Partindo da conferência (ver) que Jorge de Sena proferiu na abertura do Sexto Congresso da Associação Internacional de Hispanistas, em Toronto, agosto de 1977, a ensaísta tece considerações sobre o olhar arguto que Jorge de Sena lança ao país vizinho e à Ibéria em conjunto.
«Nadie es de verdad un miembro de nuestra comunidad, si, por lo menos una vez en la vida, no es Don Quijote, saliendo a librar batallas perdidas para deshacer los entuertos de este mundo, entre los más irritantes de los cuales se cuenta la arrogancia de eruditos míopes que fingen ignoramos o realmente nos ignoran, porque siglos de prejuicios malévolos les han impedido vemos o entender que la historia del mundo, para bien o para mal, no se puede escribir sin nuestra presencia en ella, les guste o no, o aun a nosotros nos guste o no». Em Agosto de 1977, pronunciava Jorge de Sena estas palavras, assim, em castelhano, perante uma «comunidade» de hispanistas, em Toronto, no Congresso da Asociación Internacional de Hispanistas para o qual tinha sido convidado a proferir uma das especialíssimas conferencias plenárias que a organização de cada Congresso da Associação brinda à sua multidão de sócios. Quando as actas do mesmo recolheram as suas palavras, já ele tinha morrido [1].
Por mim, sem querer fazer apropriações ilegítimas, não posso deixar de pensar que as palavras então proferidas por Jorge de Sena constituem o seu testamento hispanista ou pelo menos o documento de alguém que muito sabia de tudo sobre o que ali se pronunciou. São ao mesmo tempo o testamento de um português – ou melhor, como ali faz questão de afirmar: um escritor português e cidadão brasileiro – que pensa a ‘sua cultura, a sua história e a sua identidade, integrado numa entidade que ele próprio chama, no decorrer da conferência, de «velha Hispania Mater», assim se integrando, aliás, numa linhagem intelectual, cujo raciocínio esclarecido sempre havemos de ter em conta mesmo quando em algo possamos divergir.
Por isso, me pareceu de algum interesse chamar a atenção para este texto de Sena que, sem pretender eu estar ao corrente de tudo o que sobre ele e a sua obra se tem escrito, creio não estar presente em toda a já vasta bibliografia sobre ele e a sua obra produzida. É este, por agora, o objectivo possível desta nota que, por isso, há- de ser breve. Para tempos mais generosos há-de ficar o estudo que suspeito muito profíquo (e aqui deixo sugerido) de como o seu olhar, ao mesmo tempo quixotesco e sanchesco (no sentido em que o veremos defluir a complementaridade de ambas as figuras cervantinas) ficou escrito nos seus poemas, na sua narrativa, nos seus ensaios sobre literatura, antes de mais no seu entendimento do Barro peninsular.
Lembremos apenas que não será despiciendo que nesse magnífico romance que nos deixou, Sinais de Fogo, tenha feito conviver portugueses e espanhóis em empenhados gestos de solidariedade; e que, nessa impressionante e perfeita novela que é O Físico Prodigioso – cujo lugar único, definitivamente enriquecedor da literatura portuguesa deste século sempre haveremos de agradecer-lhe – tenha recuperado velhas tradições peninsulares; como também não será de somenos significado que tenha escolhido «o coração de um pintor chamado Goya» para o mostrar como exemplo – de liberdade, de amor e de justiça – em carta a seus filhos.
É quase no fim da conferência que Jorge de Sena, com a ousadia e a coragem intelectual e cívica que lhe conhecemos, faz as afirmações que comecei por reproduzir. Mas elas surgem no desenvolvimento lógico e na explicitação de uma atitude que se vem manifestando ao longo de toda a intervenção. Nela, assumindo conscientemente a máscara de Quixote, denuncia e combate a golpes de implacável espada os preconceitos, a ignorância e isso que chama de «miopia», entregando-se a uma batalha (e como se vê, não faço mais do que parafrasear as imagens que ele próprio utiliza) que começa, desde logo, no título: «hispanismo: archipiélago de glorias y vanidades en el mar océano de la ignorancia universal».
