Doutora em Literatura Portuguesa pela UFRJ (atualmente professora do Instituto de Letras/UFF), com tese sobre a obra de Maria Gabriela Llansol, Tatiana Pequeno nos propõe uma geografia do encontro entre as escritas llansoliana e seniana, percorrendo os caminhos da ética, da estética e das metamorfoses.
A minha escrita nasce quase sempre de uma revolta.
Maria Gabriela Llansol, Livro de Horas I.
Música literata e fascinante,
nojenta do que por ela em mim se fez poesia,
esta desgraça impotente de actuar no mundo,
e que só sabe negar-se e constranger-me a ser
o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros.
Jorge de Sena. “La Cathédrale Engloutie” In: Arte de Música.
Convocar para o mesmo texto tanto Maria Gabriela Llansol quanto Jorge de Sena implica, num primeiro momento, avaliar as correspondências existentes entre ambos. Exige traçar o fio das aproximações entre dois autores portugueses do século XX que transformaram a execução estética de suas obras num dilema ético e político, ressignificando e problematizando toda a experiência de exílio cumprida por ambos. Escrevemos o texto que segue para esboçar tematicamente os sentidos da admiração de Llansol por Sena, isto é, para traçar a geografia que evoca esta cena de encontro.
Comecemos pelos sentidos metamórficos, também nodulares para a obra llansoliana. O uso da Metamorfose como conceito e máxima do universo de Llansol evidencia também uma releitura da Tradição, uma vez que esse uso recupera e atualiza os seus efeitos que escrevem a sua diacronia nas estórias e lendas formalizadas por Ovídio na sua obra maior. A propósito das Metamorfoses, Ítalo Calvino (2009) defende uma operacionalização que aposta no efeito da tramitação de universos, mostrando que na obra ovidiana, de onde é possível pinçar dados de semelhança para com a proposta de Maria Gabriela, “A poesia das Metamorfoses se radica sobretudo nesses limites imprecisos entre mundos diferentes” (CALVINO, 2009, p. 32, grifos nossos). Todavia, no “real” llansoliano identifica-se uma superação em relação ao caráter hierárquico das ordens divinas, humanas, vegetais e animais dispostos pelo poeta latino. Provavelmente porque para a autora, a migração pelos diversos mundos e suas diversas formas esteja necessariamente ligada a um projeto de uniformidade entre os seres e entre tudo que potencializa uma cena fulgor, ao mesmo tempo que fulmina a hierarquia da supremacia contemporânea do puramente humano em relação aos minerais, por exemplo.
Também Jorge de Sena, a seu modo, investe na Metamorfose para garantir a profusão do que é vivo e alimenta a Viva Chama não apenas da escrita, impondo também ao espírito humano o renascimento de energia e força ao opor-lhe a morte como fim último. É a tarefa do portador do dom poético e daquele que cria mundos o “ampliar-se no espaço” (SENA, 1989b, p. 133) já que, “escrever é amplificar pouco a pouco” (LLANSOL, 1998, p.28) porque:
Não foi para morrermos que falamos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhamos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhamos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.
(SENA, 1989b, p. 135)
como ilustra o último poema de Metamorfoses, “A Morte, o Espaço, a Eternidade”. Não parece dizer respeito apenas a esta questão da Eternidade que Llansol evoca lugar e nome de Jorge de Sena. Em O Senhor de Herbais, Maria Gabriela Llansol dedica breves páginas àquilo que chama de “pagar a (minha) dívida a Sena” (LLANSOL, 2002, p. 137) no sentido de admoestar a narrativa seniana a partir de um projeto desmembrado da tradição realista do tríptico nacional (o Estado, a Igreja e as Armas). E se para emergir é que nascemos, é daqui que devemos partir para a tarefa da textualidade: o mundo como promessa, o que provavelmente sugere a datação do poema seniano: “Assis, 01 de abril de 1966, Sábado de Aleluia”. Talvez mais precisamente: ir a contrapelo do que Gabriela sustentou ao dizer que “O criar mundos é dado a poucos. Fazê-los é progredir.” (LLANSOL, 2001, p. 135). A Sena, que sabia que a poucos era dado o dom do fulgor, coube o empenho obstinado de fazer emergir o humano e de potencializá-lo na “fiel/ dedicação à honra de estar vivo.” (Sena, 1989b, p. 165) e avançar até a metamorfose do último Sputinik.
