Sabemos que Jorge de Sena, além de polifacetado escritor, era bastante atuante politicamente, fosse para denunciar os desmandos da ditadura salazarista, fosse para o seu acalentado sonho de pôr em diálogo as diversas lusofonias. Neste artigo, Lurdes Macedo revisita uma entrevista dada pelo poeta na ocasião de sua passagem por Moçambique, em 1972. A autora destaca elementos estruturantes da visão de mundo seniana e fornece contributos interessantes para pensarmos as culturas de língua portuguesa atuais.
Lurdes Macedo
CICANT, Centro de Investigação em Comunicações Aplicadas, Cultura e Novas Tecnologias – Universidade Lusófona, Portugal
I – Enquadramento: Jorge de Sena e as suas circunstâncias
Jorge de Sena nasceu em Lisboa, a 2 de novembro de 1919, num período da História de Portugal particularmente turbulento, caracterizado pela instabilidade política, económica e social: a I República (1910 – 1926). Os presidentes sucediam-se em catadupa sem que tivessem cumprido os seus projetos políticos, a economia nacional (inclusive a colonial) não dava mostras de desenvolvimento e a laicização não arrancava o povo ao obscurantismo atribuído à fé católica. A participação portuguesa na I Guerra Mundial, com resultados desastrosos e perdas irreparáveis, bem como as suas consequências na depauperação da nação, completam o cenário de instabilidade e de crise que propiciaria a ascensão ao poder, em 1926, de um regime salvacionista e autocrático, cujo pendor nacionalista se consubstanciaria com a instauração do Estado Novo em 1933.
É neste contexto que Jorge de Sena, filho único de um comandante da marinha mercante, ingressa na Escola Naval em 1937, para assim cumprir a expectativa parental de vir a tornar-se oficial da Armada Portuguesa. De acordo com o historiador Fernando Rosas (2012), as Forças Armadas constituíam um dos três pilares em que assentava o regime do Estado Novo, conferindo-lhe legitimidade simbólica pela afirmação da possibilidade de um destino. A demissão de Jorge de Sena do curso de cadetes, logo após a sua viagem de instrução no navio-escola Sagres, não deixa de constituir um prenúncio do que viria a ser a sua relação com o regime. Com efeito, esta experiência pessoal coincide com a fascização do Estado Novo e com a Guerra Civil em Espanha, acontecimento que mais tarde viria a inspirar o seu romance Sinais de Fogo.
Tendo começado a escrever desde a adolescência, Jorge de Sena dedica-se então ao estabelecimento de contactos com os meios intelectuais da capital: primeiro com a revista Presença, através de Adolfo Casais Monteiro, e logo depois com os Cadernos de Poesia, os quais viria a dirigir com Ruy Cinatti, José Blanc de Portugal e José Augusto França. Em 1942, publica Perseguição, o seu primeiro livro de poesia. Não tendo, entretanto, deixado de estudar, licencia-se em Engenharia Civil pela Universidade do Porto, em 1944. Entre 1948 e 1959 trabalha na Junta Autónoma de Estradas, embora mantenha uma intensa atividade intelectual e cultural como escritor, crítico literário e de cinema, conferencista e tradutor.
Contudo, o projeto totalitário que se havia instalado na sociedade portuguesa, que, na formulação de Fernando Rosas, tinha na Igreja Católica e na Polícia Política os seus dois outros pilares, havia reduzido a liberdade de pensamento e de criação ao espaço de uma só ideologia. Intelectuais e artistas haviam começado a confrontar-se com sérios problemas de perseguição e de censura logo na década de 1930. A partir daí e nas décadas seguintes, para uma parte deles, o caminho do exílio estaria traçado, sendo o Brasil o principal destino desta “fuga de cérebros”. Amon Pinho (2007) refere-se a este fenómeno, lembrando que entre os intelectuais portugueses que em tais circunstâncias rumaram ao Brasil, podem encontrar-se nomes como os de Jaime Cortesão, Hernâni Cidade, Adolfo Casais Monteiro, Eduardo Lourenço, Eudoro de Sousa, Manuel Rodrigues Lapa, Vítor Ramos, Joaquim Barradas de Carvalho, Agostinho da Silva e, já em 1959, também Jorge de Sena.