A dureza do enunciado resume bem o eixo que vai guiar a sua comunicação, isto é, a denuncia que ao longo dela Sena fará do desconhecimento ou, quando menos, da desatenção que, no campo da história e da literatura, alguns dos mais famosos especialistas do campo hispânico têm demonstrado em relação à diversidade e à complexidade em que se erguem as culturas que ao longo de séculos se têm desenvolvido na Península Ibérica e nos continentes americano e africano com elas ligadas a partir dos descobrimentos.
A começar pela diversidade linguística. Logo no início da sua intervenção Sena dá conta desse problema que sempre se lhe põe a um falante de língua portuguesa quando participa num destes congressos: exprimir-se na sua própria língua correndo o risco, ou melhor, sabendo de antemão que será entendido por muito poucos ou mesmo nenhum ou fazer a concessão de falar a língua do outro para que o entendam? Claro que Sena, inteligente e realista – e sendo bem consciente de que a eficácia da sua intervenção, acusadora e esclarecedora, só atingirá os seus fins se fizer essa concessão – não duvida. E nem sequer lhe notamos nenhum rasto de má consciência. Pelo contrário, como sempre acontece nele, o que poderia constituir uma justificação converte-se, de novo, em acusação: «Pensando en todas estas cosas [a ignorância generalizada do português, do catalão e do galego entre os hispanistas, mesmo entre os que conhecem o francês e o italiano ou entre os que estudaram as obras espanholas de Gil Vicente e de Rosalía de Castro e tendo ainda em conta a experiência de uma anterior intervenção sua noutro congresso de hispanistas, feita em português] llegué a la conclusión de que, por el momento, y mientras los más diligentes entre ustedes se dispongan a comprar sus gramáticas desas lenguas olvidadas, mi mejor decisión sería hablar en espanol. Y es eso lo que estoy haciendo».
E fá-lo efectivamente sem complexos, o que deveria, creio, constituir um exemplo para todos nós, Sem complexos e, como afirma, consciente de que o uso da «língua dos vizinhos», quando as circunstâncias o aconselham, não significa «um debilitamento da identidade portuguesa». Ao aduzir argumentos recorda, entre outros, a época em que o bilinguismo era praticado pelos escritores portugueses fazendo notar que ela «coincidia exactamente, en la historia y en la literatura de Portugal, con el más agudo sentido de una misión imperial portuguesa, y con un ingente orgullo por los descubrimientos Y conquistas iniciadas majestuosamente, con la conquista de Ceuta en 1415».
É, pois, falando em castelhano e afirmando uma identidade portuguesa em primeira instância e, hispânica, no seu conjunto, que Jorge de Sena faz a denúncia das «glórias» e «vaidades», das «ignorâncias» e «miopias» que, desde o início, anuncia aos que o ouvem nessa conferência. Correndo o risco, ou antes, sabendo, a ciência certa, que algumas das atitudes ou das pessoas concretas que vai atacar estão presentes na sala. Porque ele, já o sabemos, não haveria nunca de limitar-se a referências abstractas ou especulativas; as suas conclusões ou juízos generalizadores haveriam sempre de assentar em exemplos concretos, leituras, encontros, experiências, pessoas que aqui deixará apontadas inexoravelmente. São, como exemplos dessa «Cortina de Ferro», diz ele, que parece isolar culturalmente a Península do resto do mundo, «cortina» imposta de fora mas também, como veremos, reforçada, por dentro: o crítico literário René Wellek, aqui acusado por Sena de, em recentes ensaios sobre a crítica literária contemporânea na Europa não referir nem dois nomes hispânicos; o crítico de arte britânico Kenneth Clark, «e se viejecito simpático» que, em televisão e depois em livro, recorda Sena, veio explicar ao mundo o desenvolvimento da civilização, sem que nessa explicação faltassem nem os esquimós: «pero los ibéricos y los ibberoamericanos nunca aparecieron, como si jamás hubieran contribuido ni aun con un librito, ya que no con sus armadas, para el progreso de la civilización»; é, finalmente, «otro nombre respetable», o da também inglesa Frances A. Yates que trata, em livro, o tema do império no século XVI, dedicando cerca de duzentas páginas aos impérios francês e inglês e despachando Carlos V en 20páginas. E como lhe dói a Jorge de Sena que Camões – que «escribió para la Península el poema épico imperial (incluyendo en él sus más serias dudas sobre tal idea)» não seja, nem sequer a pé-de-página, mencionado!
