Notas sobre O Físico Prodigioso – algumas figuras

Neste ensaio, Pedro Eiras relê o percurso de iniciação vivido pelo protagonista de O Físico Prodigioso a partir de “figuras” que elege como fulcrais. Herói ao mesmo tempo fáustico e inseguro, experimental e diabólico, o físico acaba por descobrir, para lá do apetite pela vida, a aceitação da morte. Para viver a física, deve recusar a metafísica: ser terra, corpo, desejo e dissolução. 

Desenho de João da Câmara Leme (1930-1984)
Desenho de João da Câmara Leme (1930-1984)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Com o passar dos anos, duas observações pessoais que Sena fez sobressaem na minha mente. A primeira é em relação ao diabo. Uma vez num seminário ele prestou um testemunho comovido da existência duma força maligna com a qual ele tivera uma experiência pessoal. Não entrou em pormenores, mas disse-nos que essa força independente era real, e que tentou destruí-lo e que o teria vencido se Sena não tivesse mudado de rumo.

Frederick G. Williams (2007: 152)

 

1. Algumas figuras: um campo de forças.

 

Eis como se inicia O Físico Prodigioso:

 

Balanceando o erecto corpo ao passo do cavalo, vinha descendo a encosta. O sol, muito alto ainda, iluminava de crepitações o vale que, selvático, se abria ante o seu olhar que pervagava abstracto, sem distinguir o mato que floria, as pedras que rebrilhavam pardas e cinzentas, os pequenos animais que esvoaçavam, corriam, rastejavam, ou se ficavam suspensos, sem temor, fitando a mole imensa e caminhante de cavalo e cavaleiro. No fundo do vale, por entre os renques de choupos e salgueiros, entrecortada estava a chapa metálica e estreita de um rio. Foram para ele descendo, o cavaleiro, na mesma distracção absorta, sofreando o passo, que se apressava agora, do sedento cavalo, cujas narinas se dilatavam. O manso ruído de águas entre seixos e o suave dançar das folhas do arvoredo ao sopro de uma brisa ténue fizeram que o cavaleiro despertasse para o calor que sentia, o cheiro acre de suor e pó, que dele e do cavalo era mistura, e um cansaço dos membros e da boca seca. Ele próprio dirigia a descida (Sena 1966: 19)

 

Suspendamos a leitura, mesmo se este parágrafo continua, ininterrupto, atravessando várias páginas. O que acontece aqui? Certamente a verticalidade de um corpo sobre a horizontalidade de uma paisagem. Há uma colina a descer, é certo, oblíqua; mas o olhar do cavaleiro “pervagava abstracto, sem distinguir”: como se todas as diferenças deste mundo natural, ainda não humano, fossem apagadas. Pelo contrário, o cavaleiro não é indiferente, sobretudo não nos é indiferente, se toda a narrativa, embora heterodiegética, for orientada pelo seu ponto de vista, para não dizer ponto de fuga. Como se assim pudéssemos ser também nós, leitores, desde o primeiro instante, físicos prodigiosos.

Por ora, assinale-se esta verticalidade que desequilibra a paisagem; serão vários os desequilíbrios, mesmo se (ou porque) o cavaleiro está bem equilibrado na sua montada. É que este quase-centauro inaugura um regime de funcionamento da paisagem: “o cavaleiro, na mesma distracção absorta, sofreando o passo, que se apressava agora, do sedento cavalo, cujas narinas se dilatavam”, depois “o cheiro acre de suor e pó, que dele e do cavalo era mistura”, finalmente – “Ele próprio dirigia a descida”. Não será uma descrição da psique, entre o desejo do id e o domínio do ego? Ou a irrupção de uma linguagem de controlo e auto-conhecimento, inaudita na natureza, e contudo continuando a natureza? O físico, porque é dele que se trata, começa por ser aquele que tem poder sobre a física, isto é, sobre o seu próprio corpo natural ou sobre a natureza tout court. Ou talvez não. Se esta cartografia vertical do domínio é a tese da primeira página de O Físico Prodigioso, eu procurarei, aos poucos, os lugares do desdomínio.

Regresso à horizontalidade, aqui: “O sol (…) iluminava de crepitações o vale que, selvático, se abria ante o seu olhar que pervagava abstracto, sem distinguir o mato que floria, as pedras que rebrilhavam pardas e cinzentas, os pequenos animais que esvoaçavam”. O que há de estranho nesta frase? Certamente a corrente de orações relativas, a arrastarem a atenção do leitor de uns elementos para outros, agora sem centro de referência, numa quase indolente indiferença (a do próprio físico, a nossa) entre tudo o que existe. A própria frase se faz “horizontal”. Tudo nela é preciso (necessário e nítido), mas nada nela é central: o ponto de fuga transforma-se sem parar. Paisagem indiferente, e já imanente. Mas a imanência é vista do alto do cavalo (que, pelo contrário, está imerso na sede, e portanto no desejo); a focalização acaba por retornar ao físico, demasiado superior. Como escreve Luciana Stegagno Picchio, há nesta sequência um cavaleiro “qui descend la colline enveloppée de lumière: protagoniste et différent, surhomme, dès la première ligne” (1985: 122). Mas essa super-humanidade, julgo eu, é precisamente o que ainda o retira à paisagem. O cavaleiro deverá descer à terra.

 

2. Figuras: horizontalidade, verticalidade.

 

Por enquanto, guardemos esta paisagem, ou melhor, este contraste anterior à paisagem: horizontalidade indiferente de águas, plantas, bichos – verticalidade de um cavaleiro que acorda para o mundo. Não chega a ser uma imagem, mas é a promessa de todas as imagens, e também a negação delas, se o cavaleiro descer do cavalo, se o centauro se desfizer, se o desejo assaltar o super-homem.

