Neste artigo, Adriano Cardeal analisa o conto “Super Flumina Babylonis” a partir das referências bíblicas e clássicas que o texto mobiliza, desde o seu título, uma atualização do Salmo 136 e que servem de mote para as famosas redondilhas camonianas.
Adriano Tarra Betassa Tovani Cardeal (UNESP)[1]
De saída, necessárias são certas considerações alusivas ao conto “Super Flumina Babylonis”, que “[…] toma por base a biografia de Pedro de Mariz, impressa na edição de Os Lusíadas, comentados pelo padre Manuel Correia em 1613 […]” (NEVES, 2011, p. 901). É nesse conto que irrompe, “[…] ficcionalmente, um Camões doente e alquebrado, abandonado por todos e também pela poesia no momento de compor a paráfrase do Salmo 136 […], paráfrase essa que lhe havia sido encomendada e que o poeta transforma no seu ‘testamento poético’” (op. cit., idem, ibidem). Sobre Jorge de Sena, afirma-se que as suas histórias são “[…] narrativas nas quais se compaginam o dado imaginário, eruditivo e observado, num amálgama alegórico que […] se cristaliza num realismo mágico ou poético” (MOISÉS, 1975, p. 29), elementos que nós observamos no decurso diegético do “Super Flumina Babylonis”, acerca de cujo protagonista, Luís de Camões, não se vê demérito algum em, ainda hodiernamente, enxergá-lo qual um dos maiores representantes do denominado homo universalis, havido como “[…] tipo modélico que o Renascimento fixou […], figura ideal do homem no seu tempo […]” (SPINA, 2010, p. 40) de que, notória e fartamente, o próprio Camões participava. Ademais, é preciso apresentar-se, do“Super Flumina Babylonis”, seu motivo, tido como “[…] todo elemento linguístico que recorre com insistência na obra de um escritor […]” (WEBER apud MOISÉS, 2004, p. 310). Destarte, o motivo literário nesse conto não depende, exclusivamente, dos valores partícipes do Cristianismo, ainda que a mundividência neoplatônica propicie que se lhe irmanem muitos conceitos de que ainda se apropria o pensamento cristão: agathon (bonum/“Bem”), demiourgós (creator/“criador”), hamartia (peccatum/“pecado”), psikhé (anima/“alma”), athanasia (immortalitas/“imortalidade”), kátharsis (purgatio/“purificação”), daimon (daemon/”demônio”) etc.
Crendo-se na asserção de que “[…] o comentário é uma espécie de tradução feita previamente à interpretação, inseparável dela essencialmente, mas teoricamente podendo consistir numa operação separada”, na qual ele “[…] é tanto mais necessário quanto mais se afaste a poesia de nós, no tempo e na estrutura semântica […]” (CÂNDIDO, 2006, p. 27), façamo-lo, a contento, também quanto ao “Super Flumina Babylonis”. Outrossim, em nossas elucubrações, acompanhamos as teorias afirmadoras de que “[…] analisar é o primeiro passo ao exercício da crítica […]”, pois as análises se “[…] caracterizam pelo fato de constituírem uma vivência pessoal, que retoma ou prolonga a experiência de outro” (GUELFI, 1995, p. 7). Também, fiando-nos nas palavras doutro crítico literário, sabemos que “[…] a análise comporta, praticamente, o aspecto de comentário puro e simples, que é levantamento de dados exteriores à emoção poética […]” (CÂNDIDO, op. cit., p. 29). Além disso, é imprescindível ter-se em conta que “[…] a interpretação de um texto, quando feita por uma só pessoa, é, necessariamente, incompleta, aberta à complementação de enriquecedoras leituras […]” (GOLDSTEIN, 2011, p. 99).