Llansol, de sua parte, declara no já referido texto de O Senhor de Herbais que “nós somos feitos (também) à distância” (LLANSOL, 2002, p. 135), o que validaria a longa travessia da causa amante humana desde a Gazela da Ibéria e explicaria a readequação do tempo na textualidade llansoliana, ao contrário do uso sistemático do espaço como lugar de alta concentração e potência. Daí que a paisagem ressurgida seja a célula de tais textos, sofrendo continuamente, junto com as suas figuras, as (im)permanências do tempo:
A repousar à beira do lago, acabou por sorrir; alguém passara como uma ilusão, num barco e remando – uma sombra por conhecer; ouvi o rumor da água e dos remos no esforço da impulsão. Sobressaltou-se, seria Nietzsche?; o mesmo barco passou de novo. Olhou frontalmente a firmeza da sombra, sobretudo a cabeça, onde só se distinguiam os cabelos. Ouvia o rumor da voz: “Semivivos que me cercais, e me encerrais numa solidão subterrânea, no mutismo e no frio do túmulo; vós que me condenais a levar uma vida que mais valia chamar morte, voltarei a ver-me, um dia. Depois de morto terei a minha vingança: sabemos voltar, nós, os prematuros. É um dos nossos segredos. Voltarei vivo, mais vivo do que nunca.”
Dirigiu-se com ele para casa, pelo espesso silêncio que se seguira. Mas era uma sombra de criança: – Donde vens? Do corpo. Do lugar das recordações e das vibrações. – Não sei o que queres dizer. – Tenho recordações de que não me lembro: são as mais belas; as vicissitudes das idéias e dos sistemas afectam-me mais tragicamente do que as vicissitudes da vida real. – Sentaram-se encostados um ao outro. Depois, Friedrich N. deitou-se no colo de Ana de Peñalosa, disposto a adormecer.
(LLANSOL, 1999, p. 59)
Com efeito, Jorge de Sena poderia ser na obra de Llansol encontrado não apenas por ter sido escolhido por Llansol para compor a “clave dos inqu(i/e)ridos”, dos rebeldes e vencidos de algum modo pela História ao ocupar lugar ao lado de Spinoza, Nietzsche, Müntzer, Copérnico, entre outros, mas sobretudo porque também num dos seus mais famosos prefácios (Prefácio à 1ª. Edição de Poesia I) a transformação do mundo é formalmente elaborada:
Se a poesia é, acima de tudo, nas relações do poeta consigo mesmo e com os seus leitores, uma educação, é também, nas relações do poeta com o que transforma em poesia e com o acto de transformar e com a própria transformação efectuada – o poema -, uma actividade revolucionária.
