam a lutar contra qualquer forma de opressão e destruição da liberdade humana. Como explica Manuel Gusmão, devemos notar como a descrição, nessa série de poemas, torna-se narração, e “o poema prolonga, actualiza o testemunho do acontecimento até nós. Nós, leitores, somos assim convocados como testemunhas.” (GUSMÃO, 1981:143)

 

I
Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore,
a chama do candeeiro.

 

O poema inicia-se como um olhar a percorrer a famosa tela de Picasso, que foi exibida [9] pela primeira vez, em Paris, em 1937, denunciando o bombardeamento pela aviação alemã  da pequena cidade espanhola de Guernica em 26 de abril de 1937,  como apoio às forças nacionalistas (lideradas pelo General Franco), ao tempo da Guerra Civil espanhola (1936-1939).

No interior da tela, no interior do poema, o “anjo camponês” percorre com “seus olhos rurais” a cena de destruição sem compreender essa máquina do mundo transtornada, “hélices, / motores furiosos;” em que todos os objetos do mundo agrário, da vida comum e comunitária, transformam-se, pelo gesto de violência inaudita, em ruínas retorcidas, num mundo que fica “bruscamente; / a arder”. O penetrar nesse mundo distorcido, destruído, desfigurado parece provocar o fim de toda esperança, de toda crença no humano,

 

IX
Casas desidratadas
no alto forno; e olhando-as,
momentos antes de ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou água,
como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos; crescendo cisco
a cisco, filho a filho?
As máquinas estranhas,
os motores com sede, nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporaram-no apenas.

 

no entanto, como é dito no último poema da série, em meio ao desmoramento de “toda a arquitectura”, há algo que sobrevive no ar, o “desenho” da casa, sustentado pelos braços erguidos da “terceira mulher; a última;”, presença testemunhal da violência e guardiã da resistência :

 

X
O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,
os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura;
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar; sustem-no
a terceira mulher; a última; com os braços
erguidos; com o suor da estrela
tatuada na testa.

 

Nesses braços erguidos, reflete-se um poema de Jorge de Sena, datado de Lisboa, 25 de junho de 1959, “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”[10],  espécie de testamento moral do poeta, em que se reencontram suas ideias mais caras: compromisso indelével com a memória humana, luta constante contra qualquer forma de violência e de silenciamento físico e mental, o que se sintetiza na “fiel dedicação à honra de estar vivo”. Tal poema é também uma declaração do compromisso do artista com o mundo em que deve viver, um mundo sempre desconcertado, sempre mortal e feroz, representado fortemente na pintura de Goya, “Três de maio de 1808, em Madri  ou Os fuzilamentos da Montanha Príncipe Pio”, realizada em 1814.

 

[…]
Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardamos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram. (1988a: 124)

 

De um poema a outro, de um escritor a outro, o mesmo circuito da poesia como testemunho do horror e da violência, mas testemunho igualmente de uma vontade de persistência de humanidade, vontade que é o contraveneno de que falava Carlos de Oliveira, vontade que move, comove a poesia frente à História, a res publica, que está sobre nossa responsabilidade cotidianamente.  Nessa “carta” poética a seus filhos, Sena une seu olhar sobre a historia da violência no mundo ao olhar do pintor Goya, partilhando o mesmo horror pelo mal que o homem faz ao próximo, mas, ao mesmo tempo, defendendo a necessidade de ação sobre esse mesmo mundo para transformá-lo, para criar as condições necessárias para a permanência da vida e afirmação de sua dignidade. A palavra poética de Sena, como a de Oliveira, frente ao furioso vento que varre e destrói a face humana na Terra, expõe sua razão de ser na vontade de dar a ver, de testemunhar a força de nossa condição ainda mais em situações de descrença e desistência.

 

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Gota,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sêmen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
(1988a, p. 123-124)

 

O poema finda com um compromisso de ação, um compromisso com a pólis e nossa condição de seres viventes em comunidade, ecoando o “bicho da terra tão pequeno” bíblico e camoniano:

 

E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor
que outros não amaram porque lho roubaram.

 

Lisboa, 25/06/1959

(1988a:124)

 

No século XVI, perguntava determinado  sujeito lírico, desconcertado entre a razão e o amor,  num dos sonetos mais relidos de Sá de Miranda[11]: “Que farei quando tudo arde?”. Essa pergunta que vem ecoando em todos os séculos, mais forte se ouviu em nosso tempo: o que faremos quando tudo se destrói à nossa volta, num mundo de razão e amor transtornados? No encontro que provocamos, Carlos de Oliveira poderia responder assim: ”Imaginar / o som do orvalho, / transmiti-lo / de flor para flor, / guiá-lo / através do espaço / gradualmente espesso / onde se move / agora / [água → cal], e captá-lo como /se nascesse / apenas / por ser escrito.” [12] e Sena, “Não desesperarei da Humanidade. /  Por mais que o mundo, o acaso, a Previdência, tudo / à minha volta afogue em lágrimas e bombas / os sonhos de liberdade e de justiça; [..] esperarei ainda e sempre. Para além de mim, de tudo. Esperarei tranquilo”.[13]

Esse é, do ponto de vista desses dois incontornáveis escritores portugueses,  o compromisso do poeta com  seu tempo:  imaginar e esperar, escrevendo sem cessar esta palavra que é pública e comunitária, que sai do mundo e para ele volta, como gesto de enfrentamento e como ato de transformação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BELO, Ruy. Homem de palavra[s]. 5a. ed. Lisboa: Presença, 1997.

