Eduardo Lourenço
Este texto, que Eduardo Lourenço deixou inédito, foi publicado pela primeira vez no Volume X das Obras Completas de Eduardo Lourenço – Jorge de Sena, Contemporâneo Capital (2021), com coordenação, introdução e notas de Gilda Santos, sendo aí mantida a sua redação original em francês: (In)Situation de Jorge de Sena. Por nos apresentar uma longa e completa visão de conjunto da poesia e da poética de Jorge de Sena, constitui-se como um texto fundamental para estudiosos do ensaísmo lourenciano e da obra seniana. Sem data e ainda sem pistas concludentes, é difícil determinar a sua localização temporal. Deve-se a Breno Reis e Marlon Augusto Barbosa sua primeira edição em português, destinada à revista Metamorfoses vol. 19, nº 1, de 2022. É esta a versão abaixo transcrita.
A mim próprio escuto, eu sei. Mas não de mim,
que alheio vivo a vida que em mim fala.[1]
Amigos meus: de que metamorfoses
sois vós meus fiéis e como que inimigos?[2]
Com uma dose de inconsciência que beira a cegueira, aceitei escrever (falar) sobre Jorge de Sena. Nunca se escreve impunemente. Mas como falar de alguém cuja escrita é, à partida, refratária ao olhar do outro sobre ela e acusatória de toda vontade de situá-la, de rotulá-la ou simplesmente de pensá-la? Há muito tempo, em um texto que ainda guarda seu frescor, seu jovem amigo José-Augusto França já se referia à poesia de Jorge de Sena como uma “presença ameaçadora e acusadora”[3]. A observação vale para toda sua obra. José-Augusto França compreendeu bem que esse esfolado vivo – irmão sem fraternidade em algum lugar entre Antonin Artaud e Céline – nasceu do coração da vida, todo armado, pronto para atacar antes de ser ameaçado. Por quem e em vista do quê? Por todo mundo e pela sobrevivência de seu “eu” mortal-imortal, sempre capturado na fonte problemática da existência, recusando a armadilha ou fazendo dela o mote de uma epopeia sarcástica, de uma conquista do Graal sem deus, única aventura capaz de arrefecer essa raiva misteriosa que muito cedo substitui o tão famoso leite da ternura humana. Quem se lembra de seu conto emblemático “Homenagem ao papagaio verde”[4] não precisa de luzes adicionais para compreender o enraizamento de uma violência, nunca negada, de sua relação com o mundo, violência que às vezes parece ser o único anjo que o mantém de pé sobre a espuma dos dias. Sem necessidade de uma “cena primitiva” traumatizante quando se teve à vista e à mão essa carnificina familiar da bondade, ou uma bondade muda desabrochando como uma flor rara em meio à carnificina: “Ninguém é meu amigo, ninguém é meu amigo… Só o Papagaio Verde é meu amigo”[5].
Os monstros externos, que Jorge de Sena perseguiu por toda a vida com suas imprecações e mutilou com seus golpes desmedidos, são quase nada comparados a essa memória ferida, não pelos seres do pesadelo infantil, mas pelas presenças, paterna e materna, que são dadas ao homem para adormecer todas as suas dores futuras. O encontro com o que ele mesmo chamou de “mistério do mal”, cedendo uma vez a um clichê honroso, não foi um encontro intelectual, literário, metafísico. Foi sua vivência imediata, como a ele foi imediata a inextricável percepção do bem e do mal, ali, no centro do mundo, na casa, na rua, posteriormente no universo inteiro. Muito cedo Jorge de Sena foi instruído do essencial. Sua obra carregará sempre esse selo vermelho da aprendizagem no âmago de sua carne, de sua sensibilidade, bem como dessa conjunção indissolúvel do essencial e do imediato. Em perpétuo estado de urgência – em alerta – ele sempre quis tudo e imediatamente, para ocultar ou preencher esse abismo aberto diante dele, entre seu ser régio e sua realeza saqueada.