De dor, efectivamente, de dor e de tristeza se faz esta conferência de Jorge de Sena que, a princípio, eu quis ver como testamento. De dor, as ironias e os ataques, De dor, esta necessidade de sair ao campo para desfazer tortos e injustiças. De dor, a máscara quixotesca. A máscara que veste para o campo de batalha e o olhar com que, amorosamente, olha a terra que lhe é pátria ainda que não o lugar da cidadania («yo soy un escritor portugués y un ciudadano brasileño»).
A conferência de Jorge de Sena tem, também, já se vê, uma forte vertente política, com o qual se entrelaçam os aspectos culturais e a que ele, obviamente, não só não foge mas sobre a qual está interessado em pronunciar-se, sempre vestido dessa máscara quixotesca com que, frontalmente, se apresenta. Para exemplificar os tais «preconceitos malévolos» com que, segundo ele, muitas vezes têm sido olhados, de fora, Espanha e Portugal, recorda a «lenda negra» da colonização e modo como esta tem sido usada para «desacreditarnos» lembrando causticamente, apesar de «pedir excusas» aos seus ouvintes como «la parte norte de la Américas» (lembre-se que Sena está a falar em Toronto para uma assembleia constituida em grande parte por norte-americanos ou professores de universidades norte-americanas) deveriam ouvir o que sobre horrores infligidos aos índios contam «historiadores honestos», assim, literalmente, arremessando aos norte-americanos as pedras que estes, junto a outros europeus, igualmente de mãos e passados pouco limpos em matéria de colonização, ao longo dos séculos têm vindo a atirar a espanhóis portugueses. A sua estratégia de contra-ataque desenvolve-se numa lógica tal que chega a fundamentar neste ataque concertado das restantes nações contra os povo da «velha Hispania Romana» (outra expressão que aqui utiliza) e na forma com aquelas puseram esta «de quarentena», o facto do progressivo fechamento que, por sua vez, Espanha e Portugal foram realizando sobre si próprios até essa «espécie de orgullo defensivo», «un complejo de inferioridad», protagonizado, entre outros, pelos patriotas liberais do século XIX, «orgulho» que, em vez de nos levar a analisar as origens dos nossos males, políticos e culturais, e a enfrentá- los, «llegaría a su conclusión lógica en la famosa y ridícula frase del dictador portugués Salazar, cu ando, frente a la opinión mundial acerca de su obstinación en no conceder a tiempo la independencia a las colonias africanas, declaró que Portugal resistiria ‘orgullosamente solo’». E os que pungentemente recordamos a frase do ditador, ficamos a pensar em que medida Sena terá razão na genealogia aqui traçada e quantas vezes, contra princípios a gritos afirmados, nos teremos, pela calada, submergido neste patético orgulho da solidão…
Muitas outras solidões percorrem a conferência de Jorge de Sena. Ou, pelo menos, explicitamente, o clamar de alguém que não quer estar só e, ao mesmo tempo, en nome da história, proclama o direito a, com erros e com acertos, não ser discriminado nem ignorado no meio de tantos outros. E que reclama a atenção não só para uns mas também para outros. E aí entra Dom Quixote.
É certíssima e complexa a visão que Sena tem das figuras cervantinas e não menos interessante a que tem do próprio Cervantes na relação com o seu herói. Dom Quixote é esse que qualquer um que, «de verdad», queira ser «un membro de nuestra comunidad», tem de ser, pelo menos uma vez na vida, «saliendo a librar batallas perdidas para deshacer los entuertos deste mundo». Mas a certeza e a justeza – assim como a justiça – do seu entendimento do livro de Cervantes é, sobretudo, notável em relação a Sancho: «este pobre campesino» que, «desbordando con sabiduría de siglos, es aún más peligroso que su amo». Já sabiamos, do seu poema «Do Maneirismo ao Barroco», que Jorge de Sena fundia o nome do amo com o apelido do escudeiro: «Don Quixote Pança». Aqui, de novo reconhecendo que Sancho e Dom Quixote só existem junta e reciprocamente – o que, aliás, se diz no Quijote de 1615, por boca do próprio Dom Quixote mas a crítica e os leitores têm tendência a não ter em conta – chama a atenção para o facto de que Sancho «más de una vez, sin estar loco, muestra una morbosa (o saludable) atracción por las ideas de su amo». Pelo que, diz ele, de novo atacando os representantes dessa «ignorancia» o «miopia» visada no seu discurso: «no piensen ustedes que pueden buscar refugio en la ide a de hacer de Sancho Panza».
