Liberdade sem medo: Jorge de Sena e a fase brasileira

Sabemos que Jorge de Sena, em sua peregrinação de exílio, deixou, como Camões, “a vida pelo mundo em pedaços repartida”. De todas as suas andanças, a brasileira certamente foi a mais frutífera. No Brasil, o poeta conseguiu se estabelecer, ingressou no magistério superior, doutorou-se e se tornou livre-docente, além de ter escrito uma quantidade massiva de textos, entre poemas, contos, ensaios e traduções. Neste artigo, Elaine Santos retraça a trajetória de Sena pelo Brasil, seu antecedentes e circunstâncias que o levaram a exilar-se uma segunda vez, nos EUA, além do impacto que essa fase teve na sua obra.

Elaine Santos dos Reis [1]

Nascido em Lisboa em 2 de novembro de 1919, Jorge Cândido de Sena começa a ler muito cedo, por volta dos 3 anos de idade. Em setembro de 1937, entra para a Escola Naval a fim de seguir carreira militar na Marinha lusitana. Todavia, em março de 1938, o jovem Sena é impedido de seguir a carreira militar, e naquele mesmo ano passa a frequentar o curso de Engenharia Civil na Faculdade de Engenharia do Porto, no qual se licenciou em 1944. No ano de 1949, casa-se com Mécia Lopes, o grande amor da sua vida e mãe de seus nove filhos, dois dos quais tidos em terras brasileiras.

Dois episódios aos quais o poeta esteve envolvido revelam o seu posicionamento ante ao regime salazarista. O primeiro foi no ano de 1945, período no qual era um oficial miliciano do Exército e que por seu envolvimento político, arrisca a sua deportação para o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, o que só não aconteceu devido a intervenção do diplomata e escritor brasileiro Rui Ribeiro Couto. O segundo episódio se deu na noite de 11 para 12 de março de 1959, numa tentativa frustrada de golpe de estado que ficou conhecido como a Revolta da Sé, no qual participaram também civis católicos e militares.

Desde então, para o poeta português a situação tornava-se gradativamente impossível, quer como cidadão, quer como escritor e naquele mesmo ano, Jorge de Sena chega ao Brasil a convite do governo brasileiro para participar do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros na Universidade da Bahia, e “aproveita a ocasião para ficar na outra margem do Atlântico” [2]. Todavia, o primeiro contato físico de Sena com o Brasil, como ele mesmo gostava de recordar, não ocorreu naquele ano, mas vinte anos antes, em 1937-38 na qualidade de primeiro-cadete da Marinha, em viagem de instrução no navio-escola Sagres:

Quando era criança e já devorava livros, havia em estante de família livros brasileiros, publicados em Portugal no séc. XIX. Mas um primeiro contacto com a literatura brasileira, menos romântica e mais moderna, tive-o quando adolescente cheguei ao Brasil, e nele estive cadete de Marinha, por escassas semanas em Santos e em São Paulo. Foi isto nos fins do ano de 1937, princípio de 1938, quando já escrevia, com alguma consciência desde 1936[3].

O envolvimento político do poeta acabou por condicioná-lo a um exílio voluntário, e esta foi a forma encontrada por ele de garantir maior segurança para a sua família, como nos testemunha sua esposa, Mécia de Sena:

As vantagens da transferência para o Brasil, nem precisavam de discussão: o envolvimento político do Jorge já chegara a um ponto em que a toda a hora e momento podia ser preso. Portanto, não havia ocasião para pensar em tristezas, a não ser a de dar um passo em que a capacidade de sobrevivência fosse ainda mais precária do que a que já tínhamos. De modo que, se havia hesitação da mudança, fosse ela para onde fosse, não se punha sequer em termos «sentimentais», mas práticos: os de quem tinha uma família de sete filhos e a minha sogra ao nosso total encargo – numa altura em que eu já só podia ajudar com revisões de traduções, ou traduções minhas, feitas no tempo que conseguia, roubado ao sono, que horas de descanso as não tinha.

As vantagens eram, pois, as de imediata sobrevivência, e não era o momento de pensar em tristezas ou alegrias, mas em escaparmos todos a uma situação já inaguentável. A alegria estava prevista, no sentido de liberdade e na possibilidade de o Jorge deixar de dividir-se no trabalho[4].

Apesar de já ter publicado vários volumes de poesia, teatro e ensaio, Jorge de Sena era pouco conhecido no Brasil fora do círculo dos especialistas em literatura portuguesa. O sociólogo, critico literário e amigo, Antonio Candido, em testemunho diz que o conheceu em 1959, quando Sena fora convidado por Antônio Soares Amora para ensinar Teoria Literária na Faculdade de Assis, tendo sido ele o primeiro a ministrar essa disciplina no Estado de São Paulo:

Lembro bem a primeira vez que apareceu por lá, acompanhado por José Fernandes Fafe (…). Sena fez uma palestra que nos encantou e em seguida providenciou a vinda da família. Fazia parte do mesmo departamento que eu, o de Letras Vernáculas, de maneira que convivemos diariamente durante todo o ano de 1960, no fim do qual voltei a São Paulo, mas as nossas relações continuaram, inclusive por meio de uma correspondência regular. Sena escrevia cartas longas, vibrantes, de uma qualidade que as tornava verdadeiros textos literários, abrindo-se nelas frequentemente com a veemência que o caracterizava[5].