Contra as sequências de relativas, surgirão algumas figuras de desordem. Serão de duas ordens. Por um lado, uma movimentação no espaço horizontal: o cavaleiro percorre a paisagem. E, onde quer que pise, instaura a verticalidade: transporta a verticalidade com ele, isto é, a insolência de um olhar sobre. Desequilíbrio do espaço por irrupção do super-homem. Por outro lado, uma movimentação na própria verticalidade, que resolverá aquele desequilíbrio. É assim que o cavaleiro desce da montada, conhece as três donzelas, depois Dona Urraca, ganha uma alma; mas esse percurso de queda continuará ainda, até o cavaleiro morrer e ser enterrado. Percurso de imanentização, pelo qual o homem abdica da verticalidade. Assinalemos já, não haverá simples síntese: porque do corpo irreversivelmente caído se erguerá uma roseira inebriante, gerando novos físicos. O ciclo recomeçará. Mas acho importante pensar que o físico tem de perder a verticalidade: é esta paisagem inicial que deve ser desfeita.

Movimentos na horizontalidade e na verticalidade: eis uma cartografia sem lugares, que apenas assinala devires. E também a axiologia dos breves estados: porque o cavaleiro vertical é estranho na paisagem horizontal, porque o domínio sobre o cavalo é diferente da submissão à terra. Seria preciso pensar O Físico Prodigioso a partir desta gramática de diferenças. E o espaço é tão marcante a este nível que o próprio corpo de Dona Urraca, doente, quando o físico a vê pela primeira vez, é como uma paisagem desigual; cito apenas um excerto de uma descrição maior:

 

O pescoço era longo, e magro como os ombros. Mas da cava peitoral das clavículas os seios avançavam fortes, ainda que descaídos, em curva e contracurva, que mamilos crespos, largos e escuros, coroavam. Depois, a cinta era estreita, e as ancas, ossudas e largas, espetavam levemente as pontas de seus ossos, de que a barriga fluía redondamente como que precipitando-se no umbigo que parecia aquele buraquinho a meio de uma água que se esgota. E, numa onda que se encurvava, o ventre descia para uma altura cuja outra encosta um negro matagal cobria, sumindo-se no fino vale das coxas unidas. (Sena 1966: 37)

 

É de um corpo que se trata, mas parece apenas outra paisagem, como no início do texto. O físico vê (é o narrador que enuncia, mas o ponto de vista é do físico: “O cavaleiro olhou-a assim minuciosamente” (ibidem)) o corpo de Dona Urraca como uma paisagem. Nada é indiferente: os seios são coroados por mamilos, as ancas espetam ossos, a barriga flui, o púbis cobre e desaparece entre as coxas. Nem falta, sintomaticamente, uma rede de metáforas e comparações que indiciam a paisagem natural: “a barriga fluía (…) umbigo que parecia aquele buraquinho a meio de uma água que se esgota (…) numa onda que se encurvava (…) outra encosta um negro matagal cobria, sumindo-se no fino vale”. Mar, montanha, vale, Dona Urraca é uma horizontalidade cheia de lugares verticais. Apenas falta, para nomear esta paisagem, o desejo. Ele chegará na página seguinte: “Ondas tépidas percorreram o jovem, que viu, dentro do seu próprio corpo, as deusas enovelarem-se-lhe no baixo ventre, e se abaixou para elas, com os lábios entreabertos.” O desejo chegará, sim, mas para exigir ao cavaleiro que se baixe, desmonte do seu saber teórico, seja terra. E esta descida não é uma escrita que contém o erotismo; já deve ter ficado claro que a própria escrita é o erotismo. Na expressão de Luís Adriano Carlos, se a nudez “aparece pela mediação da palavra poética, é o discurso enquanto corporalidade que (…) se torna objecto de uma erotização e de um desnudamento radical” (1999: 171).

 

3. Figuras: devir, retorno.

 

A estes movimentos no espaço é preciso, na lógica complexa da novela, sobrepor uma rede de movimentos no tempo. Estes são provocados voluntariamente pelo físico e estão investidos de desejo (enquanto o movimento no espaço pode ser apenas acidental). Eis a primeira ocorrência: “E, pondo novamente o gorro na cabeça, mandou que elas, se eram gente, o não tivessem visto ainda. O que logo aconteceu.” (Sena 1966: 26). O físico tem a possibilidade de promover um retorno ao passado, anulando a História. Mais adiante, Dona Urraca e as donzelas reconhecem nele a possibilidade de devolver à paisagem a plenitude perdida: “ele alteou bem erecto o corpo, e, fitando o céu, levou as mãos ao gorro, e disse em voz baixa, o mais firmemente que pôde: / – Que tudo reverdeça.” (60). De passagem, lembro que esta posição, “bem erecto o corpo”, ecoa o primeiro surgimento do físico na novela, quando “Balanceando o erecto corpo ao passo do cavalo, vinha descendo a encosta”; e esta sugestão fálica acentua-se com o gorro mágico, glande simbólica.

O que é provocar um retorno do tempo? Certamente uma cura analítica demasiado fácil. O físico recupera o passado para negar o presente; podemos falar de fuga. Embora se apaguem os erros cometidos, nada se corrige verdadeiramente. Os primeiros seis capítulos da novela são pródigos em retornos, mas o físico só devagar aprende a melancolia de um domínio demasiado previsível. Avança por fugas. Depressa aprenderá que a História (a sua própria história) não pode ser liminarmente recusada, que o próprio terror deve ter lugar. Por isso nos últimos seis capítulos o físico nunca fará regredir o tempo. O que há nesses capítulos, sim, é um rejuvenescimento miraculoso: torturado, exangue, o físico alcança a sepultura de Dona Urraca: “caiu de costas a seu lado e, pouco a pouco, à medida que o seu estertor se tornava mais nítido, as chagas iam desaparecendo, o cabelo crescendo louro, as feições recuperando os traços desaparecidos. Era como um deus, quando todos viram que expirara.” (1966: 131). Mas aqui o tempo não retorna, não se apaga o devir com os seus acidentes dolorosos; apenas se reivindica uma beleza que sempre esteve lá, invisível, torturada.

