“Ler Sinais de Fogo – Homenagem a Jorge de Sena” foi o título do simpósio que, no passado sábado, 27 de Abril [de 2010], reuniu no Casino Figueira um conjunto de especialistas em literatura e apaixonados pela obra do escritor que imortalizou a Figueira da Foz como cenário de um dos romances que marcaram o século XX português.
O administrador do Casino Figueira, Domingos Silva destacou, na sessão de abertura do evento, a importância de devolver Jorge de Sena às gerações mais idosas, e de entregá-lo às mais novas “para que conheçam e tenham orgulho no homem que pôs a sua terra no mapa”. Domingos Silva recordou ainda a génese da iniciativa, que nasceu de uma conversa com Paulo Teixeira Pinto, da Editora Guimarães, que integra o grupo Babel. Ao vice-presidente da autarquia, Carlos Monteiro, o administrador do Casino Figueira lançou o repto para que Jorge de Sena passe a constar da toponímia da cidade. “Vai sendo tempo de se preencher esta lacuna”, considerou, obtendo de imediato a concordância do vereador, que afirmou ser um acto de justiça. “Fará sentido dar resposta a este desafio, encontrando uma rua junto da praia, do Casino, que passe a ostentar o nome de Jorge de Sena”, admitiu Carlos Monteiro.
Uma gala,
75 anos depois
Domingos Silva aproveitou a oportunidade para recordar um evento que teve lugar no Casino Figueira à época da acção de Sinais de Fogo (1935-36), “a comemoração dos 60 anos do mais antigo clube português, o Ginásio Clube Português”, cujo sarau se realizou, a 23 de Junho, no hoje Salão Caffé. “É com prazer que anuncio que em Junho deste ano, 75 anos depois, o Casino Figueira vai acolher a repetição da Gala do Ginásio”, disse. O administrador do Casino Figueira destacou ainda a exposição de fotografia “de um dos grandes fotógrafos nacionais”, Alfredo Cunha, “que em Dezembro de 2009 passou, incógnito, três dias na Figueira da Foz, surpreendendo a cidade e os seus habitantes nos mais pequenos detalhes”. A exposição, de entrada livre, que pode ser vista até dia 18 de Abril, conta ainda com um painel de fotografias da Figueira dos anos 30 do século passado, fruto da “excelente colaboração do Arquivo Fotográfico municipal”, sublinhou.
Ainda na sessão de abertura do evento “Ler Sinais de Fogo – homenagem a Jorge de Sena”, coube a José Carlos Seabra Ferreira, em nome de Paulo Teixeira Pinto (que não pôde comparecer), realçar a missão assumida pela Babel: “Alcançar o melhor. E isso significava desde logo ser a editora de Jorge de Sena”, explicou, afirmando-se grato ao Casino Figueira por se associar à tarefa de “promover a leitura da obra seniana, mobilizando e convocando as sinergias intelectuais de uma plêiade de docentes nacionais e estrangeiros que, sem hesitação, se disponibilizaram para este evento memorável”. Também Sérgio Letria, director da Fundação José Saramago, elogiou “o conjunto de parcerias que culmina neste simpósio”, afirmando ser objectivo da Fundação que dirige “recuperar para o público escritores que, por motivos políticos, ideológicos ou outros, foram injustamente afastados ou esquecidos”. Sérgio Letria leu mesmo uma passagem de “O Caderno de Saramago”, em que o Nobel português escreve, a propósito de Sena, “que volte Jorge de Sena, que volte já. Voltou, enfim.”
Quem também não escondeu a satisfação por este regresso, não apenas aos escaparates das livrarias, mas à leitura dos portugueses, foi o editor da Guimarães-grupo Babel. Vasco Silva anunciou o conjunto de obras de Sena a lançar no mercado, num projecto com coordenação científica de Jorge Fazenda Lourenço, que conta não apenas com reedições mas também com a publicação de inéditos, nomeadamente entrevistas e correspondência. O mercado estrangeiro, nomeadamente o Brasil, integra as intenções editoriais da Babel.
Em representação da viúva de Jorge Sena, Mécia de Sena, falou Jorge Fazenda Lourenço, que destacou, no evento, a presença de “leitores qualificados, amadores no melhor sentido da palavra, da obra de Jorge de Sena”, para um evento que considerou “uma pequena grande conspiração a favor do nosso poeta e autor”.
Coube ao “conhecido barítono, poeta e autor da primeira tese de doutoramento em Portugal sobre «Sinais de Fogo», defendida em Março deste ano”, Jorge Vaz de Carvalho, ser orador da primeira conferência do dia, subordinada ao tema do “Realismo e poesia em Sinais de Fogo de Jorge de Sena”. Vaz de Carvalho, do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa, sublinhou a “dimensão ética” presente em “Sinais de Fogo”, e a sua defesa de um realismo que veio alterar a leitura da literatura como “menos do que a vida”.