Envolvido numa tentativa falhada de golpe de estado, Jorge de Sena exila-se voluntariamente no Brasil a fim de evitar as consequentes perseguições políticas de que seria alvo. É no Brasil que vive os seus primeiros anos em liberdade na vida adulta, rasgando novos horizontes para a sua intervenção enquanto intelectual, reconvertendo-se profissionalmente e passando a lecionar Literatura. É também aí que obtém o doutoramento em Letras, em 1964, um ano após se ter naturalizado brasileiro. Durante este período, a sua atividade como poeta, novelista, romancista, ensaísta, dramaturgo e editor revela-se intensa, escrevendo algumas das suas mais importantes obras. Ao mesmo tempo, reforça a sua atividade cívica enquanto opositor ao regime do Estado Novo, participando da direção da Unidade Democrática Portuguesa até 1961 e integrando o conselho de redação do jornal Portugal Democrático até 1962. É também neste período que Jorge de Sena começa a formular um sistema de pensamento sobre a comunidade geocultural de língua portuguesa, situando-a nesse tempo como comunidade lusobrasileira. No tempo presente, e com a devida recontextualização e reatualização pós-colonial, deveremos considerá-la como comunidade de língua portuguesa.
Em 1965, Jorge de Sena aceita o convite para lecionar na Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, receando que o golpe militar de 1964 no Brasil o fizesse regressar às condições em que vivera no passado. É para aí que se muda nesse mesmo ano com a mulher, Mécia, e com os nove filhos do casal. Depois da nomeação como Professor Catedrático (1967) acaba por se transferir para a Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, em 1970, ocupando cargos de direcção quer no Departamento de Espanhol e Português, quer no Programa de Literatura Comparada.
A mudança para os Estados Unidos representa uma etapa ambivalente para Jorge de Sena: se, por um lado, é aqui que encontra a oportunidade de ensinar e disseminar a cultura lusobrasileira para além das fronteiras do espaço geocultural da língua portuguesa; por outro lado, é também aqui que vê a sua atividade cultural circunscrita ao meio académico e ao círculo da emigração. Essa circunscrição é compensada pela intensa troca de correspondência com outros intelectuais portugueses e brasileiros e pelas viagens de trabalho como aquela que, em julho de 1972, o levou até Moçambique para falar de Camões, coincidindo com as comemorações oficiais do IV Centenário da primeira publicação d’Os Lusíadas.
De salientar que, pela sua condição de opositor ao regime, a intervenção de Jorge de Sena nestas comemorações não se enquadrou no programa oficial, que foi de grande dimensão e amplamente divulgado pelos media moçambicanos da época, mas antes num programa organizado por iniciativa de uma certa intelectualidade[1] sedeada na então cidade de Lourenço Marques, mais concretamente a que se encontrava ligada à Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra.
II – Jorge de Sena em entrevista à Rádio Clube de Moçambique
a) – Introdução
Aqui chegados, convém enfatizar que este trabalho não pretende constituir uma contribuição para a biografia pessoal e intelectual de Jorge de Sena, tarefa que mereceria um aprofundamento digno de outro tipo de abordagem. Também não pretende analisar a extensão do seu contributo para o desenvolvimento da cultura lusobrasileira ou, se quisermos, da cultura da língua portuguesa. Aliás, qualquer destas ambições só poderia ser concretizada com anos de intensa investigação cujo resultado não caberia no espaço reduzido de um artigo.
O que aqui iremos analisar é o conteúdo da entrevista concedida pelo intelectual lusobrasileiro Jorge de Sena ao jornalista lusomoçambicano Leite de Vasconcelos, a 19 de julho de 1972, na Rádio Clube de Moçambique. A entrevista não chegou a ir para o ar por ter sido imediatamente censurada, tendo-se mantido inédita até 2 de Novembro de 2010, dia em que foi transmitida pela RDP Antena 2, em Portugal. Contudo, tratando-se de uma peça radiofónica com pouco mais de uma hora, esta entrevista resume com eficácia o pensamento crítico de Jorge de Sena sobre o desenvolvimento e a afirmação de uma cultura da língua portuguesa no mundo; ou seja, através da interpretação do discurso quase sempre sugestivamente metafórico e subtil do entrevistado, é possível identificar os dois pilares sobre os quais, em sua opinião, essa cultura deveria ser edificada: a desmitificação do passado histórico português e o combate ao(s) nacionalismo(s). Não surpreende, pois, que a censura a tenha interditado e que tenha chegado a público trinta e oito anos mais tarde, já na condição de precioso documento para a investigação histórica sobre o percurso e o pensamento de Jorge de Sena, em particular, e da intelectualidade com responsabilidades pela emergência de uma cultura da língua portuguesa, em geral.
b) – Os primeiros minutos da entrevista
A entrevista começa com uma intervenção de Leite de Vasconcelos na qual o jornalista afirma que o entrevistado dispensa apresentação. Dispensará ainda, nas palavras do entrevistador, um tratamento precedido de qualquer título. Naturalmente, não enfatizamos este detalhe apenas pelo detalhe; enfatizamo-lo pelo que o mesmo anuncia sobre a entrevista que há-de seguir-se: sem qualquer tipo de deferência, Leite de Vasconcelos acentua a pluridimensionalidade da obra do seu entrevistado, tratando-o pelo nome, Jorge de Sena, e seguidamente por poeta (Jorge de Sena, o Poeta), por crítico (Jorge de Sena, o Crítico) e pelas demais facetas deste intelectual, consoante a temática abordada nas questões que lhe dirige.