Eis-nos perante uma questão fulcral em Jorge de Sena. Lembrem-se as tantas páginas de Sinais de Fogo em que o protagonista, Jorge, vive obcecado com o facto de Mercedes, sua namorada, já não ser virgem. Não há solução: Jorge não é um físico prodigioso, não pode fazer com que o tempo retroceda a um momento (o verão anterior, na Figueira da Foz?) em que Mercedes seja virgem outra vez. A virgindade perdida é o ícone exacto do tempo enquanto irreversível: assim, todos os instantes são virgindades que se perdem. Na vida sexual de Mercedes, Jorge pode temer a sua própria perda de inocência, a irreparável consciência do devir. O que define, forçosamente, Sinais de Fogo como um Bildungsroman, aliás menos marcado pela decisão de vencer o tempo e o mundo quanto de resistir ao desgaste do devir, como se, na expressão de Jorge Fazenda Lourenço, “tornar-se poeta fosse um acto de resistência” (2007: 68).

Há talvez duas soluções para essa dor, apenas duas, se o retorno miraculoso do tempo não serve, como aprenderá o próprio físico. Por um lado, é possível encontrar novas virgindades mesmo no desgaste do tempo, reinventar a origem da experiência mesmo na repetição das experiências. Encontramos essa solução em Sinais de Fogo:

 

Não tinha sido afinal uma experiência nova. Tinha sido, pelo contrário, a mesma experiência de sempre, como nova. E nisso estava toda a diferença. Nisso estava que eu me sentisse tão plenamente um homem. E, se me parecia que deixara de ser uma criança, era porque, de cada vez que acontecia uma experiência destas, era como se um novo grau de consciência e de sensação nos relegasse a uma memória distante e imprestável tudo o que, antes, igual experiência tivesse sido. Todavia, distante e imprestável, não por inútil, e sim por superada. (Sena 1979: 178-179)

 

É uma pequena diferença subtil. O físico cancela realmente o tempo; Jorge, de Sinais de Fogo, cancela sem cancelar: “era como se um novo grau de consciência e de sensação nos relegasse a uma memória distante e imprestável tudo o que, antes, igual experiência tivesse sido”. O físico perde o tempo no imprestável absoluto, para não sofrer; Jorge admite o imprestável como superação, descobrindo que todas as vezes são a primeira vez, todo o tempo é agora.

Mas há uma segunda possibilidade de enfrentar a dor: não anular o tempo da experiência, como faz o físico nos primeiros seis capítulos, não encontrar o agora como superação de todos os agoras, como faz Jorge em Sinais de Fogo, mas sim, simplesmente, recusar o retorno do tempo. Aceitar o desgaste do tempo. Morrer.

 

4. Figuras: física, metafísica.

 

Estes são os movimentos de uma cartografia possível. Podemos rever estas operações falando simplesmente de física e metafísica, isto é, paisagem e humano, devir e retorno do tempo. Ou ainda: condição natural e magia, consciência e inconsciência. Cartografar, talvez, as ligações entre esses dois regimes de funcionamento do mundo; e então teríamos uma rede de desejo e medo: o desejo que convida o físico a ser terra, a desmontar da indiferença, o medo que o leva a refugiar-se na recusa da experiência. Mas o centauro é sempre duplo: desejo e domínio ao mesmo tempo. Repare-se melhor no título: O Físico Prodigioso. É evidente que “físico” não significa o que para nós significa “médico”: físico já é um compromisso entre ciência e magia; e o próprio Jorge de Sena o relembra, em prefácio: “aquele «físico» (ou médico ou mágico, no sentido medieval e ainda ulterior do termo)” (1977: 9). Mas O Físico Prodigioso é mais do que isso. Com alguma liberdade, eu parafrasearia o título assim: o físico metafísico. Porque o prodígio é precisamente a negação da física; e penso que esta novela se pode resumir como uma lenta aprendizagem da recusa dos prodígios. O físico desaprende de ser prodigioso, desaprende de ser metafísico, para ser apenas físico. E esse, paradoxalmente, será o seu maior prodígio.

Um poema em prosa, datado de 1974 e incluído em Visão Perpétua, pode ser lembrado aqui, por dar o máximo de uma síntese entre devir e retorno, humano e animal:

 

Assim a Primavera chega (…) ao homem que imagina a Primavera que vê. Ao animal humano separado de todos os ciclos menos o de ser mortal. Humano porque se separou e viu as coisas e lhe deu os nomes da sua voz aprendida. Animal porque conserva em si mesmo o jogo de existir. (…)

É como se, nesse retorno imaginado com a Primavera, houvesse para o homem um retorno que não há ao espaço sem tempo mas só ciclos, em que não era ainda o ser que se tornou (Sena 1982: 209)

 

Eis o cavaleiro possível: ele já se separou para sempre da Primavera, que imagina (mais do que vê), mas permanece animal e entregue ao tempo; ele mesmo regista a Primavera como um retorno (que não depende dele) mas sabe que o seu único ciclo é o de ser mortal, ou seja, o único que não se repete. Mas nesse ser mortal existe a possibilidade de ser anterior ao “ser que se tornou”: o animal atento que “conserva em si mesmo o jogo de existir”.

Sendo assim, toda a metafísica é física. Claro que o físico prodigioso é um avatar de Fausto (para esta leitura hipertextual, ver Amorim 1999), mas um Fausto que se despoja de magia. Ele quer “ultrapassar os limites da vida humana” (Sousa 1992: 146), mas pela sua integração numa natureza imanente: ultrapassar é apenas regressar. Experiência individual, íntima, secreta. Quando o físico comenta, perante os médicos do castelo de Dona Urraca: “Mas isso são bruxedos, nunca medicinas”, um deles responde: “A fronteira entre a medicina e a bruxaria é só a da virtude e a da fé” (Sena 1966: 36). Curiosamente, devemos dar razão a este médico (que a narrativa faz por tornar antipático ou ridículo), pelo menos no seguinte sentido: a fronteira entre os saberes e as experiências é interior, passa pela virtude e pela fé, ou seja, pelo intestemunhável. Na verdade, talvez o médico esteja a dizer outra coisa: afirma que só é válida a experiência que condiz com um modelo de verdade prévio; mas o certo é que esse modelo de verdade, a haver, não pode ser verificado senão por cada qual. A fé é secreta.