Num dia dedicado a Jorge de Sena, José Luís Garcia Martin, poeta, escritor, crítico literário espanhol e professor de literatura da Universidade de Oviedo (Espanha), lembrou que “já antes de Sinais de Fogo a Figueira da Foz fazia parte da literatura espanhola”, já que a Praia da Claridade era destino de Verão de Miguel de Unamuno, poeta que deu a conhecer aos espanhóis autores como Camilo Castelo Branco e Teixeira de Pascoaes, entre outros. O catedrático espanhol sublinhou que “ser português é também não querer ser espanhol”, e reconheceu que esse sentimento “é um eco da História”, algo que ficou do tempo da dinastia filipina e que só se compreende à luz de “uma relação complexa, porque tem muito de familiar”. Ainda assim, o docente defendeu uma “identidade cultural ibérica”, que integra nomes portugueses, “sem os quais não se compreende a poesia espanhola dos anos 70 e seguintes: o universal Fernando Pessoa, que é português e é do mundo; o poeta puro, que polia o poema como música, Eugénio de Andrade, e o homem total, o polemista, Jorge de Sena”.
Desmistificar
Jorge de Sena
A iniciativa “Ler Sinais de Fogo – Homenagem a Jorge de Sena” não foi um desfilar de loas ao escritor que perpetuou a Figueira da Foz dos anos 30 do século XX. Recorde-se que “Sinais de Fogo” só foi publicado após a morte de Sena, e sem ter sido revisto. Assim, ao longo do dia, muitos dos estudiosos da obra de Sena se referiram a “Sinais de Fogo” como uma espécie de “capelas imperfeitas ou inacabadas” em versão literária, ou seja, uma obra-prima que não pôde contar com a mestria do seu autor até ao fim. Seabra Ferreira referiu-se-lhe como um romance que, numa primeira leitura, se lhe afigurou como “muito tradicional, na composição narrativa, no tratamento do erótico e na análise dos personagens”, mas que ao mesmo tempo o seduzia “com uma força tremenda, sem que soubesse bem porquê”. Considerando que o romance de Sena não cabe nas tipologias literárias estanques, Seabra Ferreira situou-o entre o romance histórico e o romance de costumes, entre o neo-realismo, o psicologismo e a auto-ficção, garantindo que, para o leitor, “o valor deste romance cresce com o tempo”, à medida que se vai acedendo “à consciência da consciência”. Mas foi António Manuel Ferreira, da Universidade de Aveiro, quem mais desapaixonadamente falou sobre Jorge de Sena, “Sinais de Fogo” e a Figueira da Foz. O professor, convidado no âmbito do painel sobre a “Aparição da Poesia em Sinais de Fogo”, começou por se apresentar como “um homem da serra”, a quem a praia nunca disse nada, e de cujas memórias de infância a Figueira da Foz está ausente. “Não sou fanático nem estudioso da obra de Sena, por quem tenho uma fria reverência”, disse, admitindo gostar muito, ainda assim, de “Sinais de Fogo”. Mas, acrescentou, “não vejo razões para ser considerado um dos melhores romances portugueses do século XX… aliás, se assim fosse, seria muito pobre a produção romanesca desse século”, considerou. Sobre a poesia que surge em “Sinais de Fogo”, o docente da Universidade de Aveiro tem-na como “uma maldição”, algo que o personagem, Jorge, dispensaria de bom grado, “porque a poesia não substitui a vida, nunca”, garantiu. Segundo este especialista, “Sinais de Fogo” revela “demasiadamente” as vertentes de poeta e de ensaísta do seu autor. “Quem começa a escrever poesia, como acontece no romance com Jorge, não escreve assim”, explicou, defendendo também que em “Sinais de Fogo” há “uma intromissão excessiva do ensaísta Jorge de Sena”, nas reflexões do personagem principal, “que não são compatíveis com a idade”, sustentou. “Na minha opinião, isto faz periclitar a verosimilhança (da obra)”, concluiu, não sem antes sublinhar que Jorge de Sena “era um intelectual como não houve mais, com uma enorme capacidade de trabalho… e nove filhos”.
um livro e um filme – duas obras distintas
O dia dedicado a “Sinais de Fogo” terminou com a projecção do filme homónimo, de Luís Filipe Rocha, de 1995. Para o apresentar a plateia contou com a opinião avalizada de Eugénia Vasques , professora e crítica de teatro portuguesa, e de Jorge Leitão Ramos, crítico de cinema. Eugénia Vasques lamentou que o filme tenha o mesmo nome do livro, por considerá-los duas obras distintas, ainda que o filme parta do livro. “Mas não há uma adaptação do livro para guião, há uma construção, a partir de alguma da matéria do livro, de um verdadeiro guião”, defendeu, lembrando que o filme “tem muitas e subtis referências à própria vida de Jorge e Mécia de Sena”, que não constam do livro. A distinção entre a obra literária e a cinematográfica foi partilhada por Leitão Ramos, que afirmou que “o romance Sinais de Fogo não cabe no filme”, desde logo porque o livro está escrito na primeira pessoa e o filme não tem um narrador na primeira pessoa. “E ainda bem, porque normalmente os filmes que têm um narrador na primeira pessoa são muito maus”, disse. Assim, o filme “é um olhar exterior, que está no código genético do cinema”, uma obra sobre “o fim da inocência, com sexo de um lado e política do outro”, que apresenta uma visão inovadora à época, a de “uma fase do PCP iminentemente desmantelável e sem organização formal”, ao mesmo tempo que se destaca por “uma cenografia, um guarda-roupa e uma excelente reconstituição da época, exemplar e rara no cinema português”, concluiu.