Após uma introdução na qual Jorge de Sena, o Poeta, é interrogado sobre o seu percurso enquanto cultor deste género literário – “Qual o itinerário que o levou à escrita de poesia? Em que correntes poéticas se inscreveu e se inscreve?” – o entrevistado faz questão de esclarecer o papel dos Cadernos de Poesia, publicação que chegou a dirigir, no panorama literário português da sua época. De acordo com Jorge de Sena, esta publicação terá sido catalogada como a “publicação de um grupo”, quando qualquer poeta, dentro de um certo padrão de qualidade e de exigência de pensamento sobre o mundo, a esta poderia submeter a sua obra. É na sequência deste esclarecimento que o entrevistador, Leite de Vasconcelos, questiona Jorge de Sena sobre o commitment ou o engagement da sua obra poética. O entrevistado assume-se sem reservas como poeta commited ou engagé com as suas próprias ideias mas nunca com programas partidários ou associativos que lhe fossem impostos. Aliás, em sua opinião, a ideia de associação era contrária àquilo que mais estimava: a convivência humana.
Leite de Vasconcelos prossegue questionando Jorge de Sena sobre como observava a literatura portuguesa que se produzia naquele tempo, estando fora do país. Recorrendo a uma sugestiva metáfora sobre as árvores que não conseguimos ver quando nos encontramos no meio da floresta, o intelectual enfatiza que estar fora do país lhe permitia analisar melhor a produção literária em Portugal, uma vez que isso criava o distanciamento necessário a uma distinção criteriosa entre o que prevalece e o que tende a afundar-se. “Todas as literaturas são feitas de coisas boas e de coisas medíocres”, afirma Jorge de Sena, e também “Não há necessidade de ler logo tudo”, pois é preciso dar tempo ao tempo para se perceber se um autor ou uma obra conseguem atingir a maturidade e a consagração.
c) – Desmitificar o passado para conhecer a História
É quando a entrevista entra numa nova fase, a de interrogar Jorge de Sena, o Crítico, que o entrevistado começa a criar condições, através de desvios (não se sabe se propositados mas, pelo menos, a propósito) e de subtis truques de retórica, para esclarecer o seu posicionamento quanto à forma como o passado histórico de Portugal é contado e, consequentemente, percebido pelos portugueses. Apesar da pergunta que lhe é lançada ser sobre o panorama literário que se vivia à época em Portugal, Jorge de Sena, desculpando-se com a dificuldade em responder, diz que será necessário revisitar o passado para se poder referir ao que denomina “o grande drama da literatura portuguesa”, ou seja, o grande afastamento e a falta de experiência da realidade concreta por parte das classes mais favorecidas, resultantes das próprias estruturas sociais do país. No seu dizer:
“(…) as pessoas, quando se tornam escritores, imediatamente ou automaticamente, do ponto de vista social, deixam de ser povo; e, quando deixam de ser povo, automaticamente deixam de saber como é que o povo fala e vive. Daí resulta grande parte do artificialismo que mesmo o maior realismo português usualmente tem, que vem de as pessoas realmente terem perdido contacto com a realidade social imediata para passarem a vê-la sob o prisma dos níveis oligárquicos de que passaram a fazer parte. (…) Só os grandes, realmente muito grandes, são os que conseguiram ultrapassar esse drama”.