(SENA, 1989a, p. 25, grifos nossos)
Operar a transformação, neste caso, orienta a poética de estar no mundo e pode ser igualmente entendido como movimento contrário ao estabelecimento da “Noite Profunda” (poema de Peregrinatio ad loca infecta) do seu Tempo, e não o da “banalidade do mal”[1] ou do “reino da estupidez”, mas da responsabilidade humana e humanística de lutar contra um outro movimento, este traiçoeiro e oblíquo, uma vez que:
É de repente que a noite profunda chega,
como um enjôo, uma agonia, uma vertigem,
uma queda irreparável, no vácuo, no vazio,
(…)
Repentinamente (a música tocava, a noite
física do mundo viera serena e perpassante
para ficar), a outra noite chegou
abrupta, inexorável, impiedosa,
feroz, cruel, tirânica (…)
(SENA, 1989c, p. 56)
E, não obstante, caberia apontar que contra a “Noite Profunda” do mundo há, em Llansol, a obstinação pela liberdade de consciência, tornada possível pela também metamorfose do texto e suas formas que aqui retomo: “operar uma mutação da narratividade e fazê-la deslizar para a textualidade um acesso ao novo, ao vivo, ao fulgor nos é possível” (LLANSOL, 1994, p. 120, com espaçamentos da autora). A noite física do mundo assume, desta feita, não apenas a qualidade daquilo que perpassa e viaja, mas também a sua dimensão de escuridão e ausência de saída ad loca infecta ou o mundo na sua versão de “vida danificada”[2]
Por isso assinalo a relevância do texto que investe nesta posição de crer-se contínuo e eterno porque também provocador de uma ação, ao invés da manutenção da inércia e da acomodação. Desse modo, para Llansol, as revoltas se dão de maneira não a constituir uma outra História, mas ao desenho de uma outra Geografia que acompanha as batalhas textuais que vão ao encontro de uma escrita que consiste em evidenciar as possibilidades dos outros mundos. Mesmo que tal atividade revolucionária, conforme assinala Jorge de Sena, possa muitas vezes estar imbricada a um compromisso utópico, a priori desguarnecido. É o que sugere o poema de Sena que escolhemos para epígrafe deste trabalho, “La Cathédrale engloutie”, que também abre Arte de Música (1968), do já nomeado poeta. Esta veia seniana que decalca em certa poesia um movimento de amargura ou ceticismo só encontraria eco no legado llansoliano talvez do primeiro livro, Os pregos na erva, embora fosse possível fazer Sena concordar com Adorno (apud COURTINE-DENAMY, 2002) quando esse último reforça que o espírito humano é totalmente indestrutível.
Por conseguinte, a parte intermediária de A Restante Vida, denominada “As Lições”, localizadas entre “Os meses da batalha” e o “Postfacio”, compreendem, na obra, um momento fundamental que trata do entendimento da batalha e os seus desdobramentos pensados num contexto a posteriori da experiência do combate. Estas 25 lições parecem ensejar a marca discursiva de tal projeto metamorfósico iniciado em O Livro das Comunidades cuja eternidade se mostra conciliada à escrita já na primeira Lição:
Ana de Peñalosa chegou ao fim da vida. Ser o fim é-lhe indiferente, não tem muito sentido. Mais uma vez pensa
Utilizar
a escrita
que sempre lhe serviu
de laboratório
e de alquimia.
Reflectindo,
disse para consigo:
Não será uma arte demonstrativa.
A escrita,
vê-la escrever-se lucidamente,
é o fundamento deste real.
(LLANSOL, 1982, p. 71)
O entendimento da escrita como parte inalienável e inextirpável “deste” real demonstra um modo de investimento num caráter atuante. Dito de outro modo, arriscaríamos dizer que em Llansol, como em Jorge de Sena, o sentido comum do engajamento é ultrapassado. Conforme demonstra Adorno (1973, p. 67), no famoso ensaio “Engagement”, em que discute a oposição entre Brecht e Beckett, é fundamental repensar a noção de obra “oficialmente engajada”, verificando que tal pretensão quase sempre solapa as expectativas de um trabalho denso que não está preocupado em simples e aparentemente posicionar-se contra. O pensador alemão também se utiliza do termo “desmontagem” para indicar que obras realmente engajadas minam por dentro as principais assertivas do mundo óbvio. Com efeito, tanto a matéria de escrita de Maria Gabriela quanto a de Sena estão em sua quase totalidade, afastadas de uma vinculação de propaganda ou meramente atreladas a um propósito crítico que apenas consiste em mimetizar o mundo e os seus entraves.
