Neste artigo, Tania Martuscelli analisa a presença da figura de Ofélia na arte produzida nos século XIX e XX, com enfoque para os surrealistas portugueses. A partir daí, a autora investiga a pintura de Fernando de Azevedo em relação com o poema seniano presente em Metamorfoses e como o poema recria o quadro e a personagem em seus versos.
Tania Martuscelli
I. A metamorfose das artes
Jorge de Sena faz parte de uma geração em que artistas se propuseram a revisitar a fronteira entre poesia e pintura para encontrar soluções que ultrapassassem os limites entre as duas artes. Interdisciplinares, poetas e pintores da vanguarda de princípios do século XX buscaram distintos modos de criar um diálogo entre a letra e o traço, por vezes com analogias, por vezes com o recurso da ekfrásis. De forma ainda mais extrema, a partir dos anos 50, encontraram em neovanguardas como o Concretismo e a Poesia Visual uma expressão unificadora. As vanguardas com seus manifestos (dimensionista e surrealista, por exemplo, que tiveram representantes ativos entre os portugueses), e as expressões artísticas que, não afiliadas a grupos ou movimentos, alinhavavam diversos ismos, como é o caso da poética seniana, têm em comum a perspetiva mais abrangente do espaço de interseção entre poesia e pintura. Tal como José-Augusto França uma vez afirmou, «neo-primitivismo, futurismo, orfismo, interseccionismo, surrealismo, abstraccionismo, do mesmo ponto de vista são becos sem saída plástica» (França, 1951: 133). Exprimem, tais correntes, modos de pensar, mais do que propriamente de ver. Isto é, possibilitam ao observador testemunhar as diversas maneiras de ser na modernidade complexa e repleta de estímulos. Basta que se refira, como exemplo, o fenómeno do cinema, ou fotografia em movimento, que revolucionou o modo de criar, ou de ser, na mesma modernidade da primeira metade do século. Portanto, para além da relação intercambiante entre a pintura e a poesia, o século passado trouxe-nos ainda uma perspetiva nova acerca dos limites de cada expressão artística. William Carlos Williams chegou a proferir em sua autobiografia que a geração da qual fez parte foi «restless and constrained, closely allied with the painters» (Williams, 1951: 148), de maneira que revisitaram, ele e seus contemporâneos, os impressionistas, os dadaístas e os surrealistas que faziam uso, justamente, de ambas as técnicas — poesia e pintura. Na geração de Sena, ele foi um dos representantes ativos da arte com fronteiras diluídas, pois, ao encará-la de maneira multidisciplinar, conseguiu desenvolver estratégias inovadoras em sua escrita. O reconhecido livro ecfrástico Metamorfoses é exemplar neste contexto.
Mais ainda, enquanto autor e crítico, Jorge de Sena é um vate da modernidade portuguesa. Segundo argumenta Francisco Cota Fagundes, como poeta, Sena era um espectador do mundo, ao ponto de ser possível considerar o conjunto de seus versos como um diário poético (Fagundes, 1991: 11). O próprio poeta chegou a esclarecer no conhecido prefácio à segunda edição de Poesia-I que sua posição independente em relação aos movimentos artísticos — especificamente o Surrealismo — não o tornava menos atuante, já que acreditava ter refinado técnicas daquela vanguarda já em 1946 com Coroa da Terra (Sena, 1977b: 15). Seu modo de encarar um objeto estético, por exemplo, passava pela ideia da «consciência experimentada», que foi um elemento libertador da arte. Trata-se, portanto, de uma «consciência estética do mundo», como apontou em Dialécticas Teóricas da Literatura (Sena, 1977a: 149). Ao mesmo tempo, o autor defendeu a análise crítica como uma partilha dessa consciência estética, uma vez que via a função dos especialistas tornarem «visível e sensível e descritível e compreensível a complexidade» do objeto de arte (247).