Na sequência desta reflexão, Jorge de Sena conclui que até mesmo “os muito grandes” a quem é atribuído o mérito de terem conseguido ultrapassar tal constrangimento, o fizeram, mas não no sentido que lhes é apontado. Em sua opinião, será esse o caso de Fernão Lopes. É então que, servindo-se da Literatura, o entrevistado abre habilmente um caminho para a História. Mais do que apreciar o valor literário da obra do cronista, interessa a Jorge de Sena situá-la na sua própria época, para assim esclarecer os factos históricos que a mesma relata. Em sua opinião, apesar do populismo apontado a Fernão Lopes, a verdade é que ele foi cronista não só da revolução popular triunfante de 1383-1385, como também da contra-revolução aristocrática que se lhe seguiu e que dela se aproveitou para conquistar o poder. De acordo com Jorge de Sena, a leitura atenta da obra de Fernão Lopes permite perceber que a revolução popular foi arquitetada nos bastidores pela aristocracia lisboeta contrária aos interesses de Castela. É nesta circunstância que o desejo de independência e o patriotismo do povo que fez a revolução são inteiramente manobrados para que D. João I chegue ao trono português. Aliás, o entrevistado esclarece que este monarca era o menos legítimo dos pretendentes à Coroa e que só essas manobras de bastidores explicam a sua ascensão ao poder. Esclarece ainda que, se se fizer História Comparada, é possível perceber que, de entre todas as revoluções que nesse tempo agitaram a Europa, a revolução portuguesa foi a única que triunfou devido ao facto de combinar problemas sociais com problemas de independência nacional. Do seu ponto de vista, foi esse triunfo que colocou Portugal numa posição favorável face ao resto do continente nessa época. Relembra ainda que Fernão Lopes era cronista de D. João I e, por isso, escrevia ao serviço dos interesses do monarca. Pelo meio, Jorge de Sena lamenta que se fale desse período da História sem se ler a obra de Fernão Lopes que, ao contrário dos outros historiadores europeus seus contemporâneos, tinha já uma visão social da história.
d) – Os Lusíadas para além do seu valor simbólico
É sintomático que a pergunta seguinte de Leite de Vasconcelos comece com “Voltando à Literatura Portuguesa…”. Com efeito, o entrevistador consegue reorientar Jorge de Sena no sentido de se concentrar em assuntos da esfera literária por alguns minutos. Conversam sobre correntes e movimentos, sobre a incompreensão de que são alvo os escritores portugueses e sobre um certo cultivo da mediocridade em Portugal.
Ao minuto vinte e seis, o entrevistador decide introduzir na conversa o motivo da visita de Jorge de Sena a Moçambique, ou seja, o convite para realizar diversas conferências no âmbito do IV centenário da primeira publicação d’Os Lusíadas. Trata-se de uma introdução cautelosa, uma vez que, no seu tempo, o poema épico de Luís de Camões terá assumido um significado simbólico ao serviço de, no dizer de Leite de Vasconcelos, “(…) uma determinada ideologia, uma determinada doutrina política, e determinadas intenções políticas que são transplantadas (…) para uma utilização atual”. Assim, e apesar de todas as cautelas do entrevistador, é clara a sua referência à apropriação desta obra literária pelo nacionalismo português característico do Estado Novo. O desafio que é lançado a Jorge de Sena é situar a importância de Luís de Camões e d’Os Lusíadas para a época em que decorre a entrevista, independentemente do valor simbólico que lhe possa ser atribuído.
Servindo-se da sua experiência como professor de Literatura Portuguesa além-fronteiras, o entrevistado começa por esclarecer que toda a literatura produzida em Portugal até ao início do século XIX é assumida no Brasil como a literatura do passado comum da língua. Deste modo, no Brasil, a obra de Camões não se inscreve naquilo a que se poderia chamar literatura estrangeira, tal como a obra de Shakespeare também não é considerada literatura estrangeira nos Estados Unidos. Esta posição dos brasileiros, que a seu ver está correta, permite que Camões seja por eles considerado o maior poeta de língua portuguesa, revelando que o descomprometimento ideológico na interpretação d’Os Lusíadas não lhe diminui a sua enorme dimensão como obra da língua e da cultura da língua. É assim que Jorge de Sena demonstra que, se em Portugal, Os Lusíadas podem ser apresentados como o poema épico das glórias nacionais, no Brasil esta obra constitui uma referência incontornável pelo seu valor literário. Por outro lado, a sua experiência como professor de Literatura Portuguesa e de Literatura Comparada nos Estados Unidos, permitia-lhe enfatizar que Camões e a sua obra são considerados nesse país não só como expoentes máximos da literatura de língua portuguesa, como também da literatura universal. Do seu ponto de vista, este argumento chegaria para defender o valor literário d’Os Lusíadas, sobretudo quando interpretados fora das tradições culturais que representam.