GUSMÃO, Manuel. A poesia de Carlos de Oliveira. Lisboa: Seara Nova / Editorial, 1981.

MIRANDA, Sá de. Poesia e teatro. [selecção, introdução e notas por Silvério Augusto Benedito]. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, s.d.

ROGER, Alain (dir.). La théorie du paysage em France (1974-1994). Seyssel: Champ Vallon, 1999.

OLIVEIRA, Carlos de. Obras. Lisboa: Caminho, 1992.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. 2a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

SAID, Edward W. .Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SENA, Jorge de. Poesia I. Lisboa: Presença, 1988.

______. Poesia II. Lisboa: Presença, 1988a.

SILVA, Teresa Cerdeira da. José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Don Quixote, 1989.

 

NOTAS:

[1] Na origem, versão parcial deste texto foi apresentado no II Congresso Internacional da Cátedra Jorge de Sena – A República das Letras e a República nas Letras, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em outubro de 2010, no âmbito da comemoração do Centenário da República em Portugal.  In: Metamorfoses 11.1 (2011), p. 79-89

[2] Claramente aproveito-me do título de um dos livros de poesia, primeira edição de 1970, de Ruy Belo, este outro poeta tão compromissado com o humano.

[3] Não discutirei a questão de reescrita a que Carlos de Oliveira submeteu seus livros a partir dos anos 60. O volume de Obras reúne a versão final autorizada pelo escritor de cada um de seus livros.

[4] “[…] Se a poesia é, acima de tudo, nas relações do poeta consigo mesmo e com os seus leitores, uma educação, é também, nas relações do poeta com o que transforma em poesia, e com o acto de transformar e com a própria transformação efectuada – o poema -, uma actividade revolucionária. Se o “fingimento” é, sem dúvida, a mais alta forma de educação, de libertação e esclarecimento do espírito enquanto educador de si próprio e dos outros, o “testemunho” é, na sua expectação, na sua disrição, na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das ideias aceites, dos hábitos sociais inconscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos. […]”, em “Prefácio da Primeira Edição”, em Poesia I, 1988, p. 25-26.

[5] Recorro à pesquisa etimológica realizada por Teresa Cristina Cerdeira da Silva em sua obra sobre a ficção de José Saramago (1989, p. 24), em que explica: “Mas não há como esquecer que na raiz indo-européia da palavra “história” esta “wid, weid” que significa “ver” e que em grego “histor” (istwr) quer dizer “testemunha” no sentido de “aquele que vê, aquele que sabe”. O historiador é, pois, aquele que quer saber e que procura a verdade.”

[6] Sua primeira edição foi em 1971. A segunda, em 1973; a terceira (corrigida), em 1979. Será reeditada no conjunto de Obras de Carlos de Oliveira, em 1992.

[7] COLLOT, M. Points de vue sur la perception des paysages. In ROGER, Alain (Dir.). La théorie du paysage en France. 1999. p. 211. Cito a passagem original completa: “Le paysage n’est pas un pur objet en face duquel le sujet pourrait se situer dans une relation d’extériorité, il se révèle dans une éxpérience où sujet et objet sont inséparables, non seulement parce  que l’objet spatial est constitué par le sujet, mais aussi parce que le sujet  à son tour s’y trouve englobé para l’espace. Il constitue un excellent exemple d’espace habité, déployé en perspective à partir de ce que Moles appelle le point Ici-Moi-Maintenant, et s’oppose en tant que tel à la représentation cartésienne de l’étendue, fondée sur la séparation de la res extensa et de la res cogitans” […].

[8] Também em Obras de Carlos de Oliveira, op. cit.

[9] Por ocasião da Exposição Internacional de Paris. Foi exposto no pavilhão da República Espanhola. Medindo 350 por 782 cm,  tela pintada a óleo.

[10] Em Poesia II [Metamorfoses seguidas de quatro sonetos a Afrodite Anadiômena], 1988a, p. 123.

[11] Trata-se do soneto que se inicia com “ Desarrezoado amor, dentro em meu peito,”. Ver MIRANDA, Sá de. Poesia e teatro [seleção, introdução e notas por Silvério Augusto Benedito]. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, s.d., p. 160.

[12] Micropaisagem, em Obras de Carlos de Oliveira, Op. cit., p. 243.

[13] Poema “Mensagem de Finados”, em Fidelidade, Poesia II, Op. cit., p. 46.

 

*Professora de Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana – NEPA – UFF. Pesquisadora do CNPq. Coorganizou, com Marcia Manir Feitosa, Literatura e paisagem, perspectivas e diálogos, Niterói, EdUFF, 2010; com  Celia Pedrosa, Subjetividades em devir – estudos de poesia moderna e contemporânea, Rio de Janeiro, 7Letras, 2008.