Não obstante, merece ser pensada também a temática do exílio. Tentaremos, aqui, observar em que medida a obra llanseniana[3] está vocacionada para deslocar suas figuras, lançando-as à já mencionada aventura iniciada com a “Geografia de Rebeldes”. Aproveitando a metamorfose como tópica do seu discurso, a autora que aqui se estuda entenderá que tal faculdade funcionará como mecanismo de adaptabilidade e sobrevivência na intensidade dos deslocamentos, tendo em vista a reconfiguração do Mundo ou suas alternativas. Assim, a cartografia dos rebeldes atende necessariamente a um processo migratório que, nos livros de Llansol, está em consonância com o desejo de encontrar a terra prometida, ainda que o eldorado de tal expressão resida no aspecto utópico dessa possibilidade. Mais que isso: no texto, definido por excelência como lugar, paisagem e corpo, a execução dos mundos outros é permitida, na medida em que o acesso é disponibilizado para aqueles que partilham ou elegem Bens semelhantes aos que a escritora nomeia em Lisboaleipzig 1: O conhecimento, a abundância, a generosidade, o prazer do amante e a alegria de viver.
Não à toa, a partir da “Geografia de Rebeldes” é determinada uma tipificação de personagens que na sua factualidade histórica estiveram à mercê da condição de exilados. Todavia, esse exílio está também conectado ao não-pertencimento da figura ao seu patriótico ou nacional espaço de nascimento, como é o caso de São João da Cruz, Nietzsche e T. Müntzer já n´O Livro das Comunidades, em que é possível entrever dados consistentes a respeito do caráter tipicamente profético que o discurso de tais figuras assume.
Ernst Bloch, em seu Thomas Münzer, Teólogo da Revolução (1973), recupera a importância humana que o tom profético dos discursos do religioso alemão assume ao vociferar contra a associação de interesse puramente financeiro, por exemplo, entre Lutero e o Príncipe Imperial Frederico da Saxônia, ou entre a Igreja Romana e seus representantes de nobreza cristã esquecidos dos lugares menores e da pobreza original em que muito do evangelho foi escrito. De forma bastante semelhante, encontra-se em Jorge de Sena o mesmo tom de protesto e indignação que marcou a sua poesia, e ainda mais aquela escrita a partir de sua saída de Portugal e vinda para o Brasil em 1959, pouco depois do seu já importantíssimo Fidelidade (1958).
Embora não tenham aderido ao mesmo tom de discurso em suas obras, Sena e Llansol podem ser cotejados por meio da radicalidade que empreenderam ao trabalho da escrita e do desejo executado de combater a língua no seu interior, “porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada”, como sugere Roland Barthes (1998, p. 17). Apesar de os modos serem bastante diferentes, é possível concordar a respeito da arte das migrações, tornando isso matéria de escrita como alternativa a uma existência de provações. Tendo experimentado o exílio praticamente na mesma época, ambos os autores foram capazes de diagnosticar a falência que constituía o estado vigente do mundo, evidenciando não apenas a perda das batalhas e as decapitações, mas indicando caminhos ao fornecer subsídios para a entrada noutro Real, ao mesmo tempo que lutam noutra margem contra o “fascismo da língua”[4]. Como se através da escrita fossem não somente ultrapassados os abismos e infernos simbólicos de que fala Deleuze em “A Literatura e a Vida”, mas como se estivesse em questão a lapidação duma espécie de amor ao Mundo e ao humano no ato da interação entre as principais ações de escrever e ler, sob a impressão de ser modificado enquanto sujeito participante de tal processo.
Disso deriva o principal legado de Sena e Llansol, que diz respeito à constituição de uma comunidade discursiva, na qual a reflexão das novas condições e feições do humano podem ser lidas. Verificados igualmente são os contornos de um perímetro e geografia das migrações ocasionadas pelos cumprimentos dos exílios, conforme se entende nos fragmentos abaixo, retirados do Livro de Horas I, diário de Maria Gabriela que aborda parte dos anos de 1972 a 1977 durante o desterro na Bélgica:
De facto, sou muito diferente dos homens. Sinto-me como um corpo à procura de caminho, não sem inteligência, mas como se toda a inteligência devesse passar pelo corpo. Augusto diz-me, esta noite, que talvez regressemos, dentro de três anos, a Portugal. Sinto-me triste, como se regressar fosse apenas um dever. Lá, não sou ninguém. Lá sou mulher dividida entre duas classes sociais, entre a solidão e a sociabilidade. Saio para a rua e falam a minha língua. Já não posso vê-la à distância, ver-me à distância. E talvez – que ironia! – eu volte e a minha mãe, visivelmente, já lá não esteja. Então, porquê voltar, se o mesmo espaço e o mesmo tempo se expandem por todo o lado? Se esta casa não estiver lá? Se eu estiver onde nasci, de regresso da viagem a que chamávamos exílio?