Em algum lugar, Eugénio Lisboa comparou Sena a um célebre herói de Kipling, “O homem que queria ser rei”[6]. A comparação é muito bem-vinda. Para mim, prefiro acreditar, menos para explicar uma vida – esforço de todo inútil ou impossível – do que uma obra, que Jorge de Sena sempre se pensou e se soube rei, e que toda a obstinação que ele empregou para tornar sua realeza manifesta aos outros deriva desse dado original ou dessa aposta. Em nenhum outro lugar Jorge de Sena encenou melhor sua vocação régia do que em sua peça O Indesejado (António, Rei)[7]. Toda a sua obra, como em geral todas as obras portuguesas importantes, é exageradamente autobiográfica, mas aqui – talvez – mais que em outro lugar. A máscara em um ser tão inclinado a oferecer sua nudez agressiva ao olhar público diz isso melhor do que a face nua de seus poemas ou das ficções assumidas em seu nome, incluindo Sinais de Fogo[8], sua turbulenta e perturbadora narrativa maior, o mais belo romance de amor insano e impossível em nossa língua. Por definição, ele é rei e filho de rei em busca de reconhecimento, contra tudo e contra todos, engajado em uma luta sem outro fim senão essa morte desejada, desafiada, esse nada ainda ativo do qual ele terminará por coroar-se como Quincas Borba, o herói da solidão heroica de Machado de Assis.
Não evoco esses cenários shakespearianos para tentar me aproximar em vão do mistério humano de um homem, em última análise “demasiado humano”, mas para circunscrever a aventura criadora e cultural que tem [por] nome “Jorge de Sena”. Somente esses marcos conhecidos de nossa memória mítica parecem-me aptos a inscrever a vastidão e a vontade de potência que presidiu a construção, pedra por pedra, de uma obra tão multiforme, tão rica, tão contraditória, e sobretudo tão pouco decifrável quanto essa do autor de O Físico Prodigioso[9]. Pois se percebemos, graças a essas confissões – sempre misturadas com injunções ameaçadoras ou insultos endereçados a todos e a ninguém –, o perfil humano de seu autor, é-nos mais difícil extrair um sentido, descobrir um ponto de fuga dessa estranha busca-perseguição que terminará simbolicamente nessa coroação raivosa de Napoleão desesperado.
Por mais estranha e única que nos seja, a aventura de Jorge de Sena nos interessa também – e sobretudo – como signo que nos interpela e demanda ser decifrado enquanto percurso do nosso imaginário contemporâneo português. Nosso reino literário não se resume a somente Fernando Pessoa, nem ao diálogo obsessivo do qual ele é tema e do qual o próprio Jorge de Sena participou, até a contragosto. Ele não era desses que diriam ter nascido tarde demais em um mundo velho demais. Ele é o exato contemporâneo de si mesmo e do mundo. A nostalgia que atravessa alguns de seus poemas mais belos não é [a] nostalgia de um alhures, [a] nostalgia de um outro espaço, de um outro tempo ou de um outro mundo. Ela é somente [a] nostalgia de sua própria fulguração presente, traída sem cessar pelo tempo ou ainda por algo além, cujo nome ignoramos. É isso que muda tudo, mesmo o amor que Jorge de Sena colocou no centro de sua visão sem fim – visão perpétua –, a única que tem para nós um gosto de eternidade.
Anos sem fim, à luz do mar aceso,
te vi nudez quase total, tão grácil
figura juvenil, ambígua e fácil
e ao longe às vezes totalmente nua
em só relance de malícia crua.
[…]
Hoje, subitamente, tu não viste
ninguém senão o meu olhar quebrado,
e com lenta inocência te despiste.
Mas quantas rugas no sorriso ansiado![10]
Nele o mundo sempre se torna seu mundo, e poucas pessoas almejaram, como Jorge de Sena, nascer perpetuamente de si mesmos. Por conta própria, com uma insolência sem par, Sena redesenha a todo instante o mapa do mundo. Ele escolheu seus antecessores, e escolheu, também por indiferença perante o futuro mesmo, a sua posteridade. Escolheu seus antecessores sem pai e mãe, nus, solitários como os gigantes da Ilha de Páscoa, guerreiros de combates desmedidos e perdidos como Camões, que reescreverá a vida que deveria ter tido, como ele mesmo fez com a de Camões, com um acréscimo de maior virulência. Quanto a Pessoa, fingiu escolhê-lo, lamentando não ter sido Pessoa quem o escolheu como “aquele que viria”, encarregado de transfigurar sua revolta demasiado simbolista, demasiado melancólica ainda, seu combate perdido antes de estar engajado, em combate real, porventura igualmente perdido, mas combate de vida, combate de corpo e desejo no coração do mundo.