e) – Desmitificar o passado para olhar a História sem complexos
Todavia, Jorge de Sena não se contenta em responder eficazmente à questão que lhe havia sido colocada. Aproveitando a introdução feita pelo entrevistador a esta mesma questão – sobre a ideologia ou a doutrina política que o poema épico de Camões poderia servir – prossegue da seguinte forma: “Tomando exactamente aquilo que você disse, e que me parece muito bem orientado, eu quereria acentuar o seguinte para historiar como é que a coisa se passou…”. A partir daí, o entrevistado contextualiza os factos históricos que se seguiram à primeira publicação da obra, em 1572, procurando sempre desmitificá-los. Na sua leitura, “Camões estava já, como se sente n’Os Lusíadas, muito aflito e com muitas dúvidas em relação ao que iria acontecer (…)”. Essa inquietação do poeta viria a fazer todo o sentido pois em 1580, em Alcácer Quibir, salienta Jorge de Sena, passou-se um “desastre nacional de proporções gigantescas”. Para lá rumaram toda a grande administração, toda a grande nobreza e “até os capitães-donatários do Brasil”, para virem a morrer ao lado do rei. Ora, do seu ponto de vista, a nação viu-se desprovida de milhares de pessoas que representavam, pelas responsabilidades que assumiam, “o país inteiro”. Nenhuma das esquadras portuguesas, presentes em todos os mares do mundo, ficou no lugar para onde havia sido destacada. A este país depauperado de lideranças, o entrevistado soma uma nota quase sempre esquecida: naquele tempo, apesar de todos os nacionalismos característicos do final do século XVI, “era perfeitamente normal dentro das estruturas políticas” da Europa e da Ásia que os reinos “mudassem de mãos”. Nesse contexto, os cidadãos não se consideravam “menos nacionais, (…) se o rei fosse um estrangeiro qualquer”. Contudo, “Portugal era um dos países que maior nacionalismo tinha desenvolvido; a literatura do século XVI demonstra isso claramente…”. Sabendo que assim era, Filipe II procurou salvaguardar a questão da sua legitimidade enquanto herdeiro do trono. No dizer de Jorge de Sena,
(…) era um homem inteligente, ao contrário do que a lenda negra o tem feito e, além do mais, era um homem que amava Portugal profundamente. Eu lembro a vocês que, um homem que era dezasseis vezes descendente de D. João I era mais português do que muitos portugueses (…) era português quase inteiramente, por todos os costados que ele tinha!
Com a Coroa portuguesa sob sua governação – e o entrevistado salienta toda a extensão dos senhorios de Filipe II antes de ser entronizado rei de Portugal – tornar-se-ia governante de um império onde não se punha o Sol. Esta era uma situação que, de acordo com Jorge de Sena, interessava ao que restou das elites portuguesas, uma vez que, como súbditos de Filipe II, poderiam passar a administrar o mundo inteiro. O período compreendido entre 1580 e 1640, no qual a Coroa portuguesa e a Coroa espanhola foram governadas sob o mesmo poder – “e isso é uma coisa que ainda hoje é difícil a muitos portugueses olhar sem complexos” – correspondeu, deste modo, a um tempo em que Os Lusíadas representavam a continuidade do ideal nacionalista. O entrevistado conclui o seu segundo exercício de desmitificação do passado aludindo ao facto de a revolução de 1640, que restaurou a independência de Portugal, ter sido, tal como a revolução 1383-1385, o resultado de um “push lisboeta” e não de um movimento popular.
f) – Camões como clássico da cultura da língua
De seguida, Jorge de Sena retorna à questão do valor literário da epopeia de Camões, para além do nacionalismo que lhe possa ser apontado. O entrevistado aproveita a ocasião para fazer uma breve retrospectiva sobre a forma como Camões foi tratado ao longo dos séculos. Começa por referir que, em toda a Europa, os classicistas do Século XVIII manifestaram uma grande consideração pelo poeta português, sugerindo o regresso à sua obra – ou seja, ao grande clássico da língua – para defender a literatura portuguesa da influência espanhola. Com o advento do Romantismo, no início do Século XIX, Camões reveste-se de grande interesse em toda a Europa por ter sido um poeta incompreendido pela sociedade e infeliz no amor. Jorge de Sena enfatiza que a Europa do Romantismo não estava interessada nas glórias portuguesas no Oriente, mas antes no mito do grande poeta. Portanto, do seu ponto de vista, a interpretação nacionalista atribuída a Os Lusíadas era algo que ocorria apenas em Portugal. Mais tarde, em 1880, pelo III centenário da morte do poeta, foram criadas condições para que se fizessem vastos estudos de revisão crítica da obra camoniana. A seu ver, isso era muito necessário, pois muita da obra de quase todos os poetas portugueses e espanhóis, desde o início do século XVI até meados do século XVII, era atribuída a Camões. Com este fenómeno, a sua obra aumentara para o dobro ou para o triplo. Com efeito, era preciso fazer um trabalho de revisão aprofundada, não porque as obras erradamente a si atribuídas fossem más, mas porque era fundamental que a autoria dessas obras fosse restituída a quem as escreveu. O entrevistado acentua, a título de exemplo, que logo na primeira edição das Líricas de Camões, publicadas a título póstumo, foram incluídos dois poemas de Garcia de Resende impressos no Cancioneiro Geral de 1516, data anterior ao seu nascimento. “O que, francamente, é atribuir muito ao génio de Camões!”, exclama Jorge de Sena. Após mais algumas considerações sobre os caminhos desejáveis para a revisão crítica da obra do poeta, trabalho que, a seu ver, se encontrava longe da sua conclusão, aproveita para introduzir na conversa um atalho que, como se vem a verificar mais adiante, o conduz precisamente onde pretende.