Retomemos a afirmação de que, nesse conto – gênero definido como sendo “[…] uma narrativa unívoca, univalente: constitui unidade dramática, célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação” (MOISÉS, 2012, p. 268) –, há duas temáticas fulcrais a que se prende, a do Cristianismo e a do Neoplatonismo, estúltimo encetado nas considerações postas na obra Theologia Platonica, de Marsílio Ficino (1433-1499), pensador neoplatônico humanista de quem se diz que “[…] passou boa parte da vida adaptando Platão a construir elaborada defesa filosófica do Cristianismo” (GREENBLATT, 2012, p. 187), assim como “[…] seria não ver que grandes sínteses, como as de Marsílio Ficino, […] estão todas imbuídas de Cristianismo […]” (FEBVRE, 2009, p. 326). Logo, no que tange ao assunto, apreciado desde o capítulo inicial da Theologia Platonica, observam-se, como arcabouço, os caracteres anímicos encontrados por Platão de Atenas (ca. 428-347 a.C.) em seu diálogo Fédon, no qual se esboça a chamada psicagogía, doutrina que tem, por propósito, empreender explicações quanto ao destino que as almas recebem post mortem, pensamento tão importante que introduz o texto ficiniano com estes dizeres: si animus non esset immortalis, nullum animal esset infelicius homine, quer dizer, “se a alma não fosse imortal, nenhum animal seria mais infeliz do que o homem”[2] (FICINO, 1965, p. 76), asserção de que, direta ou indiretamente, parece ter-se servido Jorge de Sena quando da criação de seu “Super Flumina Babylonis”, cujo “[…] protagonista, ninguém menos do que o próprio Camões, é colocado, em cena, em angustiante e solitária miséria, […] para escrever triunfantes versos de “Sôbolos rios” (FERNANDES, 2010, p. 68).
Sobre as redondilhas “Sôbolos rios que vão”, são elas uma “[…] extensa glosa ao Salmo 136 da Bíblia, atribuído ao rei Davi […]” (op. cit., idem, ibidem). Nisso, é imprescindível abonar que, destacando-se os contextos neoplatônico e judaico-cristão, importa que “[…] a memória não se canse de voltar a Sião, porque também simboliza […] outra realidade nunca vista mas presente na Ideia, não pela memória, mas pela reminiscência” (op. cit., p. 73), conceitos (“memória”/“reminiscência”) que não apenas aparecem nos versos 204 e 205, das redondilhas camonianas (“Não me lembras na memória, / senão na reminiscência”), mas também habitam os saberes platônicos, em que “[…] a reminiscência, ou anamnese (anámnesis), ocupa lugar de importância dentro do discurso sobre a alma”, em que a “anamnese quer dizer memória”, que, por seu turno, “diz respeito a algo que se conhece e se sabe […]” (CARDOSO, 2006, p. 140), aspectos, assim, imiscuídos no “Super Flumina Babylonis”, ao que “[…] o platonismo fornece os elementos na composição do personagem […] entre lembranças do passado e sonhos imaginados […]. Herdeiro da filosofia platônica o Camões de Jorge de Sena opera um ‘concerto’ do mundo” (FERNANDES, op. cit., p. 83). Fá-lo, primordialmente, porque pretende sua alma rearranje seu objetivo precípuo, a saber, o de alçar-se rumo às esferas celestiais de onde veio. E é, nesse sentido, que se nos aparecem as preceptivas platônicas quanto à sua doutrina psicagógica, da qual está, sensivelmente, impregnado o espírito do Camões de Jorge de Sena.
Um dos recursos mais importantes e utilizados na literatura contemporânea condiz à intertextualidade, conceito que, entre outros, abarca “[…] uma noção poética e a análise está aí mais estreitamente limitada à retomada de enunciados literários (por meio de citação, alusão, desvio etc.) […]” (SAMOYAULT, 2008, p. 13), compreensão essa sem a qual é impossível alcançar, por meio de uma anagnórise, o conhecimento onomástico da personagem sobre a qual incide toda a narrativa disposta no “Super Flumina Babylonis”, já que, em nenhum momento, se apresenta o nome de Luís de Camões nesse conto, o que, por conseguinte, somente permite ao leitor razoavelmente familiarizado com a produção camoniana a percepção de que aqueles prosaicos escritos têm o maior poeta quinhentista lusitano como protagonista. É por isso, mormente, que o conhecimento correlato aos elementos intertextuais é de inegável importância no “Super Flumina Babylonis”, a fim de que, principalmente, seja possível não só comentar, mas também analisar e interpretar essa prosa de ficção por intermédio duma associação que a coloque nos patamares filosófico-teológicos correlatos ao Neoplatonismo e ao Cristianismo.
