Neste artigo, Luciana Salles desenvolve o conceito de metamorfose, muito presente na obra seniana, para além dos seus referenciais mais imediatos, o livro Metamorfoses (1963) e seu correlato, Arte de música (1968). A autora mostra como um dos temas recorrentes na produção de Jorge de Sena, também vai se metamorfoseando ao longo dos anos, seja na poesia, seja na prosa.
Luciana Salles (Professora Doutora de Literatura Portuguesa, UFRJ)
A noite é igual às outras, e o clarim que toca
repete, com variantes, os clarins do mundo.
(“Natal – 1945”)
De acordo com Walter Benjamin, a reflexão é o principal fundamento da teoria romântica do conhecimento, por seu caráter de processo em processo, infinitamente inacabado, que se vai compondo através de um sistema de especulações (em todos os sentidos) que promovem um saber i-mediato (no sentido mesmo de sem mediação) e dinâmico[1]. Nesse sentido, assim também é o processo das “metamorfoses poéticas” de Jorge de Sena, através do seu mecanismo de penetração / apropriação analógica conjugado em composições críticas que tendem a permanecer no intervalo da metamorfose incompleta, da comunicação imperfeita entre as diferenças e semelhanças que marcam a unicidade de cada um dos elementos envolvidos, promovendo uma infinita tentativa de conhecimento do outro.
O natal para Sena é, antes de tudo, um objeto cultural a ser decifrado, desconstruído, profundamente conhecido por meio de uma reflexão constante e infinita, para, por fim, surgir em estado de metamorfose poética e testemunho. Partindo de uma concepção do natal como obra produzida por uma determinada autoria, um determinado grupo sócio-histórico bem situado no tempo – a Igreja Católica que se apropria de convenções e códigos a ela anteriores para “metamorfosear” o paganismo e suas variantes em dogmas cristãos – , o poeta trata a festividade como trataria cada uma das obras de arte revisitadas em suas Metamorfoses, como trataria cada uma das peças de seu Arte de Música. O natal não será para ele, em prosa ou verso, diferente de um busto de Camões, de um quadro de Van Gogh, das Variações de Bach. Apenas um mote para a produção de uma sequência anual de poemas (de publicação esparsa em vários livros) que se inicia na década de 30 e vai até o último Natal do autor, em 1977, e para dois contos exemplares: “Razão de o Pai Natal ter barbas brancas” e “A Noite que fôra de Natal”, ambos publicados no volume Antigas e Novas Andanças do Demónio.
Essa leitura e sua consequente manifestação em obra literária, naturalmente, só são possíveis graças à posição intervalar que assume a poética testemunhal e metamórfica seniana. Mais uma vez em diálogo com a filosofia do Romantismo alemão, Sena incorpora em sua produção a noção de Friedrich Schlegel de que a ironia é “consciência clara, inteiramente lúcida”, porque se põe no “lugar entre”, no espaço em que conceitos aparentemente opostos podem ser vistos com toda a clareza de quem não se vê obrigado a prestar contas a qualquer ideologia imposta. Como afirma Luís Adriano Carlos,
Jorge de Sena personifica um rosto de Jano que traduz ao nível da sensibilidade duas estéticas reciprocamente condicionadas, como dois satélites em órbita um do outro: uma estética sensorial da finitude e uma estética do espírito infinito, isto é, nos seus traços mais característicos, uma estética do grotesco e uma estética do sublime.[2]
Comprometido, portanto, com um testemunho ambivalente do sensorial e do inapreensível, do grotesco e do sublime, das múltiplas facetas que o humano apresenta ao seu olhar de Jano – duplo, intervalar, fronteiriço -, Sena faz questão de registrar ele mesmo sua posição com relação à dualidade corpo/espírito:
Religiosamente falando, posso dizer que sou católico mas não um cristão – o que apenas significa que respeito na Igreja Católica todo o velho paganismo que ela conservou nos rituais, nos dogmas, etc., sob vários disfarces, tal como a Reforma protestante não soube fazer. Acredito que os deuses existem abaixo do Uno, mas neste uno não acredito porque sou ateu. Contudo, um ateu que, de uma maneira de certo modo hegeliana, pôs a sua vida e o seu destino nas mãos desse Deus cuja existência ou não – existência são a mesma coisa sem sentido. Filosoficamente, sou um marxista para quem a ciência moderna apagou qualquer antinomia entre os antiquados conceitos de matéria e espírito. Não subscrevo a divisão do mundo em Bons e Maus, entre Deus e o Diabo (estejam de qual lado estiverem). Apesar da minha formação hegeliana e marxista, ou também por causa dela, os contrários são para mim mais complexos do que a aceitação oportunista de maniqueísmos simplistas.[3]
Confessadamente dialética será então a sua leitura do natal, com todo o respeito “ao velho paganismo” conservado pela Igreja “sob vários disfarces”, todo o respeito ao que a cristandade poeticamente converte em metáfora, em metonímia, em símbolo (processo em que se destaca a conversão de hóstia em carne e do sangue em vinho, para que os fiéis possam “engolir” o seu Deus, no que é provavelmente o mais belo exemplo de metamorfose cristã do erotismo das celebrações pagãs).