Pode-se argumentar, desse modo, que o fazer poético ecfrástico de Jorge de Sena não deixa de ser seu testemunho, isto é, um «diário poético» de incursões pela arte visual e, ainda, uma «meditação aplicada», para voltar a citar Cota Fagundes (1991: 11), em comunhão com o exercício multidisciplinar de crítica e poiesis. Se a «finalidade da crítica é o conhecimento racional da obra literária», como defende Sena (1977a: 149), a finalidade do poeta é o conhecimento do mundo por via emocional. O autor de Metamorfoses traz o argumento, com isso, de que o poeta e o crítico são uma mesma pessoa, isto é, que o artista exerce «uma actividade criadora que é também crítica, no sentido de que por adição, supressão ou modificação» encontra «uma expressão que considera final» (247).
A proposta de revisitar a poesia seniana como exercício que lida com o objeto de arte e a crítica em forma de poesia ecfrástica é comparável ainda com o processo hermenêutico da receção estética, tal como foi descrito por Jauss. Na bem conhecida Estética da Receção, o autor explicita que a compreensão da obra literária se dá por via de uma reflexão exegética, seguida de uma interpretação introspetiva, acrescida ainda de uma retrospetiva histórica das leituras do texto. No presente caso, pode-se pensar esse processo em relação à receção do objeto de arte na poesia ecfrástica seniana. O processo de intelligere, interpretare e applicare, portanto, como ensina Jauss, pode ser entendido como modo de traduzir a arte por via poética. No caso do poema «Ofélia» de Jorge de Sena, os versos que dialogam com a pintura de Fernando de Azevedo do mesmo título geram um efeito estético bastante enriquecedor. Propõe-se, desse modo, reconhecer no poeta seniano o crítico de arte que analisa Ofélia, pintura surrealista, mas que de igual modo cria outro objeto de arte, isto é, o seu poema. Desta feita, referencia não somente a obra de Azevedo, como também a linhagem histórica que se inicia com a heroína shakespeariana, passa pelos românticos, simbolistas e decadentistas no século XIX, chegando ao surrealismo de maneira a celebrar a femme-fragile, ou a femme-enfant, como a quis André Breton em seu Arcane 17[1].
II. A pintura da escrita e a escrita da pintura
O título Ofélia (1950-1951) na pintura de Fernando de Azevedo[2] remete, de imediato, para a heroína de Hamlet. Como é sabido, a jovem reconhece que o Príncipe da Dinamarca, personagem que chegou a cortejá-la, mas que acabou por aconselhá-la a tornar-se freira, desiludindo-a, foi, mais tragicamente ainda, o assassino de seu pai. A deceção da heroína tornada em melancolia é percebida pelas sucessivas divagações em forma de canto que revelam sua desdita de jovem órfã e enamorada. Tais atitudes erráticas de Hamlet, que permitiram a ele mesmo a acusação de insano, acabaram por destruir a família de Ofélia e sua ideia de primeiro amor. No ápice do desespero, ela acaba por afogar-se no rio.
Esta pintura de Azevedo, não diferindo da generalidade da obra, chama a atenção pelas «texturas de objectos irreconhecíveis e a obscuridade ambiental», para citar a opinião de Rui Mário Gonçalves, que sublinha ainda que «sua noção de espaço-forma não descura as implicações simbólicas» (Gonçalves, 1999). Ou seja, Ofélia, que mantém o traço inconfundível do pintor, representa um ambiente carregado, sobretudo pelo uso do azul anil que configura o céu, de modo que se percebe o lusco-fusco da madrugada. Há um jogo de claro-escuro no primeiro plano da tela, cuja sensação estética é de uma tormenta. Tal dinâmica permite a representação do sofrimento da heroína refletido na natureza inquieta. Ainda que as águas do rio onde flutua Ofélia como um grande lírio (para recuperar o conhecido poema de Rimbaud) reflitam o peso do céu escuro, o ponto de luz recai sobre uma ideia de castelo, que seria o de Elsinore, dando a impressão dupla de peso da rocha clara em fusão com a leveza da imagem de uma espécie delicada de flor. O azul anil, o branco e o vermelho sobre o escuro das águas, transformando-se em pétala, estigma e ovário, isto é, uma flor-mulher, num movimento de ascensão, permite pensar que o claro-escuro da flor-Ofélia é também fantasma que sai do rio em direção ao céu. Contudo, com o reflexo do céu na água, assim que alcança o alto a figura feminina retorna à água e, por estar presa, na tela, a este movimento cíclico, a sensação estética se aproxima tanto do sofrimento e da insanidade, como da perpetuação da imagética da dor da heroína ao longo do tempo e espaço artístico.