No conto “Super Flumina Babylonis”, existe um trecho em que, quase imperceptivelmente, ocorre uma intertextualidade stricto sensu, na proporção em que, imersa na narrativa do solilóquio de Luís de Camões, aparece, de súbito, a sentença “Erros meus, má fortuna, amor ardente em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna sobejaram, que, para mim, bastava Amor somente”, a qual, portanto, configura-se como um diálogo intertextual por meio de citação, que é a “[…] retomada explícita de um fragmento de texto no corpo de outro texto […]”, recurso que, na literatura contemporânea, apresenta um “[…] modo novo de citar sem os usos de marcações explícitas, prática que já vem se tornando comum. A percepção da cultura como mosaico permite a criação de textos de natureza citacional” (PAULINO et. al., 1995, p.28). Ora, seria estranho aceitar que, em se referindo ao conto de Jorge de Sena em discussão, apesar de ser a “[…] citação imediatamente identificável graças ao uso de marcas tipográficas específicas […]”, por ele não o fazer conforme as convenções da escrita, “[…] a ausência total de tipografia própria transforma a citação em plágio, cuja definição mínima poderia ser a citação sem aspas, a citação não marcada […]” (SAMOYAULT, 2008, p. 49). Não há, obviamente, atitude plagiária na prosa seniana, mas sim de criação literária afeita ao Zeitgeist da hodiernidade. Noutro passo, novamente se faz diálogo intertextual desprovido de sinais tipográficos da citação direta, algo notável nas derradeiras linhas do conto: “[…] Sobre os rios que vão por Babilônia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei…”, do que logo se percebe, e com bastante clareza, a procedência dessa passagem, a qual foi, ipsis litteris, transcrita do poema “Sôbolos rios que vão”, mais especificamente, da inicial quintilha heptassilábica de que se compõem os camonianos versos dessa religiosa poesia. Nesse ponto, observa-se a intencionalidade do narrador do conto seniano, qual seja, a de possibilitar que, ao mesmo tempo, tanto a vida quanto a obra de Luís de Camões sejam postas, à maneira de um “manuscrito autógrafo”, ou mesmo de um “legado poético-teológico”, num documento o qual pretenda, conquanto ficcionalmente, fazer-se sentir, autenticamente, feito pelas mãos de Camões. Esse efeito de suposta “autenticidade” contribui para que as emoções poéticas suscitadas pelas letras de Jorge de Sena concebam, no imaginário do público ledor de seus escritos, sensações5 as quais se associem, nalgum patamar, a percepções patético-racionais derivadas dos pesares e dos profundos padecimentos anímico-corpóreos captados por aquela já decrépita personagem.