Ele não é o poeta do não-amor, mas o universo de todos os amores. A ficção em nome de seres fictícios não era seu fado. Com os outros, que não fossem para ele nem Camões, Pessoa, Rimbaud ou Antônio Machado, Jorge de Sena pouco se importava. Nada mais que estima, com arrependimento. Mesmo por essa Presença, que foi um pouco seu berço literário e com a qual entreteve laços complexos por toda a vida, Jorge de Sena, o Jorge de Sena advindo à plena consciência de sua maturidade não conservou um verdadeiro respeito, não se sentindo o continuador mais jovem de suas aventuras erótico-metafísicas. Mantive a lembrança de uma carta que ele me endereçou, na qual manifesta seu desdém contra os homens que foram para nossa geração as referências primeiras[11]. J. de Sena soube muito cedo que estava alhures, que desenhava uma configuração cultural diferente da que então se chamava Modernidade. Não foi apenas por humor que ele recusou toda inscrição redutora nessas categorias que fazem a alegria da crítica literária, e em particular a do Modernismo, mas por convicção e plena consciência do não-lugar onde ele se situava e a partir do qual ele tentou escavar sua própria galeria. O extremo individualismo que caracteriza seus reflexos culturais mais provocadores não é do mesmo tipo que aquele dos poetas para quem a literatura era a honra do homem ou a casa do ser. Norte demais em si, como disse André Breton[12].
Jorge de Sena surgiu na cena da cultura – na nossa e na do Ocidente – no momento em que o ilustre teatro da Literatura começava a viver de sua própria demolição. Iria ele também participar dessa matança infinitamente adiada que durante meio século substituiu-nos a vida? Sim e não. Antes não. J. de Sena nunca deixou verdadeiramente as bordas do humanismo – nesse sentido, uma vez chamei-o de o último dos nossos clássicos[13] – com o que isso supõe de memória carregada da aventura escrita passada, de diálogo permanente, sério ou irônico ou sarcástico – com seus heróis bastante malditos – como toda a sua poesia, mas também textos como O Físico Prodigioso ou “Super flumina Babylonis”[14], testemunham. Memória carregada mas sempre muito livre quanto às riquezas que carrega. Em certo sentido, Jorge de Sena manteve também a ideia do papel humanamente redentor da própria literatura, quando ela merece o título. Mas acrescentou um adicional de suspeição, uma desconfiança quanto a suas funções de servo enobrecido de todos os poderes, incluindo o da cultura, uma certa raiva misturada com desespero quanto à poesia em si, marca mais sutil do conforto da alma e do espírito. Jorge de Sena sempre repudiou, com todas as suas forças, a afetação de sublimidade, como desde o romantismo diz-se do que se chama de “Poesia”, para não meter o dedo e o resto no “magma” assustador da Vida, tal como ele a concebe ou tal como ela é. O idealismo e a idealização foram-lhe sempre um incômodo, e ele não os suportava mesmo entre os melhores, como Rilke, por exemplo.
Se entre mortos, se vivos, diz o poeta
que os anjos ignoram quando estão passando.
Como estes poetas do invisível mentem
daquilo mesmo que melhor sentiram.[15]
Se, como poeta e criador, ele não precisava de se definir e de se situar, como crítico literário não lhe foi fácil furtar-se ao sentido inscrito no seu olhar para a literatura alheia. Mas aqui, também, ele compreendeu que apenas um conjunto de polaridades, de contradições ou [de] sínteses, vividas ou assumidas, poderia circunscrever o lugar cultural do qual falava:
Uma racionalidade mais hegeliana que aristotélica, uma catolicidade mais religiosa que jurídica, um filosofismo mais dialéctico que idealista, um historicismo mais sociológico que político, um humanismo mais cultural que psicológico, um esteticismo mais poético do que artístico, são[16] o complexo sistemático – ondoyant et divers[17], como a liberdade do espírito e dos corpos o exige –, de que, metodologicamente, exerci a crítica. Isso me separou sempre dos meus contemporâneos[18].