Além da tragédia original de Ofélia, é possível recuperar, da história da cultura universal, dois momentos-chave que revelaram e reintegraram a personagem de Shakespeare simbolicamente na arte visual e na poesia. Trata-se da pintura de John Everett Millais, composta entre 1851 e 1852, e do poema simbolista de Rimbaud «Ophélie». Na obra do pré-rafaelita, Ofélia aparece flutuando no rio entre flores silvestres, como se essas lhe servissem de guirlanda. Com os olhos semicerrados e a boca entreaberta, a moça, que está morta, tem a feição de quem passa por uma espécie de êxtase e, com os braços prontos para um enlace, recupera a sensação do complexo sentimento de amor e desilusão (amor e dor) que sentia por Hamlet. Dos versos de Rimbaud, simbolista celebrado entre os surrealistas franceses e também portugueses, pode-se argumentar uma correlação próxima do que se intitulou «a pintura da escrita e a escrita da pintura», isto é, a relação entre a obra de Millais e a do poeta francês:
Sur l’onde calme et noire où dorment les étoiles
La blanche Ophélia flotte comme un grand lys,
[…]
Passe, fantôme blanc, sur le long fleuve noir;
Voici plus de mille ans que sa douce folie
Murmure sa romance à la brise du soir.
(Rimbaud, 1993: 27-28)
A obra do pré-rafaelita que pode servir de intertexto ao poema simbolista tem nesta obra uma das imagens mais reconhecidas da heroína shakespeariana, ainda que não tenha sido o único de sua geração. Também Arthur Hughes (1852), Thomas Francis Dicksee (1875) e Alexandre Cabanel (1883) representaram a personagem na pintura, sendo que John William Waterhouse inspirou-se nela em não uma, mas em três de suas obras (1889; 1894 e 1910). Merecem ainda ser mencionados contemporâneos franceses, tais como Eugène Delacroix (Mort d’Ophélie, 1843) Paul Delaroche (La Jeune Martyre, 1855) ou Madeleine Lemaire (1880), e ainda a russa Marie Bashkirtseff, para compreender que, entre fins do século XIX e princípios do século XX, Ofélia é representada como a insana resignada, ou a jovem lasciva em êxtase sexual, o que vai além da imagem da personagem shakespeariana desiludida com seu amor. A figura da jovem erotizada, aliás, se aproxima daquela de Alice nas famigeradas fotografias de Lewis Carroll, uma vez que a heroína do País das Maravilhas também recebeu sucessivas interpretações ao longo dos séculos[3].
Não se distanciando desta tradição, pode-se perceber tanto na pintura de Fernando de Azevedo quanto no poema de Jorge de Sena um diálogo com a linhagem do imaginário da figura de Ofélia. No caso da representação visual, o negro do rio e da noite acolhem a jovem suicida, que figurativamente ecoa na imagem do lírio que flutua, ou do fantasma que murmura sua doce loucura. Tais representações da heroína morta, que adquiriram ao longo dos séculos novas versões e, inclusive, promoveram seu renascimento[4], surgiram em diálogo com a descrição que fez a personagem Gertrudes na versão original de Hamlet:
There with fantastic garlands did she come
Of crow-flowers, nettles, daisies, and long purples
[…]
There, on the pendant boughs her coronet weeds
Clambering to hang, an envious sliver broke;
When down the weedy trophies and herself
Fell in the weeping brook. Her clothes spread wide,
And mermaid-like awhile they bore her up;
Which time she chanted snatches of old tunes,
As one incapable of her own distress,
Or like a creature native and endued
Unto that element. But long it could not be
Till that her garments, heavy with their drink,
Pulled the poor wretch from her melodious lay
To muddy death.