Que dizer, então, do título “Super Flumina Babylonis”? Ele também demonstra intertextualidade citacional, mas, nesse caso, havendo-se inspirado na primeira versão latina da Bíblia Sagrada, a Vulgata Editio, vertida por Eusébio Sofrônio Jerônimo (347-420) entre os anos 382 e 405, compilação que, após, recebeu acedência, em 1545, no Concílio de Trento, como a versão autorizada da Bíblia a ser utilizada pela Igreja Católica que, em 1598, concluiu a publicação da revisão da Vulgata, a qual se passou a chamar de Vulgata Clementina, de maneira que a segunda versão memorável das Escrituras Sagradas é a Bíblia de Gutenberg, primeiro livro impresso no Ocidente por Johannes Gutenberg (1398-1468), entre os anos 1452 e 1455, provinda da vertida ao Latim por Jerônimo. Logo, é graças ao “Salmo 136”, posto nesse compêndio, que Jorge de Sena chamou seu conto de “Super Flumina Babylonis”, porque, ipsis verbis, esse é o sintagma que abre aquele salmo, excerto que ora mostramos na tradução latina: Super flumina Babylonis illic sedimus et flevimus, cum recordaremur Sion (BIBLIA VULGATA LATINA, 1999, p. 352), que, transposta à língua portuguesa, lê-se: “Junto aos rios de Babilônia nos assentamos e choramos, lembrando-nos de Sião” (BÍBLIA SAGRADA, 2008, p. 773). Demais, isso explica por que Jorge de Sena denominou seu texto com uma frase em língua latina. Fê-lo também porque, decerto, sabia aonde chegaria o desenlace do padecimento sentido e suplantado pela sua dileta personagem Luís de Camões. Tampouco é descabida a escolha do nome “Babilônia”, uma vez que esse termo toponímico, ainda que tenha sido extraído do contexto histórico judaico da Bíblia Sagrada, mercê do já referido “Salmo 136”, apresenta significado metafórico que transcende o parco valor da semântica toponímica na qual se assenta o precitado termo, o qual é figurativizado, então, qual um “[…] lugar de perdição” (SENA apud FERNANDES, 1980, p. 113), de onde as almas devem-se distanciar o mais que puderem, porque, em o não fazendo, serão aniquiladas pela malignidade da “[…] grande Babilônia, mãe das prostituições e abominações da terra” (BÍBLIA SAGRADA, op. cit., p. 361), em que o aposto descreve, sucinta e horrendamente, todos os perigos de que quaisquer almas precisam manter-se distantes com o fito de não perecerem.
Chamou-nos a atenção o estudo dum outro camonista que, num capítulo de seu livro, aponta-nos não uma probabilidade tradutória da Bíblia em língua portuguesa, mas em línguas hebraica e latina, nas quais Luís de Camões se haveria embasado para compor os seus poemas religiosos, já que aquele crítico crê que “[…] três pistas se abrem à nossa frente, todas relacionadas com a Bíblia Hebraica, pois Camões conhece e cita várias vezes o ‘Antigo Testamento’, grande corpus da literatura hebraica clássica” (CARREIRA, 1982, p. 118). Em seguida diz que “[…] onde a base de confronto é mais segura, como no ‘Salmo 137’,[3] é a Vulgata que Camões lê […]” (op. cit., p. 119). Adiante, comenta que “[…] a melhor prova de que Camões lia o ‘Antigo Testamento’ pela Vulgata vem do aduzido ‘Sôbolos rios’. A adesão ao texto latino é tão firme que algumas adaptações roçam pelo latinismo” (idem, p. 121). Sustém suas ideias ao dizer que, “por ignorar o ‘Antigo Testamento’ hebraico, e manejar, cândida e familiarmente, a Vulgata latina, é que Camões chegou mesmo a saltar do cânone […]” (idem, p. 124). E, enfim, assevera que Camões “[…] em latim lia sua Bíblia. À luz do ‘Novo’ entendia seu ‘Antigo Testamento’, alargado a limites canônicos dos cristãos […]” (idem, p. 131).
Ponhamos em relevo a figura do filósofo medieval Anício Mânlio Torquato Severino Boécio (ca. 480-525), de quem, embora não se saiba se era “[…] cristão ou, simplesmente, um neoplatônico cristianizado”[4] (CLOTA, 1989, p. 104), é bastante conhecido o tratado Consolação da filosofia, em cujas páginas iniciais o autor-personagem deparou-se com uma “[…] mulher que inspirava respeito pelo seu porte: os seus olhos estavam em flamas e revelavam clarividência sobre-humana; suas feições tinham cores vívidas e delas emanava uma força inexaurível. […] Quando viu as Musas da poesia junto a mim […] ficou perturbada” (BOÉCIO, 1998, p. 4-5). Depois desse passo do texto boeciano, revela-se quem era a misteriosa mulher, graças a quem o pensador, aliviado, ponderou: “[…] foram dissipadas as nuvens da tristeza; fui iluminado pela luz celeste e recebi o discernimento para contemplar aquela face. Mal dirigi o olhar a ela, reconheci minha antiga nutriz […]: era a Filosofia” (op. cit., 1998, p. 8). Essa descrição é significativa para entendermos o que, muito semelhantemente – porém, num diverso nível –, a caracterização prosopográfica da personagem Luís de Camões nos faz notar em suas melancolias, as quais, após mitigadas por ímpetos, a um só tempo, filosóficos e cristãos, deixaram que o alquebrado poeta levantasse, reanimado, com a determinada intenção de reaver sua alegria.