Dialética, por exemplo, é a figura do Papai Noel (“Pai Natal” para as crianças portuguesas) que, de tão parecido com o diabo, precisa deixar crescer as barbas:
Por tudo isto é que o Natal é pai e tem barbas brancas, para se distinguir do outro, que traz brinquedos do inferno, brinquedos que, como os meninos também sabem, são feitos neste mundo, tal qual como os outros brinquedos.
Ora como se vê por esta história, e ao contrário do que até eu próprio julgava quando comecei a escrevê-la, houve, não uma só, mas inúmeras razões, para o Natal ser pai e ter barbas brancas. Para acabar, não me perguntem de quem ele é pai. Não façam perguntas tolas, como as pessoas crescidas. Muito em segredo, sempre digo que não sei ao certo, o que sei não posso dizer… e, de resto, talvez os meninos venham a saber mais do que eu. (“Razão do Pai Natal ter barbas brancas” in Antigas e Novas Andanças do Demónio)
Escrito como uma espécie de conto infantil e, inclusive, publicado algumas vezes como tal, com ilustrações e edições de letras grandes e poucas páginas, o alerta para a semelhança entre o velhinho bondoso que traz presentes e o diabo data de 1944 – tempo de guerra, portanto. Como alegoria pouco discreta do ideário de seu autor, a narrativa traz um menino Jesus que sabe que a tradição do Pai Natal é muito anterior ao seu nascimento e que é habilidoso o bastante para enganar o diabo. Não será, contudo, o único testemunho escrito por Sena naquele natal:
1944
Possivelmente, meu Deus, a vossa existência não passa
de uma piedosa mentira com que vos embalam os homens
(e tanto vos embalaram, meu Deus, que respirais tranquilo
nos braços destes milhares de gerações sofrendo a vossa vinda).
Acordai, Senhor; nascei, Senhor; olhai
como se amam estes numerosos povos
que se entre-destroem furiosamente sem saber por quê,
inventando razões, procurando razões, acreditando em razões,
à semelhança do enamorado que persegue uma eterna visão,
e é (julga), porque as pernas são belas, os cabelos são louros
e o seio saltava mansamente ao cruzar por ele.
Mas basta, Senhor: não demoreis a conquista.
Deixai que vos esqueçam, que descansem, que se alegrem,
sem que a morte espalhe uma violenta alegria,
e um feroz desejo de ter imensos filhos,
e uma tremenda raiva de que levem tanto tempo a crescer,
e uma simples saudade de um azul do céu,
sob o qual se morra tranquilamente de cancro ou de tuberculose
ao conspícuo abrigo dos códigos e do Governo Civil.
24/12/44
“Possivelmente, meu Deus, a vossa existência não passa”… Assim começa o poeta que se auto-proclama ateu: não negando ou recusando, mas simplesmente, ironicamente (sem que haja nessa ironia qualquer vestígio de humor), sugerindo a possibilidade, que hegelianamente é também impossibilidade, de existência de um Deus, chamado ao texto em letra maiúscula como fazem aqueles que nele crêem como certeza, verdade absoluta. Aqui não há certezas, apenas a dúvida e a tensão de quem testemunha o momento da guerra, momento em que “numerosos povos se entre-destroem furiosamente sem saber por quê, inventando razões, procurando razões, acreditando em razões”, momento em que a crença nas razões é condicionada à ignorância dos reais motivos para o desamor e a violência.