g) – Para acabar com tensões em torno da língua portuguesa
Esse atalho começa com a história do poeta T. S. Eliot, nascido nos Estados Unidos e naturalizado inglês, acabando por desenvolver um outro assunto: o das tensões entre portugueses e brasileiros quanto à língua comum. É assim que o intelectual nascido português e naturalizado brasileiro se posiciona:
Deixem-me lembrar a vocês uma coisa…entre a Inglaterra e a América não existem aquelas patacoadas que existem entre Portugal e o Brasil. Em Portugal não se põem os escritores brasileiros nas selectas, que é para as pessoas não se contaminarem daquela gramática horrível; e, no Brasil, não se põem os escritores portugueses para que não se pense que os escritores portugueses estão a colonizar o Brasil outra vez. O que é, evidentemente, uma situação mutuamente ridícula. Entre a América e a Inglaterra isso não há. Uma antologia da English Poetry inclui, em termos linguísticos, os poetas norteamericanos e os poetas ingleses lado a lado e ninguém se importa com os anglicismos na América ou com os americanismos na Inglaterra. Isso está abaixo da Literatura. Isso são ocupações de gramáticos desocupados. Não são ocupações de escritores, nem são ocupações dos povos cultos.
Jorge de Sena prossegue relembrando a existência de uma ciência que, ao colocar as línguas em perspetiva, revoluciona o modo de resolver estas tensões. Do seu ponto de vista, esta ciência, a Linguística, ainda não tinha entrado verdadeiramente na “consciência culta lusitana”. O entrevistado aproveita para fazer alguma pedagogia a partir dos ensinamentos da Linguística, salientando que não existem formas mais correctas do que outras de se falar uma mesma língua. O que existe é uma norma padrão artificialmente estabelecida que “não coincide com aquela que está viva na boca do povo”. Ora, o que dá sentido a essa língua padronizada é precisamente a existência de uma variedade de falares; ou seja, sem eles, a língua padrão “não tinha com que ser feita”. Por saberem disso, os grandes escritores exprimiram a sua arte em diversos níveis de linguagem. Um bom exemplo será o do próprio Camões que, para além d’Os Lusíadas, escreveu sonetos, canções, redondilhas e cartas em prosa; o mesmo é dizer, toda uma vasta obra em níveis de linguagem distintos. O entrevistado enfatiza que discorda de qualquer tipo de imposição quanto à utilização de um nível de linguagem, pois essa é uma atitude inadvertida para a cultura da língua.
De forma a complementar o que havia exposto para a desmitificação da ideia da existência uma “língua certa”, por contraposição a uma “língua errada”, Jorge de Sena chama a atenção para o facto de o português que se fala nos vários pontos do mundo divergir menos do que os dialetos falados nas várias regiões de Itália. Prossegue explicando que o italiano é uma língua artificial e culta criada pela literatura a partir do dialeto toscano, sendo utilizada para comunicação entre os italianos das mais distintas proveniências. O mesmo sucede em relação ao alemão, pois toda a Alemanha é dialetal. O que se passa em França será outro bom exemplo do mesmo fenómeno. Na opinião do intelectual entrevistado, os falantes de português não estavam expostos a tão diversa polifonia, uma vez que as diferenças entre o português europeu e o português do Brasil são menores dos que as diferenças observadas entre as várias formas de se falar nos países que referira a título de exemplo. O desconhecimento acerca destas realidades linguísticas seria uma das causas para as disputas e tensões vividas no espaço geocultural de língua portuguesa.
h) – Moçambique como espaço de produção de cultura da língua
Leite de Vasconcelos coloca mais uma questão sobre a atividade de Jorge de Sena enquanto crítico literário, a partir da qual o entrevistado disserta sobre as diferenças entre intuição e ciência, bem como entre matéria de Direito, matéria de facto e matéria de opinião, para explicar por que razão a sua forma de estar na crítica continuava a ser incompreendida.