O que é então a experiência imanente? Jorge de Sena escreve, no prefácio a Os Grão-Capitães:

 

no mundo actual, é cada vez mais evidente que toda e qualquer visão do mundo é estética, e que a pessoa humana nada tem a opor à arregimentação, ao conformismo, à nivelação, senão a sua própria existência que, criticamente, se forma e define, ainda que mutavelmente, não nas suas relações de aderência ou de oposição a um determinado conjunto de valores dominantes (…), mas na consciência de que nenhum sistema de valores é válido que não na pessoal verificação a que seja submetido (…). Não há valores transcendentais que mereçam mais respeito do que qualquer vida humana (…). Porque não é deles que a dignidade humana é feita, mas de muitos singelos e modestos valores imanentes (Sena 1976: 19)

 

São frases que poderiam resumir O Físico Prodigioso. Também este se define pela verificação experimental, nietzschiana?, dos valores. Com a salvaguarda fácil de uma nova virgindade sempre que desejável, é certo, mas cada vez menos certo à medida que a novela avança. De resto, nada garante, a priori, qualquer valor: Deus está ausente de O Físico Prodigioso e o Diabo é, como o próprio afirma, impotente face à criatura. Eis uma definição de imanência: mundo sem deus e sem diabo operantes, em que os valores acontecem numa retirada dos prodígios. Mas “retirada” é um termo demasiado marcado pela negatividade para servir a imanência, toda ela disponível para a experiência que a constitui. Não há imanência antes da experiência, como não há físico antes da sua auto-criação, sua poiesis, seu poema: o físico apenas existe no instante mudo em que expira, inteiramente criado por si mesmo, aceitando a morte e a dissolução. Também isso está previsto no prefácio a Os Grão-Capitães: “toda e qualquer visão do mundo é estética”. Não se trata de pensar que, entre as visões do mundo, há a visão estética – mas sim que a visão do mundo, quando existe, é imediatamente estética, criadora (de valores), prodigiosa. Mas o prodígio só se completa quando o próprio criador acaba de viver: quando o físico morre, eis a imanência por paradoxo.

Tudo isto já existe também num conto de juventude, o segundo do pequeno volume intitulado Génesis. Caim, o fratricida, é acusado por Deus; e defende-se nestes termos: “Eu nunca teria matado o meu irmão se não me tivesses provocado… Para julgar o bem e o mal! O bem e o mal!! Que sabes tu deles?! Nem sequer lambeste a árvore!! Qualquer animal sabe mais do que tu!! E o pouco que sabes aprendeste connosco!! É por isso que nos espias e nos provocas!” (Sena 1938: 37). Nestes termos, não apenas a imanência é a retirada absoluta de Deus, como Deus é aquele que nunca poderá atravessar a imanência. E não por ausência de física (este Deus paródico é suficientemente antropomórfico para ter sensações – além de sentimentos, violentos), mas por incapacidade de pensar os valores: “O bem e o mal!! Que sabes tu deles?! Nem sequer lambeste a árvore!!”. Deus não ignora a criação física, sendo seu criador; é a ausência de valor que lhe torna o universo sem sentido. Ele pode ver e ouvir, mas permanece perante o mundo como um leitor perante um texto escrito numa língua desconhecida. Nada está escondido nesse texto, mas nada alcança legibilidade.

Não sejamos demasiado severos com Deus em Jorge de Sena. Porque há outros avatares. Há, na verdade, deuses ainda mais tenebrosos, como os do México, mas também deuses imanentes, não sem monstruosidade, mas pelo menos enraizados em amor devorador, como diz Jorge de Sena numa carta a Sophia de Mello Breyner:

 

Não é, Sophia, que o mundo não esteja cheio de deuses cruéis e sanguinários – todos o foram, e continuaram a ser hipocritamente, mesmo depois de as civilizações os terem polido e habituado a não comerem carne humana (…). Mas deuses que não são de amor, ainda que amor devorador e destrutivo, são uma canalha inominável – e é a diferença entre a monstruosidade fugidia destes que agora visitastes in loco e a dos da Índia, por exemplo, cuja monstruosidade ao contrário simboliza a múltipla riqueza da vida e da morte. (Sena 1971: 117)

 

O que é um deus de “amor devorador e destrutivo”? É o único deus possível na imanência: deus não criador de Adão, Eva, Abel e Caim, mas deus destruidor de todos os sujeitos, deus despojador. Não pode haver experiência desse deus, se ele começa por desmembrar o sujeito da experiência (como Dona Urraca e as donzelas fazem ao cavalo do físico, e portanto ao próprio físico simbolizado nele). Esse deus é o próprio mundo que fere seduzindo. O sujeito, enquanto existe, só pode consentir no seu próprio desmembramento e desaparecer no turbilhão. Sabemos já que o físico resistirá, não quererá entregar-se a tal deus/deusa; preferirá fazer um retorno do tempo, ainda não está disponível para perder a sua condição de sujeito (é cedo de mais, o físico ainda não tem alma; só mais tarde se arrastará, no próprio tempo aceite, até uma vala, onde possa morrer entre os braços de uma mulher amada, amada e amante de “amor devorador e destrutivo”). O que é um sujeito que consente no seu próprio desmembramento e deixa de ser sujeito? É a forma extrema da imanência, sujeito desmontado, aceitação radical da “múltipla riqueza da vida e da morte” – leia-se com rigor: da vida e da morte.