Pondo em causa outros componentes do conto enquanto gênero, há de aceitar-se que, “[…] por seu estofo dramático, deve ser, tanto quanto possível, dialogado. […] Conflitos e dramas residem mais na fala, nas palavras proferidas […] do que nos atos ou gestos […]. Sem diálogo, não há discórdia, desavença ou mal-entendido, portanto, não há enredo […]” (MOISÉS, 2012, p. 280). Sendo assim, em se tratando dessas massaudianas palavras, aplicadas ao “Super Flumina Babylonis”, vemos que essa obra prosística poucamente a elas se adéqua, porque está em evidência, ao contrário do que se suporia, o processo de criação literária, que, ao menos no Zeitgeist de que ora participamos, mostra-se quase nada afeita a agrilhoamentos decorrentes de quaisquer padronizações que se proponham como “artes poéticas”.[5] Aliás, a pós-modernidade, em sua multifacetada e fragmentária manifestação, parece não permitir surjam tratados que se imponham qual reguladores das confecções prosaico-poéticas. É parte do legado modernista.
Entretanto, tornando à questão dialógica quanto ao “Super Flumina Babylonis”, ela é pouco explorada materialmente, ou seja, mediada por efetiva manifestação oral de interlocutores, numa natural conversação, na medida em que ela “[…] é a primeira das formas de linguagem a que estamos expostos, e provavelmente a única da qual não abdicamos pela vida afora” (MARCUSCHI, 2003, p. 14), pois “[…] é o gênero básico da interação humana” (op. cit., idem ibidem). Porém, levantando-se contra essa naturalidade conversacional, Camões deixa que sua progenitora teça um copioso monólogo, ignorando-se-lhe as essências de tudo o que, paciente e instantemente, ela se esforçava por incutir na mente do melancólico “barão assinalado”, cujo sinal – se ainda havia algum – equiparar-se-ia ao recebido por Caim, em que se sentiria incalculável fardo provocado pelo “desconcerto do mundo”, de que, conscientemente, aquele arruinado Camões se via, sobejamente, culpado. Mas isso não era suficiente para dissuadir sua mãe da missão de que ela se autoincumbira. Ao contrário, ela procedeu à maneira de outra genitora cujo filho relutava em singrar em direção à fé concedida por Jesus Cristo. Essa mãe se chamava Mônica. Seu rebento, Aurélio Agostinho. O mesmo que, após três decênios de existência, pôs seu espírito em estado de rendição, havendo-se convertido ao Cristianismo. Esse filósofo recém-cristianizado, nas suas Confissões, falou com Deus: “Mas, vós, lá do alto, estendestes a mão e arrancastes minha alma dessa voragem tenebrosa, enquanto minha mãe, vossa serva fiel, junto de vós chorava por mim, mais do que as outras mães choram sobre os cadáveres dos filhos. Ela […] via a morte da minha alma” (AGOSTINHO, 1999, p. 94). Da mesma maneira, pois, que Agostinho teve seus olhos abertos para as verdades divinais a partir das súplicas maternais, sucedeu outro tanto a Camões. Na narrativa sobre a hora do ocaso camoniano, porém, é aparente que o protagonista achou-se arrebatado, “[…] impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia” (SENA, 1982, p. 226), e sendo esse, então, o esperado momento epifânico, que independeu da conversação em prol da elucubração. Não obstante, pode-se classificar o analisando conto segundo alguma espécie dialógica, que, nesse caso, parece estar ligada ao “[…] diálogo direto (ou discurso direto), quando o contista põe as personagens a falar diretamente, e representa a fala com o travessão ou as aspas (no conto moderno, em geral, dispensam-se os sinais gráficos)” e ao “[…] diálogo interior (ou monólogo interior), aquele que se passa na mente da personagem; ela fala consigo mesma, antes de se dirigir a outrem […]” (MOISÉS, 2012, p. 282).