Entrando na reta final da entrevista, Leite de Vasconcelos volta a situar a conversa nos propósitos da visita de Jorge de Sena a Moçambique. O entrevistado refere-se às conferências que irá proferir sobre Camões e Os Lusíadas e ao quanto esse tipo de tarefa o ocupara durante o ano que então decorria. Contudo, rejeita a ideia de ser um “caixeiro-viajante” de Camões, embora admita que, nesse ano, as comemorações do IV centenário da primeira publicação da epopeia camoniana o estivessem a colocar nesse papel. Aproveita a oportunidade para enumerar todos os eventos científicos dedicados a Camões nos quais participou no primeiro semestre de 1972, entre congressos, simpósios, conferências e seminários, ocorridos nas mais diversas universidades europeias e americanas. Essa será mais uma forma subtil encontrada por Jorge de Sena para reforçar a importância da obra do poeta para além do pendor nacionalista com que era (e ainda é) interpretada em Portugal. Prossegue o seu raciocínio, agradecendo a generosidade do convite que lhe foi endereçado pela Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra para visitar Moçambique, manifestando interesse em conhecer a sua vida cultural e confessando-se fascinado com a possibilidade que lhe é dada de viajar até à Ilha de Moçambique, um dos únicos lugares onde se tem a certeza que Camões viveu. Salienta que a maior parte do percurso de Camões é reconstituído a partir de elementos aceites e não a partir de factos comprovados, pelo que conhecer um lugar onde o poeta realmente viveu e de onde se escapou para publicar Os Lusíadas em Lisboa – pois, de outro modo, a obra nunca teria sido publicada – é conhecer um lugar com verdadeira importância histórica. Com esta reflexão, Jorge de Sena inscreve definitivamente Moçambique no fragmentado espaço geocultural de língua portuguesa, ato que reforçará mais adiante.
Leite de Vasconcelos pergunta então ao seu entrevistado o que pensa sobre o panorama literário de Moçambique, ou em Moçambique (sem optar pela possibilidade de um panorama literário moçambicano), dado manter amizade e intensa correspondência com vários intelectuais que aí residiam ou haviam nascido. Jorge de Sena diz não ter opinião sobre esse panorama literário, pois precisaria de passar muito tempo em Moçambique para o poder conhecer. Contudo, refere que todas as literaturas que são escritas fora dos grandes centros da vida literária acabam por sofrer de invisibilidade. Essa era uma velha tradição portuguesa (da qual até Camões se queixava) que o colocava a ele, Jorge de Sena, e aos escritores moçambicanos numa posição similar. Será de salientar que esta é a primeira vez que algum dos interlocutores desta conversa assume que tais escritores são moçambicanos e não de Moçambique, como até aí.
No entanto, o efeito centralizador de Lisboa não deveria desanimar os escritores que viviam e trabalhavam noutras geografias. Em sua opinião, a invisibilidade a que eram votados os vários escritores e intelectuais moçambicanos não invalidava que Rui Knopfli fosse um dos maiores poetas de língua portuguesa desse tempo, assim como não invalidava que Eugénio Lisboa fosse, também nesse tempo, um dos melhores críticos literários. Assumindo que tais afirmações seriam tomadas como heresias na então capital do império, Jorge de Sena usa da sua melhor ironia para afirmar que os melhores eruditos do mundo eram os de Lisboa “…simplesmente porque estão lá!”.
i) – Desmitificar o passado para combater a perda da memória
A este propósito, conta como este efeito centralizador levou a que a intelectualidade brasileira da segunda metade do século XVIII se transferisse para Lisboa para não ser ignorada. Daí que, ainda que poucos o saibam ou admitam, os grandes escritores, assim como os grandes ministros portugueses desse tempo fossem, de facto, brasileiros. A título de exemplo, Jorge de Sena refere Basílio da Gama, autor do melhor poema épico do final do século XVIII (em qualquer língua, enfatiza) ou Caldas Barbosa, estigmatizado pelo primeiro por ser mulato, que cultivava o lundum nos salões lisboetas. De acordo com o entrevistado, toda esta gente rodeou D. José, D. Maria I e D. João VI, tendo assumido um papel preponderante na transferência da corte para o Rio de Janeiro, em 1808. E terá sido por causa do rei regressar a Lisboa que essa mesma intelligentsia proclamou a independência do Brasil, em 1822.
j) – Para combater o nacionalismo: o Brasil como gigante da cultura da língua portuguesa
A entrevista termina com uma pergunta sobre a falta de cultura humanista nos Estados Unidos da América, em geral, e nas universidades americanas, em particular. Jorge de Sena baseia-se na sua experiência para afirmar que essa é uma pretensão europeia, até porque, bem vistas as coisas, a maior parte dos europeus não possuí uma cultura humanista. Do seu ponto de vista, a Europa vive acometida de uma certa falta de humildade intelectual, já que a um europeu bastava ler umas quantas páginas para que se autointitulasse humanista. Isso não acontecia nos Estados Unidos, onde as pessoas percebiam que precisavam de fazer um longo percurso de leitura e de estudo para poderem afirmar-se intelectualmente.