(Shakespeare,1987: 319; sublinhados meus)
Fernando de Azevedo e Jorge de Sena devem ser inseridos nessa linhagem dos artistas que revisitaram Hamlet e transformaram Ofélia em representante da loucura e da sexualidade femininas. Entre os surrealistas, ajudados pela interpretação psicanalítica de Freud, enfatizaram na heroína traços de desejos sexuais neuróticos, tornando-a ícone da histeria feminina e da extrema melancolia. Segundo Freud, tal sofrimento que desencadeou a histeria de fonte sexual ter-se-ia desencadeado pela perda das figuras masculinas em sua vida: o irmão, Polónio, que havia partido para a França, Hamlet, que a abandonou, e o pai, que foi assassinado pelo amado (cf. Freud, 2000 e 2005). Já para Lacan, aumentando o leque interpretativo, o nome «Ofélia» remete para «O-falo» («O-phallus»), cujo imaginário é de uma sexualidade feminina perigosa, que jamais será saciada. Ofélia representaria na escrita a eterna «falta» que tanto diminuiu como aumentou a noção de feminilidade na jovem ao longo do tempo (1982: 11).
Acrescente-se à lista Salvador Dalí que, para além de seu A Morte de Ofélia (1973), em diálogo com a obra de Millais, escreveu, anos antes, um artigo para a Minotaure (1936) acerca da idealização da heroína shakespeariana. Dalí considerou a musa excessivamente romantizada no século XIX, com luminescências que acabavam por causar terror e repugnância ao observador[5]. Já em seu trabalho visual dos anos 70, o catalão preferiu representar a heroína em queda no rio revolto, com o rosto, duplicado, a ponto de submergir. Desse modo, pode-se perceber a linhagem da figura inaugurada em Hamlet que, ao adentrar no universo surrealista, toma proporções menos realistas ou fiéis ao imaginário idealizado da jovem morta no rio. Evidente e naturalmente a imagética da heroína ultrapassa a estética romântica do século XIX. Outro exemplo de obra surrealista que merece referência neste caso é a pintura de André Masson, A Morte de Ofélia (1937), que oferece uma representação simbólica próxima do traço primitivista, especulativo, mais do que propriamente do retrato realista divulgado no século XIX. Além disso, ademais de sua Ofélia da década de 1950 presenteada a Jorge de Sena, Fernando de Azevedo tem um desenho mais tardio, intitulado A Viagem de Ofélia (1997), cujo abstracionismo lírico remete o observador para as águas revoltas do rio, numa visão coincidente com aquela de Salvador Dalí[6].
Fernando de Azevedo, ele próprio, já havia afirmado, num exercício de reflexão acerca da arte em finais do século XX, que «tantos rompimentos nas ideias estéticas e tão perplexo final perante elas, o futuro faz-se antever como que atravessado por uma linha nítida — uma fronteira — com um lado de cá a tornar-se história do mundo e história de cada um» (Azevedo, 1999). Pode-se argumentar, desse modo, com base nos exemplos das diversas representações poético-figurativas da Ofélia de Shakespeare ao longo dos séculos, que a retrospetiva, ou a história coletiva ocidental, permite que traços de individualidade e singularidade que ressurgem na mão de cada artista aumentem a carga de significantes (e significados) da personagem. Tal fenómeno provoca o efeito de ultrapassagem dos limites da tragédia original. Esse movimento, que chegará ao século XXI, permitirá que se interprete a «história de cada um», para retomar o argumento de Azevedo, de maneira cíclica, redescobrindo e recodificando a «história do mundo» shakespeariano, millaisiano, rimbaudiano, surrealista, etc.