O que se pede ao Deus cuja existência é posta em questão não é também sequer a utopia de orações profundas; apenas que a morte já não “espalhe uma violenta alegria”, e os prazeres da dor cotidiana de “um feroz desejo de ter imensos filhos,/e uma tremenda raiva de que levem tanto tempo a crescer,/e uma simples saudade do azul do céu,/sob o qual se morra tranquilamente de cancro ou de tuberculose/ao conspícuo abrigo dos códigos e do Governo Civil”.
Meia década passada após o fim da guerra, não ainda otimista a escrita seniana. O poema dedicado ao natal de 1950 é o canto possível para celebrações impossíveis:
Natal – 1950
Nenhum Natal será possível: sei
que tudo enfim suspenso aguarda
não já Natais sempre de guerra mas
a morte iluminada como aurora
entre esta gente que se junta rindo
e as luzes interiores, muitas cabeças juntas;
entre as lágrimas de ternura e os murmúrios de esperança,
entre as vozes e os silêncios, as pedras e as árvores,
entre muralhas de janelas sob a chuva,
entre agonias dos que lutam porque são mandados
e a cobarde angústia dos que apenas mandam,
no meio da vida, círculo de fogo,
à luz de que se vê uma calçada suja
de restos de comida e de papéis rasgados
– se sei, embora saiba, quanto soube:
ah canto do meu canto, olhar do meu olhar,
nenhum Natal, bem sei, mas outra gente,
e tanta gente, e mesmo que um só fosse,
já louco, envelhecido, apenas hábito,
que poderei fazer, senão humildemente
cantar?
25/12/50
Partindo da premissa de que “Nenhum Natal será possível”, que abre o poema como uma tese a ser desenvolvida, os versos vão se desenvolvendo em torno da idéia do intervalo, manifestada na seleção de vocábulos como “suspenso”, “aguarda”, “muralhas”, “janelas”, “no meio”, “calçada” (como espaço entre a casa e a rua), “restos” (o que já não é presença mas ainda não é ausência de todo) – que vão construindo a imagem de um espaço-fronteira – e, especialmente, na reiterada utilização da partícula “entre”, que em sua forma de preposição marca as divisas “entre esta gente (…) e as luzes”, “entre as lágrimas de ternura e os murmúrios de esperança”, “entre as vozes e os silêncios”, entre “as pedras e as árvores”, “entre muralhas de janelas sob a chuva”, “entre agonias dos que lutam porque são mandados e a cobarde angústia dos que apenas mandam”, mas que não deixa de ecoar sua forma verbal “entre” como um convite à semelhança do “Trouxeste a chave?” drummondiano, entre, venha, veja, observe, reflita. “Penetra surdamente” nesse intervalo entre silêncio e fala, nessa ausência de guerra que ainda não significa presença de paz, e em que um Jorge de Sena que sempre se quis tão camoniano vai na contramão da desistência épica de um “No mais, Musa, no mais”, reafirmando ao seu canto a sua continuidade, ainda que após a repetição da tese inicial “nenhum Natal, bem sei”, matematicamente somando duas negações para produzir a afirmação positiva de que “outra gente,/e tanta gente, e mesmo que um só fosse,/já louco, envelhecido, apenas hábito/que poderei fazer, senão humildemente /cantar?”.