Por outro lado, a excessiva especialização – que, em sua opinião, se havia tornado uma indústria dentro das universidades americanas – levava a que certos académicos adquirissem elevado prestígio apenas por serem especialistas em matérias que mais ninguém conhecia. Conta os casos de um especialista em romance da Nicarágua e de um outro especialista em conto peruano que forjavam as suas carreiras académicas naquilo a que chama a “intrujice da especialização”. Contudo, salienta que estes fenómenos não deveriam constituir a imagem da vida intelectual do país. A mediocridade não podia ser interpretada como um exclusivo norteamericano; pelo contrário, existia em toda a parte e a Europa não era exceção. Pelo meio, refere o quanto a intelectualidade francesa se sabia promover, levando a que o sucesso da maior parte dos escritores do noveau roman – à exceção dos casos de Marguerite Duras e de Claude Simon – fosse pouco merecido. Aproveita também para sugerir que, pesem embora os casos usados para ilustrar o fenómeno da especialização dentro das universidades americanas, nesse momento valia bem mais a pena dedicar atenção às novas literaturas hispanoamericanas do que às literaturas europeias mais consagradas.
Nesta sua última alocução, Jorge de Sena não deixa de demonstrar a enorme dimensão da cultura da língua portuguesa. Pegando precisamente no caso das literaturas hispano-americanas, conta o quanto a sua posição sobre a abordagem às mesmas se havia tornado fraturante no seio da academia norteamericana. O intelectual defendia que a literatura brasileira era um caso à parte no panorama iberoamericano e que só poderia ser comparada com as literaturas hispanoamericanas se fossem consideradas as diferenças das literaturas dos seus diferentes estados. Assim, da mesma forma que se estudavam as literaturas peruana, uruguaia ou panamense, deveriam ser estudadas as literaturas do Ceará, de Minas Gerais ou do Rio de Janeiro.
Com esta proposta, justificada pelo gigantismo e pela diversidade do Brasil, Jorge de Sena procura mais uma vez colocar a cultura da língua portuguesa a par das grandes culturas geolinguísticas do mundo. Aliás, bem analisado o conteúdo desta entrevista, é esse o exercício a que se dedica a maior parte do tempo. Fá-lo desfazendo mitos e demonstrando que o nacionalismo é, ao contrário do que poderia parecer, um óbice à afirmação dessa grande cultura no mundo. Pena é que, passados mais de cinquenta anos sobre esta sua entrevista, nos quais se deram as independências africanas e de Timor-Leste, e em que o mundo entrou num novo capítulo da narrativa evolutiva da globalização, sejam ainda poucos os que, capazes de desmitificar o seu passado histórico e de ultrapassar o nacionalismo, percebem a cultura da língua portuguesa como o lugar inclusivo onde se encontram todos aqueles que a falam.
Bibliografia
Pinho, Amon (2007). A diáspora da inteligência lusa na hermenêutica histórica de Agostinho da Silva: uma teoria anti-elitista da história de Portugal. In Convergência Lusíada, Número especial Centenário de Agostinho da Silva. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, pp. 28 – 44.
Rosas, Fernado (2012). Salazar e o Poder. A Arte de Saber Durar. Lisboa: Tinta da China.
Webgrafia
http://cvc.instituto-camoes.pt/seculo-xx/jorge-de-sena-55876-dp1.html#.WRmq8-WGPIU
http://www.escritas.org/pt/bio/jorge-de-sena
NOTAS
* Este artigo é uma versão reformulada e atualizada do texto originalmente publicado nas atas do XII Colóquio Internacional Tradição e Modernidade no Mundo Ibero-Americano.
1 A este grupo pertenciam Eugénio Lisboa, Almeida Santos, Adrião Rodrigues, Pereira Leite, Rui Knopfli, António Pacheco, Rui Baltazar, António Quadros, entre outros.
FONTE: MACEDO, Lurdes. “Desmitificar o passado e ultrapassar o nacionalismo para o desenvolvimento de uma cultura de língua portuguesa: o contributo de Jorge de Sena”. In: Atlas do XII Colóquio Internacional Tradição e Modernidade no Mundo Ibero-Americano, Univ. Católica do Porto, 2017. Disponível em: https://www.academia.edu/37242278/ATAS_XII_COLOQUIO_INTERNACIONAL_TRADI%C3%87%C3%83O_E_MODERNIDADE_NO_MUNDO_IBERO-AMERICANO