Vários ensaístas descrevem o gesto de aceitação em Jorge de Sena. Recentemente, Fernando Pinto do Amaral encontra em Sena “um desespero recortado num universo por vezes quase beckettiano e despido de todas as ilusões soteriológicas quanto à possibilidade de redenção humana”, mas onde existe “todavia uma estranha serenidade, só possível para lá do desespero” (2007: 30-31). Horácio Costa afirma “a inaplicabilidade da noção de conflito à personagem do Físico, já que para ele sua condição inominável e dual entre ser e não ser (…) não se apresenta como conflituosidade neurótica, e sim como algo constitutivo, aceito tal-qualmente, antípoda da moralidade e mesmo da psicologia burguesas (…) o Físico assume e goza a sua fragmentariedade que é, em si, sua identidade.” (1992: 176-177). Finalmente, lembraria que Eduardo Lourenço descreve Jorge de Sena inspirado por “Um sol ofuscante, exigindo pelo seu esplendor uma ética solar, o dever supremo e tão raro de aceitar as coisas como elas são – as coisas e o que julgamos sentir ou pensar sobre elas – antes que nós as escureçamos imaginando-as melhores ou outras.” (1999: 44). Como em Nietzsche e em D. H. Lawrence, Jorge de Sena obedece ao dever de “aceitar as coisas como elas são”, isto é, sem Deus nem Diabo (ou com um mero Diabo impotente); e não para recusar a transmutação de valores – pois o físico prodigioso aprende tudo do bem e do mal, ele não apenas lambe a árvore da ciência mas inteiramente a devora e encarna.

E contudo, segundo Eduardo Lourenço, há também um “sol negro que preferimos imaginar como mera sombra para evitar o terror e o pânico que o seu mero pensamento destila nas nossas almas pouco heróicas”. A literatura não seria sol ofuscante nem sol negro, mas sim “a existência mesma, escrita, dita e, antes de tudo, já sofrida aquém ou além do mal, como exorcismo desses dois sóis” (1999: 45). Subtileza fundamental: Jorge de Sena não é nenhum dos sóis, mas o exorcismo simultâneo de ambos, a perda de si na sombra que cada um dos dois projecta, fim do sujeito, dissolução consentida, desdomínio.

 

5. Imanência e dúvida.

 

Em vários livros, Giorgio Agamben descreve a melancólica paisagem após Hoffmansthal, Kafka, Walser, a linguagem em ruínas que permaneceu, mas que se defende de si própria por uma ironia triste de pequenos subterfúgios. Ora, essa ironia salva a modernidade de si mesma, jogando com inocência um jogo de desespero. As personagens de Walser, por exemplo, passeiam e deixam que dos seus lábios se vão escapando, sem malícia sequer, fragmentos de desejo logo obsoletos, queixumes sem destinatário, notações de um real inapreensível e incomunicável. Neste mundo obscuro não há revelação, nem sequer desespero em carne viva para dizer essa aporia. Por isso Walser, ao seu modo, é ainda luminoso. Aceita a sua condição de parodiador: está sempre ao lado, parà, nunca no centro da verdade ou da linguagem. De resto, afirma Agamben, e esta seria a lei do modernismo, a sua falência e a sua salvação, “Do mistério não pode surgir senão paródia, qualquer outra tentativa para o invocar cai no mau gosto ou na ênfase. (…) Face ao mistério, a criação artística não pode fazer-se senão caricatura” (2005: 58). A paródia não tem nada a ver, claro, com o rebaixamento do objecto – até porque não há outro objecto senão o da paródia. A paródia é a lei da impossibilidade (“é essencial à paródia o pressuposto da inatingibilidade do seu objecto” (65)), mas também o espaço de liberdade possível.

Dir-se-ia que Jorge de Sena recusa por inteiro tal modelo. Dir-se-ia que, como o seu físico, opta por fazer um retorno miraculoso do tempo, anulando a História desse modernismo aporético (ele que foi um leitor tão atento de Pessoa) e regressando (por uma nova virgindade) a… qual literatura? talvez a um momento anterior à literatura, em que a língua é divina. O físico prodigioso, com a sua vontade erótica, não pode fazer concessões. Tudo aí deve ser inteiramente afirmado, enquanto em Walser qualquer enunciado completo fica sempre pela metade. Estratégia literária e histórica assumida, de combate, em Sena: ser inteiro em todas as frentes, aceitando a própria dor; e em Walser: hesitar na própria hesitação, anestesiando a censura moral. Mas é em busca de desdomínios em Jorge de Sena que parto de novo, suspeitando que, sob a afirmação erótica e sobre-humana do desejo, se esconde a condição paródica de Walser. Mesmo quando Jorge de Sena exige a própria coisa, no seu lugar e no seu nome, pergunto se não é parà, ao lado, de viès, hesitando, que escreve.

Por exemplo, Jorge de Sena exige o próprio corpo, não fantasmas mandatários, não sombras ou sugestões veladas – mas o próprio corpo, insubstituível, como tão raramente – ou nunca – acontecia na literatura portuguesa (ou acontecia por via de um gozo escatológico ainda demasiado preso aos mesmos padrões que quer negar, como em Bocage; ou por sucessões de véus que acabam por mostrar sem dizer, como em Eça; ou por artificial mostração em jeito de exercício, como no Epithalamium de Pessoa…). E contudo, na maior frontalidade física, eis como Dona Urraca descreve o corpo do físico: “o que me curou foi poder amar-te sem te ver, sendo tu o mesmo corpo maravilhoso que eu tinha visto e que nunca é tão maravilhoso quanto se imagina que poderá ser. Invisível, foste muito mais que tudo o que, visível, me prometias.” (Sena 1966: 50). É com um sonho, não com um corpo, que Dona Urraca faz amor e se salva. Il n’y a pas de rapport sexuel (Lacan 1975), de facto, mas talvez porque a relação sexual, sugere Jean-Luc Nancy (2001), não se limita a “haver”, verbo do domínio do ôntico, quando a relação com o outro é ontológica. Seja como for, é com o seu próprio fantasma que Dona Urraca faz amor, e isso a salva. Ela mesma é uma física prodigiosa, e o prodígio é o corpo invisível que ela ama, amando-o por ser invisível, por mais-que-haver. E isso é “uma figuração concreta da invisibilidade do demoníaco em tensa relação com a visibilidade do humano”, como escreve Luís Adriano Carlos (1999: 56).

Por isso não há a própria coisa, o próprio corpo, a partir do momento da cisão em que o desejo se faz como lugar do outro. Nem sequer simples narcisismo existe; Dona Urraca diz ao físico: “Quando te contemplavas, não era a ti que tu contemplavas, mas o que tu serias para quem te contemplasse…” (Sena 1966: 51). É parà, ao lado do corpo, que se encontra o desejo, no outro. Também este desdomínio o físico terá de aprender, e com medo.