Quando Rui Mário Gonçalves se referiu a uma «comunicabilidade intersubjectiva» na pintura de Fernando de Azevedo, exemplar no presente contexto (Gonçalves, 1999), não se referia ao diálogo entre pintura e poesia, mas ao processo exegético da receção de sua arte por via de um conhecimento — ou reconhecimento — de elementos da cultura entrevistos no abstrato da tela. Não deixa de ser curioso, mais do que mera coincidência, que Luís Adriano Carlos, num estudo sobre a poética de Jorge de Sena, defenda uma «organização da intersubjectividade» da cultura, de modo a tornar «as actividades culturais e artísticas […] intersubjectivas por excelência» (Carlos, 1993: 332). Isto é, pode-se pensar que a poesia ecfrástica de Sena exige do leitor um mecanismo de interpretação semelhante ao que Azevedo requer em sua pintura. Não obstante, quando Jorge de Sena divulga os poemas de Metamorfoses, serve-se do termo «inter-metamorfoses-propriamente-ditas» para explicá-los (Sena, 1963: 131). Se os críticos se referem a um certo inconsciente coletivo, o poeta parece defender um ponto mais internalizado no contexto da intersubjetividade já tornado elemento integral da cultura. Pode-se referir a um conceito próximo da ideia de hibridismo cultural, aliás. O resultado da obra de arte e do poema é a metamorfose, ou o processo do que é da ordem do inconsciente que passa a ser objeto estético. O exemplo da figura de Ofélia de Shakespeare, tornada musa pré-rafaelita e depois surrealista, mas não limitada a tais correntes, em Sena é objeto de análise do poeta-crítico de arte. A heroína é tomada como representação desse fenómeno internacional nas artes, percebida como referência da intermetamorfose, da comunicabilidade intersubjetiva ou da organização da intersubjetividade. No presente caso, Ofélia passa a ser a expressão portuguesa de um universo complexo, secular, da musa suicidada[7].
Leia-se o poema «Ofélia», de Jorge de Sena, datado de 20 de junho de 1959:
Vermelha chama de amarelos laivos
que escorrem pelas águas lagunares
à beira de uma praia esbranquiçada aonde
muralhas se reflectem nas quietas águas
em trémulos reflexos também
da borboleta azul incendiada e verde,
ó névoa de castelos, céu suspenso,
ó céu azul sombrio, ó Elsinore,
«Tens uma filha? Que não ande ao sol:
que ficar prenha é bênção, mas não como
pode emprenhar a tua filha. Amigo,
tem cuidado.»
Cenário, meus senhores, um céu de anil,
de tempestuosas nuvens em que um branco
prende a atenção e a praia que as muralhas
detêm no seu ventoso arripiar ligeiro
ao topo de rochedos que se escoam
como reflexos de asa ou manto real
pendendo aereamente de ombros invisíveis,
cenário, teatro: «Ó filhos indiferentes;
amei-te outrora; é breve, meu senhor;
sê casta como o gelo, pura como a neve;
que bela ideia estar metido entre
pernas de donzela!»
Pernas de donzela, ó ténues lumes
que um sopro apaga e ao contacto se abrem
do sexo túrgido incendiando os lábios
tão docemente róseos e coroados
por crespa cabeleira mais escura
que os longos, longos, os cabelos soltos!
«Ai que antes de violar-me, prometeste
casar comigo! Vem, meu coche!»
Terraços e neblinas, e muralhas turvas
e uma ansiedade colorida e crua
tão levemente insinuada a toques
de penetrada posse virginal. Ofélia!
«Enquanto uns têm de vigiar, os outros
têm de dormir. Boa noite, doce príncipe,
e que revoadas de anjos te conduzam
cantando ao teu repouso!»
Sanguineamente se dilui perdida
A borboleta ao longo de água mansas.
(Sena, 1963: 106-108)
O referido processo de transpor a representação da heroína shakespeariana para distintas épocas, que, consequentemente, vai influenciando a receção estética no imaginário cultural, pode ser inferido no poema de Jorge de Sena. Em diálogo com a obra de Azevedo, o poeta recorre à tragédia original com o intuito de criar um intertexto mais complexo em seu exercício ecfrástico. Sena inclusive dá ao leitor ferramentas para perceber a referência ao texto de Shakespeare no poema. Nas notas às suas Metamorfoses, refere que as aspas no poema são «acumulação rememorada de fragmentos do Hamlet» (Sena, 1963: 140). Especificamente, os versos «Tens uma filha? Que não ande ao sol: / que ficar prenha é bênção, mas não como / pode emprenhar a tua filha. Amigo, / tem cuidado» são uma referência ao diálogo entre Hamlet e Polónio no Ato II da peça, Cena 2: «Have you a daughter?», pergunta o herói que, obtendo resposta positiva, aconselha: «Let her not walk in’th sun: conception is a blessing: but not as your daughter may conceive. Friend, look to’t» (ibid.). Na segunda estrofe do poema português, «Ó filhos indiferentes; / amei-te outrora; é breve, meu senhor; sê casta como o gelo, pura como a neve; /que bela ideia estar metido entre / pernas de donzela!», o poeta cria um intertexto com três momentos da peça de teatro. O primeiro é uma citação do encontro de Hamlet com velhos amigos, ainda no mesmo Ato II, em que Rosencrantz responde em tom jocoso ao cumprimento do protagonista, «how do ye both?», o seguinte: «As the indifferent children of the earth.» O segundo intertexto se dá a partir da conversa entre Hamlet e Ofélia, em que aquele a recusa, «I did love you once», e segue, desdenhando-a, no Ato III, Cena 1: «If thou dost marry, I’ll give thee this plague for thy dowry: be thou as chaste as ice, as pure as snow, thou shalt not escape calumny.» O terceiro exemplo é retirado do original no momento de uma intervenção de Hamlet ao deitar-se no colo de Ofélia para assistir a uma representação no castelo, no Ato III, Cena 2: «That’s a fair thought to lie between maid’s legs.» O poeta segue com o jogo intertextual ao mesmo tempo que vai recompondo o quadro de Azevedo em versos. Para fechar a terceira estrofe, usa como referência o momento em que Ofélia, já enlouquecida, canta sua desdita, no Ato IV, Cena 5: «Quoth she, before you tumbled me, / You promised me to wed. / So would I ha’ done, by yonder sun / An thou hadst not come to my bed», e, em outra intervenção, «Come, my coach! Good night, ladies; good night, sweet ladies; good night, good night». Já a primeira parte da citação na quarta estrofe do poema seniano, vem do Ato III, Cena 2, em que Hamlet confirma a traição de Cláudio, como lhe contara o fantasma de seu pai. O protagonista havia pedido à trupe de teatro que visitava o castelo para representar o assassinato do Rei Hamlet, ao que Cláudio, com o susto e o medo de se ver desmascarado, retirou-se da sala e trancou-se em seu quarto. Neste momento, afirma o protagonista: «let the stricken deer go weep, / the hart ungalled play; / For some must watch, while some must sleep: / so runs the world away» (ibid.; sublinhado do autor). Os versos seguintes da citação vêm da fala de Horácio, no Ato V, Cena 2, em que se despede do herói que acaba de ser atingido no duelo com Laertes: «Good night, sweet prince; / And flights of angels sing thee to thy rest!» (141).
Note-se, contudo, que o poema não reconta a tragédia de Hamlet, mas recria a desdita de Ofélia; o mote não é simplesmente o texto de Shakespeare, mas também a pintura de Fernando de Azevedo no contexto do Surrealismo. As citações, como se percebe com o cotejo com o original, abrem-se a uma nova narrativa, esta que reúne imagem e texto, Azevedo e Shakespeare. A poesia de Jorge de Sena remonta o percurso de Ofélia no imaginário cultural ao longo dos séculos. A heroína seniana, em seu delírio ou no delírio do poeta, finalmente concretiza o ato sexual com seu amor. Esta Ofélia erotizada perde a pureza, e seu sexo, invadido, passa a ser descrito de modo que o vermelho do sangue se eterniza na flor ou borboleta que Azevedo pinta, tal como é vista pelo poeta.
O referente cultural da imagética ofeliana é recobrado ainda com a ajuda do pintor nas cores vermelho-chama, nos laivos de amarelo, no azul anil, no verde e no fundo branco. Tais cores são recorrentes nas sucessivas representações dos séculos XIX (e XX), não sendo diferentes na pintura de Azevedo, ainda que o traço seja distinto. Millais, por exemplo, optou por emoldurar a figura branca da heroína com o verde do bosque, ao passo que Azevedo
enquadra Elsinore no azul escuro do céu em tormenta refletido no rio; à esquerda, pela representação de Ofélia em tons de vermelho, com o céu azul e branco em pano de fundo mais claro, pode o artista remeter o observador para o momento anterior à «tormenta», em que Ofélia era ainda uma jovem pura e sonhadora.