Não canta, apenas, no entanto. Conta, na narrativa de “A noite que não fora de Natal”, a história, não de um nascimento, mas de duas mortes. Mais uma vez a matemática dos negativos se somando em positivo. Corre o boato da morte do deus Pã, o pagão entre os pagãos, representado pela cristandade com pés de cabra e rabo e chifres como os do diabo que até então a nova religião ainda não havia inventado. Morre, numa cena de sacrifício um tanto erótica, um escravo do imperador. Anos mais tarde, Saulo, o último dos profetas católicos, vai visitar o velho amigo Marco Semprónio, testemunha do ocorrido no passado e servidor fiel do Império Romano. Intrigado com a fala do amigo, profere um discurso que se situa entre a confissão e o interrogatório:
— Saulo, vou dizer-te uma coisa. Tu falaste do poder do teu Deus sobre a Natureza. Quero crer que o teu Deus se parece com a essência divina dos alexandrinos que estimavas tanto. Mas não importa. Além de que os teus cristãos, na maior parte escravos de todos os cantos do Império, não devem, como tu eras, ser entendidos em alexandrinismos. Sabes que, vai para quarenta anos ou mais, eu era, em seu exílio voluntário, o companheiro fiel do imperador Tibério, que os deuses tenham na sua santa glória. Certa noite, e eu nunca contei isto a ninguém, nem mesmo, nessa ocasião, a Tibério, um pescador veio dizer-me que outros pescadores haviam ouvido, dentro da noite, uma voz que anunciava a morte do deus Pã. Ao imperador, um escravo muito amado, que se esvaía em sangue, anunciara, antes de morrer, oh, eram experiências que nós fazíamos, que morria feliz porque nascera um deus. Ambos os factos sucederam na mesma noite, uma noite cerrada em que nada se via. Eu não acredito em portentos. Achas que as duas coisas se relacionam? Quando foi que nasceu esse homem que os cristãos consideram Deus, um deus mortal?
A declaração da morte de “um escravo muito amado” em “experiências que nós fazíamos”, quase se perde no longo discurso, não fosse pelo fato de ter sido, aparentemente parte do anúncio (talvez a causa?) da chegada ao mundo de um deus.
Saulo diz que pelos cálculos não seria possível que a tal noite das mortes pudesse ser a do nascimento de Jesus, as datas não batem. Mas resta uma dúvida:
— Marco Semprónio, tu sempre meditaste nisso ou foi agora, ao falares comigo, que te lembraste?
— Na verdade, não sei.
— Porque é possível.
— Possível?
— Sim. Imagina que foi nessa hora que Ele reconheceu em si a sua missão, e sentiu em si mesmo que era filho de Deus e o próprio Deus. Não foi, portanto, nessa hora que o meu divino Mestre nasceu de novo, pela segunda vez, na plena integridade do seu Ser? E no momento em que Deus, Ele e a Palavra se tornaram um só, uno e indivisível, na sua consciência, não foi que o deus Pã morreu?
Inverte-se aí a ordem de causa e efeito. Não é a morte do deus pagão (e o sacrifício do escravo) que gera o surgimento do novo deus, mas a consciência do divino, a autodescoberta de um homem que de repente se percebe filho de Deus, que renasce para si mesmo e para o mundo como um novo ser, que reúne em seu corpo mortal a imortalidade de ser “Deus, Ele e a Palavra” como “um só, uno e indivisível” é que promove a morte do deus Pã. O que encerra a hipótese, entretanto, é uma interrogação. Permanecemos em suspenso, em dúvida, no terreno das ambiguidades mítico-literárias.
Irmanados na dúvida, apesar de opostos na crença, decidem compartilhar o vinho, como uma quase experiência de comunhão:
Saulo disse: — Sabes, Marco Semprónio, que o vinho santificado é o sangue do meu Mestre? Marco Semprónio pensou: «Tibério bebia o sangue dos escravos», mas respondeu apenas: — Não, não sabia. — E levantou a taça: —Para que os deuses, todos os deuses, nos sejam propícios.
— Para que o Senhor te proteja.
No pensamento do protagonista, a memória de que o imperador bebia o sangue dos escravos. E afinal, é o que todos os imperadores do mundo sempre fizeram, beber o sangue dos seus escravos, seja metaforicamente ou não. Contudo, beber o sangue de um deus crucificado não é também beber o sangue de um escravo? Não é o que fazemos todos, sempre, crentes ou não – deixar que o sangue dos escravos alimente o mundo e mate-nos a sede, natal após natal?
O encontro dos amigos, e a narrativa datada de dezembro de 1961, termina com uma celebração da amizade e da generosidade que une os povos sob o olhar de todos os deuses:
— Saulo, se fores preso, não deixarei que te torturem, que te crucifiquem. Tu, afinal, és um cidadão romano. Só podem decapitar-te.