Medo – porque o outro se faz Bacante: “Aquelas mulheres eram bruxas. Ele tinha dormido com uma bruxa. Eram tudo bruxas de um castelo infernal. (…) E mandou que tudo voltasse ao momento em que ele fizera reverdecer a clareira.” (Sena 1966: 62). Como se sabe, não há bruxas, mas mulheres que os homens receiam e transformam, para terem bodes expiatórios, em bruxas. É um medo primário que o físico sente, escudando-se, mais uma vez, no cómodo retorno mágico do tempo: a clareira reverdecida, a virgindade recuperada, a cisão dos sexos nula. Cura analítica e a-histórica, que não é uma cura, mas o sintoma de um trauma. Por outro lado, o físico descobre que Dona Urraca e as donzelas mataram e enterraram muitos homens; é a inversão óbvia do mito do Barba-Azul; e portanto a expressão alucinada de um pavor masculino: também eu serei assassinado, também eu serei morto. Moisés Espírito Santo mostra, em A Religião Popular Portuguesa (1984), que as viúvas do Norte de Portugal eram inconscientemente acusadas pela comunidade de terem assassinado os respectivos maridos. De morte natural nunca ninguém morreu…

O super-herói perde o domínio dos seus prodígios: é a mulher ou deusa que o dirige agora, em terror. Terá de ser o diabo a explicar-lhe: “Criança que tu és… Elas amam-te e querem-te como mulheres. E foi por ter feito de ti um homem, que ela queria devorar-te… E o teu cavalo eras tu mesmo, na fome e na sede de amor, que, naquele castelo, elas sofrem. Porque não há homens no castelo, (…) Todos eles foram mortos como tu viste matarem-te o cavalo.” (Sena 1966: 63). Desmontagem rara de uma metáfora, para uso de físicos inexperientes e receosos. É certamente a primeira vez que o diabo impotente e as mulheres solitárias têm mais poder e consciência do que o físico; e esta fraqueza súbita tem a ver com o momento perigoso da assunção de uma masculinidade que se quer preservar (donde o medo da castração, que aqui é apenas entrega de si a um “amor devorador e destrutivo”, divino).

Pelo contrário, o físico permanecerá forte enquanto renunciar a uma cartografia do erotismo. Ele próprio devém andrógino para curar Urraca: “Os físicos que o sangrassem para um banho, que ela tomaria, do seu sangue com água morna. (…) E que ela, segura pelos pés e pelos ombros, sete vezes fosse mergulhada, com cabeça e tudo, nessa água da sua castidade. Entretanto, ele ficaria ali deitado, nu, na cama dela” (Sena 1966: 38). Retirada a metáfora crística, há aqui um tornar-se mulher do físico: uma perda de sangue que é “água da sua castidade”, rompimento de hímen. Parà: o físico deita-se na cama dela, o físico é ela mesma.

 

6. Outra dúvida, ou a figura do contágio.

 

Há talvez outra figura para redescrever este deslocamento parà, este desdomínio: o contágio. Nele confluem todas as figuras vistas até aqui, incluindo a indefinição do sujeito, o primeiro a desaparecer no contágio. Não há sujeito, há um corpo tomado pelos outros. Mesmo os deslocamentos no espaço horizontal ou vertical são ainda demasiado dominados por um eu que os realizasse. Mas doravante só haverá misturas, amálgamas, a alegria da dissolução:

 

Ela alongou-se contra ele, e assim ficaram quietos, abraçados. Os membros do tribunal registaram a imobilidade absoluta deles. De súbito, um estremecimento os percorreu e um estertor ecoou. E a confiança regimental nos cintos oficiais, na verdade infalíveis, não deu ao tribunal a ideia de que eles se haviam possuído. O silêncio e a imobilidade voltaram logo. (…) Era mais do que um corpo flácido: um cadáver. Não era, porém, Dona Urraca. Ou era. Mas os longos cabelos estavam louros, e as feições defuntas eram as dele. (Sena 1966: 98)

 

O contágio não é a passagem de um testemunho ou um atributo, uma correcção gramatical que disponha com maior justeza substantivos e adjectivos. Não: o contágio arrebata o próprio nome no seu todo, tornando físico o que era Urraca. Incipit Carnaval, o mais sério dos Carnavais, que é também carne, vale!, o sim erótico que é o fim dos sujeitos. O tabu propaga-se do físico para Urraca (mas já não há Urraca, só físico), depois para os monges (que deixam de o ser): “Afastaram-se um do outro, desconfiados e gelados de medo. Cada um pegou de um círio, e veio então observar o rosto do outro. Apesar dos capuzes, via-se que estavam louros. Os rostos eram juvenis, resplandecentes, e cada um reconhecia o rosto que haviam destruído.” (102). O carrasco teme (ou deseja?) ser a vítima; e nesse momento em que se coloca, com terror ou fascínio, no lugar do outro, ele já é o outro e deixa de ser senhor da sua própria casa.

É preciso não pensar o contágio como um acidente exterior, que se acrescentasse impunemente à essência de um sujeito, mas como a dissolução desejada do próprio sujeito. Os inquisidores não são vítimas de uma heresia alheia, mas vítimas da sua própria vontade de auto-dissolução, a que chamam, baldadamente, heresia. O contágio, em suma, não ataca um corpo, mas é o próprio corpo destruindo-se na ferocidade do desejo. Por isso a peste que assolará toda esta população é, como em Artaud, “une maladie qui serait une sorte d’entité psychique et ne serait pas apportée par un virus” (1938: 26); ou ainda: “Si le théâtre essentiel est comme la peste, ce n’est pas parce qu’il est contagieux, mais parce que comme la peste il est la révélation (…) d’un fond de cruauté latente par lequel se localisent sur un individu ou sur un peuple toutes les possibilités perverses de l’esprit” (44). Todo o sujeito está doente (sem contacto) de um fundo de crueldade latente, que já é dele antes de eclodir, e que eclode arrebatando-lhe a subjectividade. O físico só é perigoso se os inquisidores forem vulneráveis ao desejo.

