O Portugal Democrático foi o periódico da oposição portuguesa exilada de maior longevidade. Editado a partir de São Paulo entre 1956 e 1975, a publicação, sem jamais ter sofrido censura, contou com a colaboração de expressivos nomes da cultura e da política de Portugal, do Brasil e das então colônias portuguesas em África. Obra coletiva, o jornal veio sempre a lume com a colaboração voluntária de intelectuais, operários, profissionais liberais e artistas, dos mais diferentes matizes ideológicos. Neste sentido, suas páginas refletem tal pluralidade, mas também as disputas internas no campo da oposição ao Estado Novo e ao próprio jornal.
Jorge de Sena nele colaborou entre outubro de 1959 e março de 1963, justamente na fase em que o jornal alcançou regularidade em sua periodicidade mensal e constituiu, pela primeira vez, um Conselho Editorial, que naquela altura contava com nomes como Adolfo Casais Monteiro, Carlos Maria de Araújo, Fernando Correia da Silva, Fernando Lemos, João Alves das Neves, Paulo de Castro e Vitor Ramos. A vinda para o exílio no Brasil de personalidades como Humberto Delgado, também em 1959, fez com que a “questão portuguesa” ganhasse mais espaço na mídia e junto aos imigrantes. Além disto, a inserção de muitos portugueses oposicionistas em diversos setores da sociedade brasileira contribuiu para uma aproximação entre a oposição exilada e universidades, editoras, sindicatos, partidos e associações profissionais e estudantis (Silva, 2006). Em poucos anos o jornal expandiu sua circulação para diversas partes do Brasil, para núcleos da oposição em todos os continentes e mesmo para Portugal.
Assim como para a maioria dos seus quadros, a regular contribuição de Sena ao jornal, e às outras ações por este articuladas, deu-se paralelamente à sua vida pessoal e profissional. Naqueles anos ministrou aulas em Araraquara e Assis, preparou teses e manteve sua produção literária e crítica. Além disto, organizou edições e publicou na imprensa especializada e na grande imprensa. No que se refere ao Portugal Democrático foram, ao todo, 37 textos (Santos, 2005 e 2010), alguns dos quais editoriais ou notas, geralmente não assinados ou sob pseudônimo. Por se tratar de um periódico essencialmente político, as diversas formas de colaboração de Sena para o jornal também traduzem as múltiplas formas de intervenção política consideradas pelo escritor. Assim, além do poema “Desta Vergonha de Existir Ouvindo” (n. 29, Out/1959, p. 5), publicou textos de cultura ou de homenagem a personagens históricos como o Infante Dom Henrique, Agostinho Neto, Álvaro Lins, Jaime Cortesão. Outro conjunto de textos refere-se ao posicionamento ou comentários do jornal frente a conjunturas políticas específicas e apresenta ora um Sena editorialista (“Um 5 de Outubro”, n. 30, Nov/1959; “Salazar processa o New Stateman”, n. 31, Dez/1959; “Uma vitória da Democracia”, n. 33, fev/1960, dentre outros) ora jornalista noticioso, embora com estilo inconfundível (notas como “O General Delgado presidiu às comemorações do 31 de janeiro”, n. 33, Fev/1960).
Nas páginas do Portugal Democrático também foi publicado o discurso de Sena por ocasião das comemorações do 50º. Aniversário da República (“Mensagem de Jorge de Sena – Nas Comemorações do 05 de Outubro”, n. 42, Nov/1960) e textos por ele redigidos, mas assinados coletivamente, como no caso de manifestos como “Uma conspiração contra a Democracia”, assinado pela Comissão Redactorial do Portugal Democrático (n.38, Jul/1960); “Comunicado do Comité dos Intelectuais” (n. 58, Mar/1962) e “O Cap. Almeida Santos assassinado pela PIDE (carta protesto)” (n. 36, Mai/1960), pelo Comité dos Intelectuais e Artistas Portugueses Pró-Liberdade de Expressão. Mas foram os textos que assinou aqueles que mais o evidenciam como uma “pessoa politicamente envolvida e sempre independente” (Sena, 1977, p. 11). Ao todo, foram 13 textos assinados (Oliveira, 2010), nos quais, em sua maioria, Sena aparece como crítico do regime e articulista polêmico mas interessado na organização de ideias, projetos e ações em prol de uma oposição unificada. Com estilo e vocabulário próprio – Sena não se utiliza dos jargões ou palavras de ordem comuns a diversas afiliações políticas – seu texto causava estranhamento na maioria dos militantes de partido. Além do mais, não poupava comentários e investidas irônicas contra os diferentes setores da oposição, provocando reações, réplicas e tréplicas, sobretudo em torno de duas questões fundamentais: as formas de organização da oposição (tanto em Portugal, quanto no exílio) e a “questão colonial”.
Os desdobramentos da Revolução Cubana de 1959 acabaram por repercutir na América Latina e o início da década de 1960 foi marcado por mobilizações em torno de transformações estruturais e a radicalização do discurso e das ações em diversos setores das esquerdas. Nas páginas do Portugal Democrático é possível identificar uma disputa interna em relação à orientação do jornal (Silva, op.cit., p. 108). O êxito na expansão da circulação do jornal contou com o apoio decisivo de redes comunistas. Contudo, a crescente influência do PCP e do PCB sobre o jornal parece ter lugar em 1961, adquirindo orientações partidárias que são sutilmente denunciadas por Jorge de Sena no artigo “As Esquerdas” (n.49, jun/61). De fato, Sena estende suas críticas a todos os setores da oposição, conclamando pela unidade. O ano de 1961 também foi marcado pelo início dos conflitos de libertação nacional em Angola. A “questão colonial” tornou-se objeto das principais cisões na almejada unidade interna da oposição (Silva, op. cit.). Ainda antes do início dos conflitos, o artigo de Sena intitulado “A Comunidade de Estados Portugueses” (n. 39, Ago/1960) foi interpretado por alguns setores do jornal, sobretudo aqueles mais próximos do PCP, como uma alternativa neocolonial (Rodrigues, 2002, p. 191), embora o nome de Sena viesse a figurar em ocasiões posteriores em manifestos coletivos favoráveis à autonomia dos territórios portugueses em África.