Candido descreve o amigo como uma pessoa versátil e talentosa, dotada de rara capacidade de aprender e ensinar e que por isso, transformou-se relativamente tarde em um grande professor universitário. Além disso, Sena havia o dom de acumular com rapidez muitas informações: “Não sei como era capaz de ler um livro complexo de um dia para outro e de escrever sobre ele uma resenha em que via mais do que tínhamos visto em leitura demorada”[6].

Segundo Antonio Candido, Jorge de Sena além de escritor e poeta, era também um grande conhecedor de arte, filosofia e anatomia patológica, e que durante a sua convivência em Assis, ficava impressionado com a boa vontade e o “espírito de cooperação que manifestava em relação a qualquer estudante ou colega que se dirigisse a ele (…)”[7] .

Em 1961, Sena transfere-se para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, como professor de Literatura Portuguesa onde permanecerá até outubro de 1965. É em Araraquara que, após várias dificuldades para consolidar o processo de titulação acadêmica obtendo para isso a cidadania brasileira, consegue defender a sua tese, Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular, que lhe confere o título de doutoramento em Letras e livre-docência em Literatura Portuguesa.

A fase brasileira foi talvez o seu período mais criativo. Segundo a professora e estudiosa Gilda Santos, Jorge de Sena assinou cerca de 120 poemas (a maioria nos livros Metamorfoses, Arte de Música e Peregrinatio ad loca infecta); como ficcionista, a quase totalidade do romance Sinais de Fogo, a novela O Físico Prodigioso e 19 contos (de Antigas e Novas Andanças do Demónio e de Os Grão-Capitães). E ainda, duas peças teatrais (A Morte do Papa e O Império do Oriente), colaborou em periódicos e extensos ensaios – principalmente dedicados a Luís de Camões e Fernando Pessoa e também colabora e escreve para o jornal Português Democrático (contam-se 37 textos de sua autoria). Segundo a estudiosa, “havia muito de literário nos seus artigos jornalísticos. Havia muito de político nos seus escritos literários”[8].

Provavelmente, tudo isso só foi possível graças ao clima que se respirava no Brasil na década de 1950 e início dos anos 60, período conhecido como “Anos Dourados”, marcado pela revolução tecnológica, pela modernidade e por um sentimento progressista, principalmente para a cultura do país.

O governo, liderado pelo então presidente Juscelino Kubitschek, assumia o compromisso de grandes melhorias, com o famoso slogan “50 anos em 5”. É também neste período que se tem um dos principais eventos históricos do país, a edificação da nova capital, Brasília.

Também para a cultura, foi um momento muito fértil, pois existia uma busca da própria modernidade com características originais, basta lembrarmos do novo gênero musical que nascia no final da década de 50, a Bossa Nova. No ramo das artes se vê um movimento mais rico e diversificado. A indústria da música e do cinema tornam-se mais influentes e na imprensa começam a surgir um grande número de jornais em circulação, pois neste momento há uma maior liberdade em relação ao Estado.

No entanto, Jorge de Sena longe da sua amada pátria subsiste sob o jugo do exílio. Em Reflexões sobre o exílio, o teórico palestino, Edward Said, nos fala que o exílio é uma terrível experiência que nos impulsiona a pensar sobre ele. “Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza
jamais pode ser superada”[9]

Segundo Said, o exilado ocupa grande parte da sua vida com a criação de um novo mundo inverossímil:

Grande parte da vida de um exilado é ocupada em compensar a perda desorientadora, criando um novo mundo para governar. Não surpreende que tantos exilados sejam romancistas, jogadores de xadrez, ativistas políticos e intelectuais. Essas ocupações exigem um investimento mínimo em objetos e dão um grande valor à mobilidade e à perícia. O novo mundo do exilado é logicamente artificial e sua irrealidade se parece com a ficção[10].

A amálgama de sentimentos como a angústia e a saudade se faz presente nas leituras das obras de Jorge de Sena. No poema Vespertino do Rio de Janeiro (1959), o poeta testemunha a paisagem brasileira contrapondo o sentimento nostálgico causado pela ausência da sua terra natal:

VESPERTINO DO RIO DE JANEIRO [11]

Na noite as luzes furam treva, não
para além dela, mas de mim com ela;
não sei se arranha-céus, ou se favelas
que lado a lado arranham morros para
sustento de miséria. Imenso mar,
de altíssimas sombrias transparências,
na noite em que perpasso qual silêncio.
Não sei se amor me evita ou me protege,
ou se é de amor que eu velo o brando sono
ruidoso e povoado.
Meu coração é só de amor que sabe;
mas o que sabe, de saudoso esquece,
na angústia dúplice de não ter-te ao lado.