Ele (mas quem?) não vem, nem vai.
A minha angústia, muito leve e quase inaudível, permanece.
Gosto dos meus cabelos, das minhas mãos e deste meu pensamento plangente.
*
Nunca se regressa a lugar algum. Passamos e continuamos. A única vantagem que um lugar situado em Portugal pode ter sobre outro situado na Bélgica é esta: neste lugar as pessoas podem reunir-se no trabalho, no exílio, na busca de uma certa transcendência, de uma unidade.
Trouxemos para aqui uma língua e o sentido da vida. Trouxemos para aqui uma rede de relações – uma nova prática libidinal de grupo – e uma nova língua. Nunca mais falaremos o português como falávamos antes.
Aug: Onde vais?
Eu: Continuo, recomeçando a ler.
(LLANSOL, 2009, pp. 86-87)[5]
O que é latente no excerto acima é uma conclusão suficientemente clássica do exílio que corrobora com a ideia de que o estrangeiro já não pertence a lugar nenhum mais e que, por conta disso, também a sua língua materna opera através da memória. Em Llansol percebe-se comumente a escrita como movimento de repulsa à nostalgia, que compromete a vida restante e a vida possível do presente através dos diversos trânsitos, indicados pela multiplicidade dos locais das enunciações que se verifica mais costumeiramente nos seus diários. Sobre a questão em Jorge de Sena, o famoso poema “Em Creta, com o Minotauro” (1989c, p. 74) congrega alguns dos elementos que perfazem as semelhanças e as disparidades com relação à Maria Gabriela.
I
Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.
II
O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da “langue”.
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.]
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.
III
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.
IV
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha]
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.
V
Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.
Seria interessante notar que no poema de Sena, apesar da óbvia relação que o poeta estabelece com Creta, não há qualquer identificação com a paisagem natural do nascimento, isto é, não há nenhum modo de o escritor verificar-se como conteúdo (e até mesmo continente) duma geografia nacional portuguesa, que Llansol observa muito semelhante à maneira do poeta de Visão Perpétua:
… Trabalhando intemporalmente para não interromper a doçura deste processo visionário, embarque e descoberta. Nascida portuguesa, quem são os meus parentes? De portuguesa, vim para a terra belga. Depois, através de Ana de Peñalosa tornei-me espanhola. E há a Alemanha de Nietzsche, a França de Proust, a Flandres de Hadewijch ___ Alguém vem também do Oriente e para o Oriente me leva.
(LLANSOL, 2009, p. 130)
E aqui, enquanto me refiro à paisagem, compreendo a sua perspectivação não apenas de cenário, conforme demonstra Iná Elias de Castro em Geografia e Política (2005), mas sobretudo de espaço de interação entre o humano e o não-humano. Contudo, se há de se considerar que o lugar do humano, no universo da poesia seniana e da obra de Llansol, transita a sua metamorfose até não ser mais admitido como premissa tal qual era no Renascimento, é possível ir ao encontro do que Sebastião Macedo (2009, p. 62-63) diz, se for o caso de concluir não ser possível, no contexto histórico a que pertencem ambos os escritores portugueses, uma ressurreição que aposta no humano:
Uma pequena digressão pode levaresseconstrangimento e essa limitação às interdiçõespolíticas sofridas porSenaem Portugal e no Brasil; mastambém pode alcançar uma referência do poeta a seuprópriotempo e às ideologiasentãodominantes. Aponto, aliás, quemuitos dos poemas de Sena veiculam umpensamentonãoexatamentepessimista, mas disfórico, que pode serassociado à visão de um esgotamento do velhoprojeto humanístico do Ocidente e o desejo de “metamorfose” deste emumnovoprojeto, transvalorado talcomo o pensara Friedrich Nietzsche e o pensa, atualmente, Peter Sloterdijk.[6]
A disforia, neste caso, costuma ser compreendida como o processo crescente de desencantamento e diminuição da energia do sujeito face o mundo. Ela estaria necessariamente convencionada à projeção de olhar do homem contemporâneo incapaz de perspectivar a sua conditio humana. É interessante perceber que em Sena, como aponta ainda Sebastião Macedo, a linhagem desse pertencimento niilista deveria ser mais detidamente cotejado ao legado nietzscheano[7], muito embora tais pesquisas ainda sejam incipientes.