O afastamento de alguns militantes em decorrência da “questão colonial” e de conflitos internos, bem como o desgaste de lideranças políticas como Humberto Delgado e Henrique Galvão, levaram à criação, em outubro de 1961, da Unidade Democrática Portuguesa (UDP), iniciativa apoiada pelo Portugal Democrático e da qual participou Sena, no cargo de vice-presidente, ao lado de Adolfo Casais Monteiro e Paulo de Castro. A UDP pretendia reconstituir a unidade da oposição e teria por finalidade viabilizar a realização de tarefas como o estabelecimento de contatos com personalidades da política e da cultura, promoção de conferências e iniciativas culturais, reunião e circulação de notícias sobre Portugal, sobre a oposição e a “questão colonial” (Silva, op.cit.). Em sua carta de princípios explicitava-se o papel da oposição no exílio e a defesa da causa anticolonial. Na prática, acabou por substituir o “Serviço de Informação Portugal Democrático”, criado um ano antes. Mas a UDP tornou-se mais operacional a partir de 1964 (Sertório, 1990, p.42) – altura em que Sena dela já tinha se afastado – editando boletins destinados a órgãos de grande imprensa, em três línguas, e reunindo documentação que serviria de base aos dossiês, encaminhados anualmente à Assembléia Geral da ONU, com denúncias de abusos cometidos pelas forças armadas portuguesas nos conflitos em África.
Em seu último artigo no Portugal Democrático, “A Unidade” (n. 65, Out/1962), Sena voltou a este tema, de maneira mais incisiva, ao referir-se à oposição como “pequeno-burguesa” e sem espírito democrático, por querer tornar “sua” a Revolução e não do povo. Seu nome tornou a aparecer nas páginas do jornal em uma nota de março de 1963, ocasião em que se retiraram em conjunto do Conselho de Redação, Adolfo Casais Monteiro, Fernando Correia da Silva, Fernando Lemos, Jorge de Sena e Paulo de Castro. Tal nota, assinada pelos nomes acima, reafirmava a necessidade de “… uma frente única contra o salazarismo e o fascismo…”, tornando pública aquela decisão “… por não se considerarem em condições de exercer a responsabilidade que lhes cabia na definição de uma política comum para o jornal”. Em seguida, saudavam a nova equipe, composta em sua maioria por comunistas. Ao final, declaravam ser “… fiéis ao lema de que todas as correntes, sem discriminação alguma, devem ser chamadas à tarefa de derrubar o fascismo português… Onde alguma discriminação for mantida, sempre a liberdade estará em perigo, e será traído o direito do povo português de decidir os seus destinos” (n. 70, Mar/1963, p.2). Depoimentos e estudos recentes (Ramos, 2004, p. 113-114; Silva, op. cit., p. 108) relacionam a saída desses “notáveis” à existência de vetos a opiniões e artigos. A publicação persistiu até 1975, apesar do golpe de 1964, que instaurou uma ditadura no Brasil – razão a mais para a partida de Sena no ano seguinte, para os Estados Unidos – tendo em seus quadros de direção e em sua linha editorial, desde então, uma majoritária presença comunista. Tomados em seu conjunto, os escritos de Sena no Portugal Democrático evidenciam autonomia intelectual e o desejo de se projetar como articulador intelectual e político daquilo que mais almejava: a unidade da oposição, a derrubada do regime e a instauração de uma Democracia em Portugal.
Bibliografia
=> OLIVEIRA, Fábio Ruela de. (2010) Trajetórias Intelectuais no Exílio: Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena e Vítor Ramos (1954-1974), Tese de Doutorado em História, Niterói: Universidade Federal Fluminense.
=> RAMOS, Ubirajara Bernini. (2004) Portugal Democrático. Um jornal da resistência ao salazarismo publicado no Brasil, Dissertação de Mestrado em História, São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
=> RODRIGUES, Miguel Urbano Rodrigues. (2002) O Tempo e o Espaço em Que Vivi, vol. I – Procurando um Caminho, Porto: Campo das Letras.
=> SANTOS, Gilda. (2005) “O Jornal Portugal Democrático – Demandas do literário em meio à proposta política” in Légua & Meia – Revista de Literatura e Diversidade Cultural, n. 3, Feira de Santana: UEFS, p. 59-69.
=> SANTOS, Gilda. (2010) “Pronunciamentos: textos políticos e discursos solenes” in Ler Jorge de Sena. Disponível em
http://www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena/port/obra/pronunciamentos/texto.php?id=140
=> SENA, Jorge de. (1977) “Prefácio à segunda edição” in Poesia I, Lisboa: Moraes Editores, 2ª. edição.
=> SERTÓRIO, Manuel. (1990) Humberto Delgado. Setenta Cartas Inéditas, Lisboa: Publicação Alfa.
=> SILVA, Douglas Mansur da. (2006) A Oposição ao Estado Novo no Exílio Brasileiro (1956-1974), Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
*Douglas Mansur da Silva. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa e Pesquisador Associado do Centro de Estudos de Migrações Internacionais, da Universidade Estadual de Campinas. Doutor em Antropologia pelo Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pesquisas sobre militância, redes intelectuais e circulação de saberes de exilados portugueses no Brasil, durante a vigência do Estado Novo em Portugal.