Nas derradeiras linhas do “Super Flumina Babylonis”, vê-se que, quando Camões encetou a composição dos versos do que viria a tornar-se o poema “Sôbolos rios que vão”, aqueles que se colocou a esboçar, “Sobre os rios que vão de Babilônia a Sião assentado me achei”, se lhe déssemos um hemistíquio logo após o substantivo “Babilônia”, teríamos dois versos decassilábicos, a saber, “Sobre os rios que vão de Babilônia” e “a Sião assentado me achei”, nos quais Camões estaria a apor o estilo estrutural épico. Dada a reação, no entanto, revelada pelo narrador do “Super Flumina Babylonis” acerca de sua protagonística personagem, sabe-se que “engenho e arte” nela não mais operam a serviço de cânticos beligerantes. Isso é ora pretérito. O neo-homem renascido “[…] começou a escrever… Sobre os rios que vão da Babilônia a Sião assentado me achei. Riscou desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilônia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei” (SENA, 1982, p. 227), prova cabal de que não mais esse poeta buscava falar de questiúnculas mundanais, mas sim de assuntos eternais. É nisso que repousa o fulcro do Neoplatonismo cristianizado presente nesse conto através da persona camoniana, na qual se nota um movimento rumo ao contemptus mundi (“desprezo do mundo”), “[…] conflitos entre tempo e eternidade, multiplicidade e unidade, exterioridade e interioridade, vacuidade e verdade, terra e céu, corpo e alma, prazer e virtude, carne e espírito […]”, de modo que “[…] o mundo é vão porque é passageiro” (DELUMEAU, 2003, p. 25). Estaria em Camões, nesse comenos epifânico, a alma sobrepujando o corpo, preparando-se, definitivamente, para tornar quer ao platônico “mundo das Ideias”, quer ao cristão Reino dos Céus. Em suma, as vicissitudes sofridas lograram êxito culminante quando da tópica da “recusa da epopeia”, em cujas características não mais convinha que aquele poeta se baseasse para alcançar patamares correlativos aos cantares líricos, nos quais somente os elementos anímicos estão contidos. Porque “[…] o tema do orador cristão é sempre a revelação cristã, […] temas cristãos devem ser tratados em estilo médio ou baixo […]” (AUERBACH, 2007, p.38-39). Também, “[…] a partir do significado de grau ou nível inferior, humilis tornou-se uma das designações mais usuais para o estilo baixo: sermo humilis” (op. cit., p. 44), do que provém a transição do Camões de Jorge de Sena da mera existência à vida em abundância.
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NOTAS
1 Texto originalmente dado à estampa nos “Anais do XIV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários”, cuja comunicação houve aos 31.10.2013, na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (FCL-UNESP), campus de Araraquara.
2 Tradução feita por nós com base na versão italiana do mencionado texto de Marsílio Ficino.
3 Existe, por motivos sobre os quais não nos debruçaremos aqui, uma confusão em torno da numeração dos salmos, de modo que ora há estudiosos que se referem, por exemplo, ao “Salmo 136”, chamando-o de “Salmo 137”, na medida mesma em que outros há que fazem o percurso contrário, isto é, referindo-se ao “Salmo 137”, denominando-o “Salmo 136”. Muito provavelmente, esse problema começou na tradução bíblica da Septuaginta. No entanto, como não se trata de nosso escopo presente, discorreremos sobre isso, com mais vagar, alhures.
4 Tradução nossa feita a partir do texto original em língua espanhola.
5 Principalmente, em que pesem os conceitos de decorum e prepon, propostos, respectivamente, por Quinto Horácio Flacco (8-65 a.C.), na Epistula ad Pisones, e Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.) , no seu Perí Poietikés.