No poema de Sena, este plano original desfeito também encontra lugar no momento em que recupera trechos de Hamlet. São, portanto, as cores da Ofélia pintada, as mesmas da Ofélia escrita. As flores que tradicionalmente entre os pré-rafaelitas lhe servem de guirlanda e representam o elemento de leveza e comunhão entre a morte e a natureza, na visão do pintor e do poeta portugueses é uma flor/borboleta que emerge da água, qual fénix levantada das cinzas. O sexo da mulher exangue, neste poema tão erótico quanto sensorialista, é visualizado pelos referentes da cor vermelha. As texturas da rocha, da água, da areia e da flor permitem a sensação estética de dureza, suavidade, peso e leveza. Combinados estes elementos com a própria proposta da pintura, isto é, o estilo de Fernando de Azevedo, confirma-se o erotismo que prolifera, em lugar do sarcasmo típico entre os surrealistas. A melancolia secular mantém-se.
O objeto estético seniano, contudo, adquire ainda novas proporções: não é pura representação de sua contraparte pintada, mas de algo maior inserido no contexto da história da arte e da literatura. O resultado final é uma vez mais a sensação de melancolia da Ofélia shakespeariana, mas neste momento num universo narrativo distinto, próprio das representações de meados do século XX. O triste langor da heroína dá-se no contexto do post-mortem do coito, ou de uma petite morte herdeira de um alusivo êxtase oitocentista que, no presente caso, não é alusão à sexualidade interrompida, mas ao ato consumado. A morte de Ofélia, portanto, é enfatizada pelo fim de sua virgindade.
Para além da referência direta à peça de Shakespeare no final de cada estrofe, o poeta compõe com palavras um quadro que, se se baseia na obra pictórica de Azevedo, também deve ser percebido como objeto estético independente. O poema principia pelo impressionismo cromático, como a própria pintura exige, em que a cor do sangue vermelho se mistura com laivos de amarelo que escorrem para a água («Vermelha chama de amarelos laivos / que escorrem pelas águas lagunares»), ao passo que com trémulos reflexos, a borboleta, antes azul, agora «incendiada», ou ensanguentada e quente, e «verde», imatura, talvez, desvenda o ato sexual: «muralhas se reflectem nas quietas águas / em trémulos reflexos também / da borboleta azul incendiada e verde». Termos como «escorrem» e «trémulos reflexos» permitem a impressão desse ato sexual, bem como o aviso do perigo de engravidar que aparece na voz do herói shakespeariano: «que ficar prenha é bênção, mas não como / pode emprenhar a tua filha». Fica desse modo evidenciada a tópica sexual. A segunda estrofe, em diálogo com a tragédia original, descreve o cenário em que se encontra a «borboleta». Se as águas aparecem mansas no princípio, o céu, em lusco-fusco, anuncia tempestade (natural e também emocional). Há uma brisa que escorre e arrepia a pele coroada pelos rochedos que detêm a praia: «um céu anil, / de tempestuosas nuvens em que um branco / prende a atenção e a praia que as muralhas detêm no seu ventoso arripiar ligeiro / ao topo de rochedos que se escoam…». Note-se, uma vez mais, a terminologia que o poeta utiliza para manter a sensualidade erótica do poema. A sensação é de isolamento, silêncio, certa tumultuosidade emocional, mas também de melancolia. A flor de Azevedo — borboleta na visão do poeta — abre-se tal como as pernas da donzela e desvenda a femme-fragile ou femme-enfant no momento de ascensão, não ao céu cristão, mas mais propriamente ao céu tempestuoso das sensações. Tais sensações (isto é, o ato sexual propriamente dito) são descritas ainda com o recurso do impressionismo visual, em que os terraços se cobrem de neblina e a vista para a muralha se turva, ao passo que o impressionismo cromático permite perceber a «ansiedade colorida» de ser possuída finalmente: «Pernas de donzela, ó ténues lumes / que um sopro apaga e ao contacto se abrem /do sexo túrgido incendiando os lábios / tão docemente róseos e coroados / por crespa cabeleira mais escura […] // Terraços e neblinas, e muralhas turvas / E uma ansiedade colorida de crua / tão levemente insinuada a toques / de penetrada posse virginal. Ofélia!» Se a heroína pré-rafaelita tem seus cabelos sensualmente representados a flutuar no rio, a heroína seniana tem descobertos seus pelos púbicos a coroar seu sexo. «Ofélia!» é o chamado final ao referido céu das sensações. O poema conclui com a representação da jovem-borboleta-sexo nas águas que diluem o vermelho de seu sangue virginal em seu azul escuro: «Sanguineamente se dilui perdida / a borboleta ao longo de águas mansas», ainda não completamente deslocada de um certo tormento, ou da tormenta, que fica refletida no rio calmo.