Por outro lado, parece impossível esquecer a presença do filósofo alemão na obra llansoliana, seja como personagem, seja como própria cena fulgor e matriz de muito do seu pensamento. Inegavelmente presente também, como demonstram os seus diários (Finita e Livro de Horas I, sobretudo), a leitura anotada e comprometida que Llansol faz de Assim falava Zaratustra e da Aurora, por exemplo, evocam a solidez com que a autora portuguesa apostou em determinadas idéias e conceitos de Nietzsche como o eterno-retorno aplicado à tópica da metamorfose ou da própria concepção estética de Mundo que se verifica em O Nascimento da Tragédia que Maria Gabriela, ao contrário de Jorge de Sena, mantém.[8]
É difícil precisar em que medida Llansol partilha e não-partilha dos efeitos disfóricos que agem e flutuam no mundo e na arte. Se por um lado é procedente que haja, mormente na sua obra inicial, um lume em vias de apagamento, não seria absurdo também dizer que a alternativa encontrada, isto é, a sustentação da Nova Comunidade que se propaga com A Restante Vida e Na Casa de Julho de Agosto, seja baseada na aventura já referida de um novo nicho de leitura e conhecimento, como conclui também Peter Sloterdijk (2000, p. 14-15):
Com o estabelecimento midiático da cultura de massas no Primeiro Mundo em 1918 (radiodifusão) e depois de 1945 (televisão) e mais ainda pela atual revolução da Internet, a coexistência humana nas sociedades atuais foi retomada a partir de novas bases. Essas bases, como se pode mostrar sem esforço, são decididamente pós-literárias, pós-epistolares e, conseqüentemente pós-humanistas. Quem considera demasiado dramático o prefixo “pós” nas formulações acima poderia substituí-lo pelo advérbio “marginalmente” – de forma que nossa tese diz: é apenas marginalmente que os meios literários, epistolares e humanistas servem às grandes sociedades modernas para a produção de suas sínteses políticas e culturais.
E, com isso, chega-se a outro núcleo da narrativa llansoliana: o lugar da Comunidade que, por motivos de espaço e perspectiva, será noutra oportunidade apresentado.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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LLANSOL, Maria Gabriela. Cantileno. Lisboa: Relógio d´água, 2000.
LLANSOL, Maria Gabriela. Causa Amante. Lisboa: A Regra do Jogo, 1984b.
LLANSOL, Maria Gabriela. Contos do Mal Errante. Lisboa: Rolim, 1986.
LLANSOL, Maria Gabriela. Da sebe ao ser. Lisboa: Rolim, 1988
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LLANSOL, Maria Gabriela. Finita. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005.
LLANSOL, Maria Gabriela. Inquérito às Quatro Confidências. Lisboa: Relógio d´Água, 1996.
LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1 – O Encontro inesperado do diverso. Lisboa: Rolim, 1994.
LLANSOL, Maria Gabriela. Livro de Horas I – Uma data em cada mão. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
LLANSOL, Maria Gabriela. Livro de Horas II – Um arco singular. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
LLANSOL, Maria Gabriela. Na Casa de Julho e Agosto. Porto: Afrontamento, 1984.