(E eu não posso deixar de entender que este «ustedes» é referência explícita a muitos de esses «eruditos» «míopes» e «arrogantes» a quem Sena dirige a sua diatribe e na perseguição dos quais diz ser preciso vestir-se de Dom Quixote e sair a livrar batalhas. Não estão estes «ustedes» ali na sala? Não é, pois, também a eles que vão direitas as farpas»?)
Interessante, por fim, no âmbito da crítica cervantista, é o facto de Sena interpretar a despedida de Cervantes (no prólogo ao Persiles, escrito poucos dias antes da sua morte) como uma mudança de Cervantes que – depois de, na tentativa de uma explicação pragmática do mundo, ter feito que Dom Quixote, ao morrer, voltasse a ser Alonso Quijano – vinha agora, no limiar da morte, «transfigurar-se» em Dom Quixote para morrer.
Sinais do modo dialéctico que, na segunda metade do século XVI e nas duas primeiras décadas do século XVII, segundo recorda o orador, orienta parte importante das manifestações da arte peninsular? Contradições do modo de ser «hispânico»? Afinal, as figuras de Dom Quixote e Sancho Panza serviam-lhe a Sena para, segundo creio, numa herança que algo terá de Unamuno e da «geraçã» de 98, tal como a utilização feita por Garrett nas Viagens na Minha Terra tinha da herança romântica, falar da «alma» destes filhos da «velha Hispania mater»: «quien no entiende tales contradicciones con que somos los más acabados ejemplos de surrealismo en la naturaleza humana» – conclui ele – «no entiende un ápice de nuestras culturas».
Velha Hispania Mater, Hispania Romana, ibéricos, hispanos são nomes que Sena usa, de forma acumulativa, para referir-se ao conjunto dos povos da Península sem parecer sentir-se pressionado por constrangimentos nacionalistas ou rigores de fidelidade às origens, a que temos sido levados os que viemos ou vivemos noutros tempos. Mas que origens?
Também por isso o que sim me importa é esta laboriosa e comovedora reflexão sobre a identidade portuguesa, na qual, pouco antes de morrer, Jorge de Sena, a um tempo Quixote e Sancho, luta pela boa imagem de uma Península, convertida em «velha Hispania Mater». Mater e amante, Dulineia dos seus encantos, ignorada ou maltratada de «míopes» e «ignorantes». Onde encontramos um apelo: «Debemos insistir y lúchar por nuestro mutuo entendimiento, nosotros, las gentes que hablamos las lenguas desarrolladas en la vieja Hispania Mater». Gentes que ele sabe diversas, e fruto de diversas fontes que, na sua poesia, cantou. Desde os «airinhos» da Galiza e o Ano Santo em Santiago até à mesquita de Córdoba e às memórias da moura Granada de Federico; desde a castellana Plaza Mayor de Salamanca e o Toledo de Garcilaso e de Carlos V até às Ampurias, no extremo catalão, onde «Aqui de Ibéria os gregos se fizeram / primeiramente terra das Espanhas». Gentes que simbolicamente homenageou na figura dessa «gazela ibérica» exaltada em poema – povo «violado por invasões» que, no entanto o não impediram de permanecer. Mesmo se…
«Suspensa nas três patas se repousa».
Janeiro de 1999
NOTAS:
[1] Actas del sexto Congreso Internacional de Hispanistas. Celebrado en Toronto del 22 al 26 de Agosto de 1977. Publicadas bajo la dirección de Alan M. Gordon y Evelyn Rugg por la Asociación Internacional de Hispanistas, Department of Spanish and Portuguese, University of Toronto, Toronto, Canada, 1980.
[*] Docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde implantou e desenvolveu os estudos hispânicos e latino-americanos, de que é a coordenadora científica, e onde preside ao NEIIA – Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos, além de integrar grupos de pesquisa internacionais, voltados para temas da cultura em língua espanhola.
In: Santos, Gilda, org. Jorge de Sena em rotas entrecruzadas. Lisboa, Cosmos, 1999 p. 235-240