Ainda que focado, portanto, no ato sexual que liberta Ofélia de sua histeria, tal como viu Freud na representação do feminino na personagem de Shakespeare, ou ainda, delineando a beleza da morte, não do corpo, mas da inocência da donzela pré-rafaelita, frágil como uma borboleta ou uma flor — ambas representações do órgão sexual —, o poeta seniano mantém o diálogo com as fontes culturais que permanecem no imaginário ocidental. Além disso, apresenta uma análise crítico-poética da pintura de Fernando de Azevedo que pode se sustentar sozinha, como objeto estético, ainda que seja, em primeira instância, um poema ecfrástico. Mais ainda, tal como Rimbaud, Millais, Delaroche, Masson, Cesariny e outros tantos que os antecederam e surgiram depois, Jorge de Sena e Fernando de Azevedo colaboram com a divulgação da receção estético-poética do que se reconhece como vasto universo de representação da Ofélia e de suas variadas facetas post-mortem, eternizando-a.
NOTAS
1 Basta lembrar que para André Breton a femme-enfant é «moins une femme qu’un certain état de la féminité comme valeur a faire surgir», tal como observou Paule Plouvier (1983: 175).
2 Cf. tb. Razões Imprevistas — Retrospetiva de Fernando de Azevedo, catálogo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 180.
3 Pode-se perceber uma tendência na história da crítica literária para interpretar Alice no País das Maravilhas numa perspetiva psicanalítica até meados do século XX, sob o prisma biográfico do autor ou com foco na experiência psicadélica nos anos 1960 e, a partir de 1970, nota-se a tendência para analisar o texto com base na teoria feminista e de género. Em nossos dias, para além de revisar e revisitar a crítica ao longo das décadas, há uma tendência em desenvolver estudos que lidem com a questão matemática, retomando o foco dos tempos vitorianos.
4 Anote-se que Ofélia recebeu diversas representações e análises nas artes. No filme sueco de Svend Gade e Heinz Schall, de 1920, por exemplo, Hamlet é uma mulher que finge ser homem, apaixona-se por Horácio ao passo que este se enamora de Ofélia. No caso de filmes mais recentes como o de Kenneth Branagh, de 1996, e o de Michael Almereyda, de 2000, a personagem tem uma relação sexual com Hamlet. Tal ato aparece na pintura de Louise Bourgeois (Hamlet and Ophelia, 1996‑1997), em que Hamlet está deitado sobre Ofélia, enquanto esta está submergida no rio. No mesmo sentido, no filme chinês de Sherwood Hu, Príncipe dos Himalaias (2006), o erotismo de Ofélia é latente.
5 Literalmente, «carnal concretions of excessively ideal women, these feverish and panting materialisations, these floral and soft Ophelias and Beatrices produce in us, as they appear to us through the luminescence of their hair, the same effect of terror and unequivocal alluring repugnance of that of the soft belly of a butterfly seen between the luminescences of its wings» (Salvador Dalí, 1998: 312).
6 Cf. Fernando de Azevedo, A Viagem de Ofélia, 1997, carvão sobre papel, 24 x 32 cm, col. Museu Municipal Prof. Joaquim Vermelho, Estremoz. Reprod. in Razões Imprevistas — Retrospetiva de Fernando de Azevedo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 215.
7 Ainda entre os poetas portugueses surrealistas, mencione-se como referência à linhagem intersubjetiva o poema-homenagem de António Maria Lisboa a Rimbaud, que é um intertexto com os poemas «Ophélie» e «Enfance» do autor francês: «O Amor de Arthur Rimbaud, o Mestre do Silêncio». Numa relação mais direta com Hamlet, merece menção «You are Welcome to Elsinore», de Mário Cesariny, cujo título é uma citação do texto da peça original.
Referências bibliográficas
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FONTE: MARTUSCELLI, Tania. “Jorge de Sena e a Ofélia surrealista”. In Colóquio/Letras nº 200, 2019. p.65-78.