LLANSOL, Maria Gabriela. O Jogo da Liberdade da Alma. Lisboa: Relógio d´Água, 2003.
LLANSOL, Maria Gabriela. O Livro das Comunidades. Lisboa: Relógio d´Água, 1999.
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais Drama-Poesia?. Lisboa: Relógio d´Água, 2000.
LLANSOL, Maria Gabriela. O Senhor de Herbais. Lisboa: Relógio d´Água, 2002.
LLANSOL, Maria Gabriela. Os Cantores de Leitura. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.
LLANSOL, Maria Gabriela. Os pregos na erva. Lisboa: Rolim, 1962.
LLANSOL, Maria Gabriela. Parasceve. Lisboa: Relógio d´Água, 2001.
LLANSOL, Maria Gabriela. Um beijo dado mais tarde. Lisboa: Rolim, 1990.
LLANSOL, Maria Gabriela. Um Falcão no Punho. Lisboa: Relógio d´Água, 1998.
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NOTAS:
[1] A questão da “banalidade do mal” é discutida por Hannah Arendt na obra Eichmann em Jerusalém. Nesse livro, Arendt conclui que Adolf Eichmann, responsável pela morte direta de um número enorme de judeus, acabava por descaracterizar o homicida demoníaco. Para ela, a maldade de Eichmann consistia em ser apenas um sujeito desprovido de espírito crítico ou qualquer outra manifestação reflexiva que fosse além dos clichês e lugares evidentes do achismo e do senso-comum. Esta ideia é tão importante para Hannah Arendt que ela passa boa parte de sua vida buscando problematizar o pensamento humano a partir da experiência vivida no julgamento de Eichmann. Este seu projeto, inacabado por conta de sua morte, deu origem ao livro póstumo A Vida do Espírito, que trata basicamente de três faculdades humanas: o pensar, o querer e o julgar. A introdução deste livro demonstra em que medida a “banalidade do mal” influenciou o seu interesse por essa reflexão.
[2] Referência ao livro Minima Moralia – reflexões a partir da vida danificada que Adorno escreve nos 40 sob o espírito da Segunda Guerra Mundial.
[3] Adjetivo que usamos para ratificar a importância de Jorge de Sena para a obra de Maria Gabriela Llansol e demonstrar a força dessa comunidade discursiva.
[4] Barthes é taxativo ao dizer que se há algum lugar de Poder, este é o da língua. Para mais, conferir BARTHES (1998).
[5] O texto contido abaixo do asterisco é de autoria de Augusto Joaquim em comentário ao trecho que o precede, da própria Llansol. Para maiores informações, conferir a já citada referência.
[6] Macedo indica, neste parágrafo, através de duas notas, que não existe ainda nenhum apontamento mais profundo a respeito da disforia seniana e a perda de perspectiva do humano como centro nevrálgico do projeto humanístico no século XX e, para tanto, sugere a leitura de Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: EstaçãoLiberdade.
[7] É fundamental esclarecer que esta tese não tem a pretensão de sequer avançar no tema da influência nietzscheana em Maria Gabriela Llansol. Só o tema, em si, exigiria um trabalho de enorme e direcionando fôlego de cuja intenção, aqui, não partilho.
[8] Dentre os diversos modos de explicar essa questão, acredito que a mais eficaz seja a própria existência de um livro publicado em 2002 por Llansol, cujo título é O Senhor de Herbais e o seu subtítulo seja “Breves ensaios literários sobre a reprodução estética do mundo, e suas tentações.”
[9] Imagem cedida pelo sítio LER JORGE DE SENA http://www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena/port/). Agradeço enormemente à Gilda Santos pela autorização do uso desta imagem e à Luciana Salles pelo envio. Lê-se: Jorge de Sena: Se a sua escrita não existisse, o que teria sido a minha? Com a “cumplicidade” de Maria Gabriela Llansol. Lovaina, Dez. 73.