E são-no, como se prova nas confissões inesperadas de Frei Bernardo (de Claraval?…) ao preferir ficar com a cara do físico (Sena 1966: 120). A única diferença entre os inquisidores e o físico é a assunção livre do desejo neste e o ressentimento naqueles. Como escreve Ana Sofia Laranjinha, “O absurdo da missão de separar o Bem do Mal, atribuição dos juízes, é revelado quando os corpos se tornam intermutáveis. (…) Esta é a prova final de que o Bem e o Mal são indissociáveis” (1993: 241). Ou se contaminam um ao outro. Aquele mesmo que suspeita, em suma, perde-se e deixa-se contaminar: não há sujeito, só contágio. Todas as paixões, mesmo o ódio e a recusa, são compromisso e aceitação do que é violentamente negado. Os inquisidores recusam a liberdade erótica do físico, mas essa recusa esconde um desejo; do mesmo modo, mas em sentido inverso, Jorge de Sena suspeita de que o anti-clericalismo de um José Régio pode esconder uma aceitação radical da mesma Igreja que pretende negar. Eis um excerto muito rico de uma carta de Sena a Régio, sobre A Chaga do Lado:

 

certo anti-clericalismo (digamos assim), no mais lato sentido embora, é não só uma atitude ultrapassada, como pode até ser tomada como indício de atracções contraditórias profundas, muito mais longe da repulsa que quanto a aparência iluda. A mim me parece que os cismáticos e heterodoxos estão sempre mais livres de «cair», e que é por isso mesmo que contra eles se concitaram as iras sacerdotais. Não sei, porque não vi, se os jesuítas e quejandos que durante largo tempo o namoraram e flirtaram com a sua obra tão desvanecidamente, perceberam isto mesmo e esfregaram as mãos com a pomada da esperança. A V., o que ainda lhe há-de valer um dia à hora da morte, no seu buraco – mesmo de Portalegre, é não ter, na ocasião terrível, quem pelo lado de dentro lhes abra a porta. (…) Pela minha parte, que a sua alma se «salvasse» seria um dos grandes desgostos da minha vida. (Sena 1954: 125-126)

 

Não me posso demorar, como quereria, sobre esta carta problemática. Quem pode, na verdade, desejar a um amigo que a sua alma se perca? Que significado tem este gesto de desejo sobre a própria amizade que aí se fundamenta? Como se pode intervir na solidão espiritual de um outro e fazer sua a própria perdição? São perguntas que terei de abandonar sem sequer um esboço de resposta. Aproveito apenas o que Sena escreve sobre o anticlericalismo como eventuais “atracções contraditórias” por aquilo que se nega; ou sobre “cismáticos e heterodoxos (…) sempre mais livres de «cair»”. De que modo esta carta se poderia aplicar a uma leitura de O Físico Prodigioso? Porque há nesta novela anticlericalismo paródico e também cisma e heterodoxia. Poder-se-ia responder a Sena com o raciocínio da sua própria carta a Régio? Não haverá, além de incongruência entre os inquisidores, também contradição e dúvidas no físico prodigioso? Também ele, como o Zaratustra de Nietzsche, se encontra na margem difícil de um abismo, tentado, durante pelo menos seis capítulos, a negar a plenitude da sua vida.

 

7. Euforia e esperança.

 

E contudo, quanta esperança neste físico! Tudo nele está disponível. Mesmo o nome lhe falta, libertando-o. Também não terei tempo para esgotar as implicações de um diálogo entre Dona Urraca e o físico, que começa assim:

 

– Não sei o teu nome. Como te chamas, meu amado?

– Que adianta o meu nome? Que importa que o meu nome seja este ou aquele? E, na verdade, eu não tenho nome, porque o nome que me deram não é o meu. (…) Que nome me vais dar?

– Nenhum… (Sena 1966: 53)

 

As leituras críticas de O Físico Prodigioso comentam muitas vezes este diálogo belíssimo – e sempre sublinhando a possibilidade eufórica de libertação que se instaura. Maria de Fátima Marinho comenta: “O físico não tem outro nome para além deste. Nomear seria identificar definitivamente o eu com o eu, rejeitar o Duplo” (1981: 147). E Jorge Fazenda Lourenço pergunta: “Como, no amor, oferecer-se à posse de outro sem ser-se possuído? Sem diluir-se no outro? Porque ter um nome é, afinal, pertencer, a alguém, a um lugar, a si mesmo. (…) o físico, sendo o Amor, só pode ter uma identidade virtual – o nome que Dona Urraca, ou que cada um de nós, lhe quiser (souber) dar.” (1992: 131). Acrescentemos ainda o que Giorgio Agamben escreve sobre a identidade: “A pessoa é a captura da espécie e a sua ancoragem a uma substância, de forma a tornar possível a identificação. Os documentos de identidade contêm uma fotografia (ou outro dispositivo de captura da espécie). / (…) A transformação da espécie num princípio de identidade e de classificação é o pecado original da nossa cultura, o seu dispositivo mais implacável.” (2005: 81). A renúncia ao nome é uma libertação.

Avancemos para uma conclusão, o gesto provisório de um fecho de leitura, uma interrupção. Por exemplo, com esta pergunta: o que me interessa tanto em O Físico Prodigioso? Questão pessoal – resposta pessoal. Não me interessa a vitória absoluta do físico, mas a sua dúvida. Não o seu erotismo, mas o seu pudor. Não a sua vitalidade transbordante, mas a vontade de morrer.

