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1937/10/03 – A Bordo da Sagres: o cadete Jorge de Sena e a viagem do Navio-Escola

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Sonho acalentado por Jorge de Sena, e estimulado pela família, seu ingresso na Escola Naval mostrou-se inicialmente auspicioso: tendo obtido as melhores classificações, tornou-se o Chefe do “Curso do Condestável”, cuja viagem “de instrução e adaptação” no navio-escola Sagres se inicia a 1º de outubro de 1937 e dura 5 meses — ao fim dos quais, por motivos ainda nebulosos, é excluído da Armada. Este episódio traumático gera persistente mágoa — perceptível, por exemplo, no vasto campo semântico do roubar, furtar, excluir, expulsar, negar (e afins) que percorre toda a sua obra, a começar pelo conto “Caim” (de Génesis), escrito em 38, e pelas centenas de poemas que escreveu, algo catarticamente, na sequência do ocorrido.
Buscando lançar luzes sobre o fato, transcrevemos abaixo notícia sobre a partida da Sagres, estampada no Diário de Notícias, seguida de dois comentários de Mécia de Sena.

 

A CAMINHO DA ÁFRICA E DA AMÉRICA DO SUL
largou ontem do Tejo o navio-escola “Sagres” com os novos cadetes

O navio-escola “Sagres” empreendeu ontem mais um grande cruzeiro de instrução e, ao mesmo tempo, de soberania e de representação diplomática: largou de rumo a Cabo Verde, ao Brasil e a Angola, com demora de cinco meses.
O barco, que conduz a bordo os novos cadetes da Escola Naval, em viagem de adaptação, estava fundeado desde a tarde de anteontem em frente de S. José de Ribamar pronto para a “largada”. O sr. ministro da Marinha, a quem a preparação técnica e moral dos futuros oficiais merece um especial cuidado, quis ir a bordo antes da partida dizer algumas palavras aos cadetes e à tripulação da “Sagres”.
Cerca das 11 e 30, embarcaram no Centro da Aviação Naval do Bom Sucesso, para bordo daquele navio, a fim de aguardarem e receberem o chefe da Armada, os srs. contra-almirantes Mata e Oliveira, major-general da Armada; Ramalho Ortigão, chefe do Estado Maior Naval; Almeida Henriques, superintendente da Armada, e João Baptista de Barros, comandante da Escola Naval, acompanhados pelos respectivos ajudantes.
Pouco antes do meio-dia chegou ao Centro da Aviação Naval o sr. ministro da Marinha, acompanhado também pelos seus ajudantes srs. capitão-tenente Duarte Silva e 1o. tenente Henrique dos Santos Tenreiro. Formou a guarda e acorreram a receber o sr. comandante Ortins de Bettencourt, os srs. capitão-tenente José Cabral, director da Aeronáutica Naval, 1o. tenente Costa Gomes, comandante do Centro, 2o. tenente Bernardino Nogueira, 2o. comandante, e todos os restantes oficiais que ali prestam serviço.
Após os cumprimentos, o sr. ministro da Marinha embarcou na vedeta da Presidência da República, a qual largou imediatamente em direcção à “Sagres”, cuja guranição formou ao avistar-se de bordo o pavilhão ministerial.
Ao portaló do navio-escola foi o ministro recebido e saudado pelo comandante interino sr. 1o. tenente João Pais, visto estar ainda em convalescença o comandante efectivo sr. capitão-tenente, Gabriel Teixeira.
No convés encontravam-se os almirantes e os oficiais da “Sagres” e, a certa distância, os cadetes em uniforme branco. Depois de receber os cumprimentos de todos os presentes, o chefe da Armada percorreu algumas dependências do barco, que sofreram ultimamente importantes beneficiações e que se apresentam por forma modelar.
Finda a visita, o sr. comandante Ortins de Bettencourt desceu à câmara do navio onde, na presença de todos os oficiais e cadetes proferiu um discurso de alto significado político.