Durante os seis anos em que permaneceu no Brasil, Jorge de Sena optou por divulgar a literatura portuguesa sem se envolver na vida literária brasileira, a não ser como crítico: “envolvi-me totalmente na vida brasileira, sem no entanto deixar de ter em mim, como até agora e sempre, a viva circunstância de ser um escritor português”[12].

Fica evidente a liberdade da escolha feita pelo escritor de poder escrever sobre a literatura da sua terra natal, porém, como numa espécie de deja vu, Jorge de Sena sente essa liberdade novamente ameaçada, pois em 31 de março de 1964, data oficialmente datada, tem-se início a um novo regime ditatorial no Brasil.

No que se refere às cartas trocadas com a amiga e escritora Sophia Andresen, é inegável a angústia e a frustração de Sena diante à situação política brasileira:

Como lhes invejo essas viagens que tem podido fazer! E tanto mais, quanto a minha desilusão momentânea (um momento que pode durar) com o Brasil é total (e já vinha sendo), e não desejamos, eu e a Mécia, outra coisa que não sair daqui. Mas para onde? Eu não quero perder as possibilidades de pesquisa e de trabalho, que o ensino de literatura me dá. E essas possibilidades estão sempre à mercê dos que têm por trás os governos e os favores que podem assim comerciar. No entanto, muitos amigos, por esse mundo afora, se preocuparam com o que se possa ser aqui o destino de um espírito livre; e talvez que consigamos partir mas não já: México ou Estados Unidos? Não sei dizer-lhe ainda. A Europa parece mais difícil (…). O Brasil – que nunca foi fácil… tornou-se extremamente difícil, de uma insegurança que faz esse país portugalino parecer brincadeira de crianças. Brincadeira a que não acho graça, e a que não tencionamos voltar por agora. E não me parece que, em condições de permanência, eu volte alguma vez (…) [13] .

Assim, em outubro de 1965, a convite de acadêmicos e “sustentado pela força do amor que tudo manda, e pelo ímpeto da liberdade que tudo arrasa”[14], Jorge de Sena muda-se com a família para os Estados Unidos aonde passa a lecionar Literatura portuguesa e brasileira: “Em 1965, deixei o Brasil pelos Estados Unidos, aonde vim ensinar não só literatura portuguesa, mas também a brasileira que me havia sido tão cara por décadas. E desde então as tenho ensinado a ambas”[15].

Podemos dizer que o Brasil proporcionou a Jorge de Sena um período de muita serenidade para produzir e trabalhar como nunca fizera antes e isso só foi possível graças a sensação de sentir-se um cidadão livre.

NOTAS

1 Formada em Letras pela UNESP de Assis (SP), possui pós-graduação (Lato Sensu) em Língua Italiana pela Universidade de Milão e em Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente trabalha como leitora de língua portuguesa na Università di Napoli “L’Orientale”, na Itália.

2 J. F. Lourenço, Matéria Cúmplice. Cinco Aberturas e um Prelúdio para Jorge de Sena, Guimarães, Lisboa 2012, p. 94.

3 J. de Sena, Estudos de Cultura e Literatura Brasileira, Edições 70, Lisboa 4 1988, pp. 09-12, (Em forma de prefácio J. de Sena/M. de Sena).

4 M. de Sena, Do exílio de Jorge de Sena no Brasil – breve avaliação, in “Metamorfoses – Revista de Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros da Cátedra Jorge de Sena da Faculdade de Letras da UFRJ”, v. 9, 2008, p.123, (acesso em 28 nov. 2019).

5 A. Candido, Depoimentos, in “Intelectuais portugueses e a cultura brasileira – Depoimentos 6 e estudos”, São Paulo 2002, pp. 36-37.

6 ibid p. 40.

7 ibidem.

8 G. Santos, «Como um processo testemunhal»… relances sobre a «fase brasileira», in “Metamorfoses – Revista de Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros da Cátedra Jorge de Sena da Faculdade de Letras da UFRJ”, v. 10, n. 2, 2010, p. 42, (acesso em 16 nov. 2019).

9 E. W. Said, Reflexões sobre o exílio. In “Reflexões sobre o exílio e outros ensaios”, Companhia das Letras, São Paulo 2003, p. 46.

10 ibid. p. 54.

11 J. de Sena, 1959.

12 op. cit.

13 J. de Sena, Correspondência (1959-1978), com Sophia de Mello Breyner Andresen, Ed. M. de Sena e M. A. S. Tavares, Guerra e Paz Editores, Lisboa 2006.

14 J. de Sena, O Físico Prodigioso, 7 Letras, Rio de Janeiro 2009, (Prefácio de G. Santos).

15 op. cit.

FONTE: REIS, Elaine Santos dos. “Liberdade sem medo: a fase brasileira de Jorge de Sena”. In: ANNALI – Sezione Romanza v.20 n.2, Universitá di Napoli L’Orientale, 2021. p.135-142.