Mas não há aqui qualquer tipo de disforia. Sem querer avançar depressa de mais, eu lembraria esse momento central da novela, o fim do capítulo VI: o físico vive com Dona Urraca, já fez o tempo regredir, já ressuscitou os mortos, já encontrou a sua libido como criação e destruição. É nesse momento de omnipotência que se dão dois acontecimentos inauditos. Em primeiro lugar (mas teremos de esperar por uma intervenção do Diabo mais adiante para o compreendermos completamente), o físico ganha uma alma. O Diabo di-lo-á assim ao inquisidor: “Não compreendes que eu teria a sua alma, logo, se fosse a alma dele o que eu quisesse? Mas eu não quero essa alma. E sabes porquê? Porque ele não a tem. (…) Sabes acaso como foi que puderam prendê-lo? Quando, por momentos, ele se cansou, e começou a ter alma ou isso a que chamam alma e eu me entretenho a devorar.” (Sena 1966: 112). Que o físico já-tenha-e-ainda-não-tenha uma alma (e que essa alma seja o resultado de experiências físicas), eis o primeiro acontecimento inaudito. O segundo, simultâneo, é este: o físico quer morrer. Eu diria que se trata do mesmo acontecimento: o físico ganha uma alma e portanto quer morrer – ter uma alma é querer morrer.

Nenhuma disforia, porém. Pelo contrário, máxima libertação. Em L’Inconscient Esthétique, Jacques Rancière observa por que razões a psicanálise recorre ao mito de Édipo como narrativa pretensamente universal para descrever a psique humana; e conclui, lendo uma peça de Ibsen também analisada por Freud, que há um modelo descritivo da experiência psíquica que não se molda por categorias como a narrativa, a acção, o desvendamento edipianos. Segundo Rancière, além da cura analítica, Freud inventa (e receia), especialmente a partir de Para Além do Princípio de Prazer, um modelo dionisíaco de psique: “Union dernière du savoir et du non-savoir, de l’agir et du pâtir, conforme à la logique de l’inconscient esthétique. La véritable cure, la véritable guérison, c’est la renonciation schopenhauerienne au vouloir-vivre, l’abandon à la mer originelle du non-vouloir” (Rancière 2001: 70). Que Freud tenha alcançado e simultaneamente rejeitado este modelo de inconsciente é sintomático. Mas talvez ele deva ser aceite por completo para ler O Físico Prodigioso sem disforia.

O certo é que este físico, capaz de fazer com que o tempo regrida, nunca mais se serve desse poder sobrenatural. Ele deseja morrer, no capítulo VI, e não faz um único gesto, físico ou metafísico, para impedir a sua dissolução como sujeito nos capítulos finais. Atentemos no capítulo VI. O físico confessa a Dona Urraca: “Disseste-me também que eu era um deus. E eu sinto que sou. Ou sinto que estou sendo. E é uma coisa insuportável.” (Sena 1966: 82). Dona Urraca insiste:

 

– Que queres tu então?

– Quero morrer.

Dona Urraca sufocou um grito, afastando-se dele.

– Não digas isso, não digas, que a tua vontade pode cumprir-se.

– Que se cumpra.

 

Dona Urraca segurou-o pelos ombros e as unhas dela cravaram-se-lhe na carne: – Não. Se queres não ser um deus, para que precisas morrer? Basta-te que voltes a ser um homem, aquele que eras, virgem e puro, antes de me conheceres. E que nada seja como foi. Pede para voltar ao momento em que as minhas donzelas ainda não te tinham visto. (82-83)

Aqui, o físico provoca um retorno do tempo, mas regressa ao presente para concluir: “Ele libertou-se dela, e sentou-se no chão, soluçando: – Para quê? Para quê? Nunca sai certo o momento a que se volta…” (85-86). Eu diria que a alma do físico começa aqui – no momento em que ele descobre, não a impotência (ele pode fazer regredir o tempo), mas a melancolia da potência. Não quer ser mais Édipo, mas seguir Schopenhauer. Descer à terra, logo devir terra. Devir terra, logo dissolver o sujeito.

Claro, há também um inescapável hipotexto bíblico: o físico deve morrer, como Cristo morreu. Francisco Cota Fagundes lê O Físico Prodigioso como reescrita dos Evangelhos, com, como texto intermediário, os mitos medievais que Jorge de Sena retirou do Orto do Esposo. E contudo, o ensaísta propõe para esta releitura um acerto nietzschiano: “Quando a multidão pretende retirar o seu corpo, num acto que evoca o de José de Arimateia em relação a Cristo, é ainda a Mãe-Terra que o retém. Quando os pestíferos vão à roseira esperando dela um milagre para os seus males, desiludem-se: o milagre não se realiza, a ordem natural do universo sobrepõe-se à ordem religiosa. O aparecimento do novo físico, que até certo ponto paraleliza a ressurreição de Cristo, tão-pouco se pode considerar religiosamente milagroso” (1981: 138). O verdadeiro prodígio, em suma, não é milagroso: é que haja físicos, física.

É depois de o físico ganhar uma alma que quer morrer. Ou então: é depois de querer morrer que ganha uma alma. Ou ainda: do mesmo modo que, escondida dentro da Inquisição, há uma vontade erótica, assim também é a vontade de morrer do físico que inventa a Inquisição que o mate. Tudo esconde afinal, não a própria coisa, mas o seu contrário: mundo de espelhos – é isso que me interessa tanto em O Físico Prodigioso. É essa vontade de imanência que é também vontade de imolação, e que só se torna verdadeiramente contagiosa (o contágio dos rostos só se dá na segunda metade da novela) a partir do momento em que o físico deseja morrer. Isto é: o físico já não se quer opor ao mundo, ou conquistá-lo. Quer apenas “resistir pela submissão” (Sena 1966: 94). E só assim vence, perdendo-se como sujeito no tempo e na terra. Só aí, paradoxalmente, existe de facto, na sua verdadeira imagem: é esse o retrato da sua alma conquistada. Isto me interessa: a alma não é uma causa, nem uma condenação. A alma é uma conquista.

 

 

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In: Metamorfoses 9.  Rio de Janeiro/ Lisboa: Caminho/ Cátedra Jorge de Sena/UFRJ, 2008, p.  37-54

[*] Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto, tem vários títulos publicados  nos campos do ensaio, do teatro e da ficção. Seu livro  Esquecer Fausto ganhou o Prêmio P.E.N. Clube Português de Ensaio/2005.