Importantes afirmações do sr. ministro da Marinha
Começou o sr. ministro da Marinha por lembrar a transformação que vão sofrendo os serviços da Escola Naval, de harmonia com os princípios orientadores da Revolução Nacional quanto à valorização da mocidade, afirmando a propósito:
“Mussolini disse há dias no seu discurso de Berlim que o povo alemão e o povo italiano se baseiam na sua juventude, dedicada num espírito de disciplina, de coragem, de força, de resistência, de amor à Pátria e de desgosto pela vida fácil. O desgosto pela vida fácil; o gosto pelos riscos e perigos; o prazer da disciplina; a alegria do esforço; o amor da Pátria: eis os traços mais salientes da formação do caracter militar; eis as primeiras regras do bem servir. Pois bem, a reforma da Escola Naval pretendeu pôr em foco a importância das qualidades morais e levá-las ao seu desenvolvimento e apuramento; quis atender às realidades da vida; teve em vista contribuir fortemente para transformar a Armada numa verdadeira força ao serviço da Nação, pronta, disciplinada, patriótica: procurou integrá-la no espírito de renovação nacional”.
Outras afirmações:
“Queremos uma Marinha forte e prestigiada – instrumento útil de política externa em tempo de paz, e de defesa da Pátria se tivermos de sofrer a guerra – e havemos de tê-la, porque a havemos de fazer: nós, os veteranos com a nossa experiência e a nossa dedicação, e vós, moços, cadetes, com a vossa fé, o vosso entusiasmo, a vossa juventude: simplesmente, ela se não fará com o gosto da vida fácil e o desprazer do esforço, com o desânimo e o abandono, com a indisciplina e o aborrecimento das virtudes militares”.
O ministro destacou depois a importância da viagem que a “Sagres” ia iniciar, dizendo:
“A rota que vos foi marcada, neste cruzeiro de cinco meses, levar-vos-á a um porto do Brasil, Pátria irmã onde trabalham e vivem muitos portugueses que, orgulhosos de o serem e cheios de saudade, seguem com devoção, com carinho, com ardente interesse, o engrandecimento de Portugal.
Transmiti ao Brasil os nossos sentimentos de simpatia, de estima e de admiração, e aos nossos compatriotas o terno afecto de irmãos.
Com as terras portuguesas de além-mar e com os portugueses que nela labutam sêde traço de ligação; que, ao ver-vos, esses portugueses sintam que há continuidade entre a terra de onde partis e aquela aonde chegais.
Faço votos para que tenhais uma feliz viagem. Estes votos, estendo-os a todos aqueles que seguem na “Sagres”, ao serviço da Pátria; a v. ex.a sr. comandante interino, encarrego de os transmitir em ordem ao navio”.
Falando depois propriamente para os cadetes, lembrou-lhes os deveres militares e as qualidades cívicas que devem constituir a formação do caracter do soldado e do marinheiro, dizendo:
“Quero prevenir-vos muito especialmente contra um mau costume que, fazendo arraial por toda a parte, veio introduzir-se e fixar-se também no meio naval: a crítica e a depreciação de toda a acção e designadamente das ordens e dos actos dos chefes.
Combatei viva e tenazmente este vício, de consequências sempre perniciosas e contrário à disciplina e ao próprio espírito militar; a sua prática constitue [sic] mesmo uma deslealdade e uma falsidade quando são desconhecidos os fundamentos e as circunstâncias que levaram a dar a ordem ou a praticar o acto criticado.
Escolhestes uma carreira que exige o exercício de altas virtudes e vocação própria. Se neste período de experiência, ou durante a vossa aprendizagem sentirdes que vos falta temperamento, tende a coragem de desistir, prestando assim um serviço a vós mesmos e à Pátria, pois podeis triunfar e ser mais úteis noutro sector da actividade nacional.
É vosso patrono o Condestável D. Nuno Alvares Pereira: estudai a sua vida e meditai nas altas virtudes que incarnou de forma tão perfeita e completa. São dignos de relevo especial: o amor da Pátria; a lealdade para com o rei ao serviço de quem se consagrou totalmente; o sentimento do dever, pondo de parte agravos e injustiças quando se tratava de cumprir; viver sóbrio e cristão; desprendimento dos bens e dos prazeres terrenos; iniciativa; energia; decisão; coragem intemerata; vontade rija como o aço; reconhecimento e recompensa dos serviços prestados pela sua gente; bondade, sem prejuízo da justiça e do serviço de el-rei; actividade; moral inflexível; confiança em si e fé em Deus; rigidez de princípios e aplicação rigorosa da disciplina; alma aberta a todos os sentimentos nobres e fechada às mesquinharias; temperamento franco, leal, alegre e sereno, nunca o abandonando o bom humor nem mesmo nos lances mais difíceis; inacessibilidade ao desânimo; insensibilidade ao sofrimento próprio.
Diz Oliveira Martins que para o Condestável: tudo era religioso, desde os costumes privados, até à disciplina guerreira, até ao culto da Pátria, até ao amor do rei, até finalmente à própria vida que votara a uma missão transcendente e ideal.
Que a sua vida seja a fonte onde haveis de temperar a alma para o serviço da Pátria e as suas virtudes constituam o modelo por onde moldar as vossas!”.

A largada da “Sagres” foi um espectaculo interessante
O sr. 1o. tenente João País proferiu então algumas palavras de agradecimento afirmando a sua esperança de que todos, mais uma vez, saberão cumprir o seu dever e honrar a Armada.
O sr. ministro da Marinha entregou então ao navio um exemplar da “História da Colonização Portuguesa no Brasil”, oferta do sr. ministro da Educação Nacional e, aos cadetes, exemplares da obra “A Vida de Nun’Alvares”, de Oliveira Martins, nos quais escreveu as seguintes palavras:
“Neste livro encontrará inspiração para a sua vida de soldado e de marinheiro da Pátria, tomando como guia e exemplo as altas virtudes do Santo Condestável. (a) Manuel Ortins de Bettencourt”.
O sr. ministro e os almirantes abandonaram depois o navio, cuja artelharia [sic] deu as salvas da ordenança, formando novamente a guarnição.
Ao meio da tarde a “Sagres” suspendeu e navegou a motor de rumo à barra. Uma vez ao largo e aproveitando a ventania rija que soprava, o elegante navio soltou todo o pano e aproou a sudoeste. Com as grandes velas enfonadas a “Sagres” ostentava na sua beleza cênica qualquer coisa de evocativo.
O primeiro porto de escala será S. Vicente de Cabo Verde, seguindo-se Santos (Brasil) portos de Angola, novamente Cabo Verde e, por fim, Lisboa.

(Diário de Notícias, 3/10/1937)
 

 

A propósito desta notícia, Mécia comenta:

=> Lendo essa notícia da partida da Sagres, entende-se claramente que a orientação que ia dar-se aos cadetes tinha novas directivas (e levando em conta que o desencadeamento delas estava ligado à “Revolta dos barcos”, que acontecera no ano anterior, e esta era a primeira viagem depois desse acontecimento).

=> A bordo, houve variados acidentes, a ponto de, por duas vezes, os marinheiros terem feito “levantamento de rancho”, um dos quais em protesto do tratamento que estava a ser dado aos cadetes.