— Eu nunca invocaria, para tanto, a minha condição de cidadão romano, que meu Mestre não foi, porque não sou mais do que Ele, na minha pequenez humana. Mas agradeço-te, porque, último dos seus discípulos, não sou digno da cruz em que Ele morreu.
— Não terei influência para mais.
— É muito já. É tudo. Deus te abençoe.
Marco Semprónio não o viu sair.
Com a garantia de que será, no máximo, decapitado, Saulo parte satisfeito. Não ser torturado e crucificado já é uma vitória. O protagonista não vê a saída de seu oponente, o que, de certa maneira, perpetua o diálogo, ou ao menos a possibilidade de diálogo, na incerteza da ausência ou presença do outro, assim como se perpetua o diálogo entre Jorge de Sena e o Deus existente ou não existente. O processo de busca por um conhecimento baseado na reflexão imediata, contínua e infinita se desenrola numa narrativa em que o paganismo, a violência dos imperadores romanos e o surgimento do cristianismo se entrelaçam e surgem diante do leitor como uma reescritura verossímil da História, em toda a sua barbárie e em toda a sua capacidade de ambivalência.
O Natal de 1969 será lido por um Jorge de Sena já exilado nos Estados Unidos, respirando a liberdade do advento do movimento hippie. Como consequência, a reflexão ganha um ar mais plural, com a “convocação” para o poema de diversos outros poetas, que comparecem à discussão por meio da citação:
Natal de 69
Dos céus à Terra desce a mor Beleza
(não foi Camões quem disse realmente)
Queimando o véu dos séculos futuros
(disse Bocage – inquisidores à espreita)
Jesus nasceu! Na abóbada infinita
(sem fé com só Parnaso é de Bilac)
Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
(Fernando António Nogueira Pessoa)
De novo a noite longa escura e fria
(o Cristo Régio Cristo dos Reis Pereira)
Fosse eu Jesus do céu e não viria
(era Moreira só e mais das Neves).
Brinquedos, prendas, doces, bacalhau,
missa do galo, o sapatinho, o abeto
a concorrer pagão com o presépio,
cartões de Boas Festas, e as cantigas
nacionais importadas e folclóricas,
e pombinhas da paz de maus poetas,
e a fé sem fé da crença que não crê,
ou escreve versos de Natal raivoso,
e peste e fome e guerra e dor de não
doer o coração que não existe.
Mais dia menos dia todos vão
pôr um versinho bom ou mau como ovo
e não se sabe o que nasceu primeiro
se a galinha se o ovo. Antes calar
que este sofrer de prometida glória
sem ter vivido em honra e liberdade
amando os outros como se a nós mesmos.
Que saudade de alma, e que brandura
(Fr. Agostinho espera edição crítica)
Amor que tudo vence e tudo apura
(talvez que seja Baltazar Estaço).
Dormes, Jerusalém? Acorda, acorda
(clamava o árcade Garção, coitado)
Bairro elegante – e que miséria!
(disse em raros octossílabos Feijó)
Ó noite santa, e clara, inda que escura
(Diogo Bernardes escreveu tranquilo)
Turvou-se de penumbra o dia cedo
(por certo Ereira onde este Afonso estava)
Crianças se sumiram num incêndio…
Que rósea aurora as ressuscitará?
(há já vinte anos perguntei – não digam).
Dezembro de 1969
Camões, Pessoa, Bocage, Bilac e outros muitos citados no poema representam o viés literário de uma festa que também inclui brinquedos, doces, bacalhau e maus poemas, já que “mais dia menos dia todos vão / pôr um versinho bom ou mau como ovo / e não se sabe o que nasceu primeiro / se a galinha se o ovo”. Ressaltando, ao lado de uma intertextualidade que atravessa os séculos e ecoa como um coro grego, a futilidade vácua de uma data que se pretende de reflexão profunda, o poema soa menos grave que os anteriores, mais sarcástico para além da ironia, mas ainda se insere na “coletânea” que se vai construindo na poesia seniana ao longo de quatro décadas, através da auto-citação com que se encerra, retirada do último verso do Natal de 1949: “Que rósea aurora as ressuscitará?/(há já vinte anos perguntei – não digam)”.
Concluímos nosso breve percurso pelos natais de Jorge de Sena – ou “anti-natais”, como escreveu Eugénio Lisboa no prefácio à antologia jamais publicada desses poemas – com um poema já da década de 1970:
Natal de 1972
Neste comércio festivo que há dois mil anos quase
perdura mal cobrindo remendadamente
o solstício do Inverno e os deuses sempre vivos
de cuja falsa morte o mundo paga em crimes,
como em vileza humana, o medo que escolheu
quando ao claror da aurora rósea e livre
de viver como os deuses e com eles
preferiu a lei e a ordem projectadas
na sombra em sombras da caverna obscura
e desejou o mal em preço de ser-se homem —
tudo o que em milhares de anos é tribal
congrega-se feliz num doce rebolar-se
da traição de que fomos contra a vida.
Tão vil que levou séculos a inventar
um deus assassinado para desculpá-la,
e fez dele o comércio das famílias
que cortam no peru as raivas de existirem,
beijando-se visguentas, comovidas,
tal como têm babado os pés dos deuses,
ah não eles mesmos mas imagens vãs
que não resplendam da grandeza humana.
Alguma vez teremos o dinheiro
para comprar de novo o Paraíso,
em vez de prendas para o sapatinho?
O Paraíso aqui — aquele que venderam
no começar do mundo. E que nos trocam
por outros no futuro ou nos aléns,
agora, aqui, aberto a todos, claro
– um sol sem fim nos bosques ou nas praias,
uma nudez sem morte nos corpos sem alma.
Talvez que o só vejamos por um instante
naquele espaço-tempo entre morrer
e o ficar morto para os antropófagos
dos deuses e dos homens, hóstia ou ossos.
Entretanto, senhoras e senhores, as Boas Festas.
23/12/1972
Um dos mais duros poemas natalinos de Sena, o de 72 é uma espécie de manifesto contra a promessa de uma felicidade futura, metafísica, contra a expectativa de uma promessa de Paraíso em outra dimensão, que afasta a humanidade de uma luta cotidiana por um paraíso aqui e agora, em que o homem possa ser seu próprio Messias, salvando a si mesmo de um mundo pautado pelo “comércio festivo”. É o grito por um mundo de “um sol sem fim nos bosques ou nas praias,/uma nudez sem morte nos corpos sem alma”. Corpos imortais, por serem corpos apenas. Pedaço de natureza, não mero invólucro para uma alma invisível e subjugada a um deus desconhecido.
“Entretanto, senhoras e senhores, as Boas Festas”. Com bacalhau, com presentes e doces, mas com as dúvidas inerentes ao humano, com a necessária (por mais que dolorosa) reflexão nossa de cada dia, tão importante quanto o pão, dai-nos, Senhor, a consciência, o questionamento. Feliz Natal.
Referências
BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 1999.
CARLOS, Luís Adriano. “Epístola aos realistas que se ignoram – Jorge de Sena e a Estética”. In: Santos, Gilda (org.). Jorge de Sena: Ressonâncias; e, Cinqüenta Poemas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.
LISBOA, Eugénio. “Os Antinatais de Jorge de Sena”. In: ______. As vinte e cinco notas do texto. Lisboa, IN-CM, 1987, p. 45-50.
SENA, Jorge de. Poesia I. 3ª ed. Lisboa: Edições 70, 1988.
______. Poesia II. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 1988.
______. Poesia III. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 1989.
______. Quarenta anos de servidão. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 1982.
______. Visão Perpétua. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 1989.
______. Antigas e Novas Andanças do Demónio. 4ª ed. Lisboa: Edições 70, 1983.
NOTAS
1 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 1999. p.32.
2 Luís Adriano Carlos, “Epístola aos realistas que se ignoram – Jorge de Sena e a Estética”. In: Santos, Gilda (org.). Jorge de Sena: Ressonâncias; e, Cinqüenta Poemas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. p. 63. (grifo nosso)
3 Jorge de Sena. Poesia I. 3ª ed. Lisboa: Edições 70, 1988. p.21
FONTE: SALLES, Luciana. “‘Nenhum natal será possível’: as metamorfoses de uma celebração em Jorge de Sena”. GARRAFA. vol. 15, n. 43, julho-dezembro 2017.2. p. 5-15. ISSN 18092586.