Mais descrição que definição? Sem dúvida, e válida não apenas para o crítico, como também para o criador. Jorge de Sena não foi fundamentalmente um teórico. A teoria está incluída em sua prática criadora e é parte integrante dela. Mas salta aos olhos que seu próprio retrato, no nível menos apaixonado e passional, justifica que realmente se inscreva Jorge de Sena, sempre com reservas, na ilustre linhagem humanista. Uma visão humanista exasperada pelo sentido agudo de uma temporalidade, encarregada de dramatizar a herança ainda demasiado harmoniosa da ondulação e da diversidade à Montaigne. Não foi apenas nem principalmente por um reflexo cultural de alcance doméstico que J. de Sena escolheu Camões como sua referência suprema, como seu duplo em outro mundo. Jorge de Sena parece um personagem arrancado magicamente da órbita cultural do Renascimento, com sua ânsia enciclopédica, sua vontade de uma obra omnicompreensiva, seu erotismo apavorado, seu fervor heroico, um tipo de Cavaleiro da Roda[19], tão sombrio, lançado em um mundo com o horizonte fechado, encolhido pelos múltiplos pesadelos de seu tempo, um tempo de opressão, medo e desencorajamento. Seu gesto constante foi de não se dobrar, de não se tornar a carpideira de um mundo em lágrimas, mas de se colocar ali onde o combate, verdadeiro ou sonhado, parecia-lhe mais rude, em primeiro lugar.
Não me refiro aqui, essencialmente, a suas atitudes ideológicas ou políticas, algumas tão complexas e ambíguas quanto o resto de sua obra, mas ao combate único que ilumina e confere um sentido a seu destino de poeta e escritor: o combate com o mundo, tal como ele é, o mundo como sistema anti-humano ou pré-humano, talvez menos à mercê da mentira que da hipocrisia, e do qual se deve arrancar a máscara, não como um moralista clássico mas como um frequentador do planeta Nietzsche. Isto é, em nome de uma verdade cruel e pouco consoladora, a exigir que aquele que desmascara, ou se desmascara, seja também desmascarado. Certamente, Jorge de Sena compartilhou, como boa parte da “intelligentsia” de sua geração, uma espécie de fé ou de superstição na capacidade da nossa sociedade de construir um mundo mais progressista, como se dizia então, e não precisamos de seu artigo muito abrangente consagrado a Marx[20] ou do poema londrino sobre seu túmulo[21], ainda mais sugestivo, para sabê-lo, mas seu olhar é menos de uma perspectiva de excesso militante – que nunca foi a sua – do que de sua vontade de nunca dissociar a aventura humana – a dos outros e a sua em meio aos outros – do movimento da História, deusa talvez ainda demasiado venerada, mas não um ídolo de face única ou de curso previsível. Do marxismo – espécie de referência obrigatória de nossa juventude – Jorge de Sena recebeu sua exigência de materialidade, de enraizamento da vida dos homens na trama de gestos que lhe tornam a Natureza mais humana e inteligível, um gosto do real, um sentido da epopeia do destino humano, mas epopeia sem ilusões idealizantes, epopeia de vontade, de desafiar a si mesmo e aos outros, em vez de sinfonia mais ou menos pastoral inscrita de antemão na célebre roda da História. “Idealismo”, “idealista”, tanto quanto “espiritualista” ou “místico” ou, no campo da sensibilidade estética e literária, “romântico”, são termos que não caem nas graças do autor de Visão Perpétua[22]. Jorge de Sena admitiu que não acreditava no escolhido, em Deus, como queira; isto é, em um sentido transcendente da realidade tal como o homem e a natureza fazem-na e desfazem-na juntos.
Minha amiga Maria de Lourdes Belchior acreditou poder situar Jorge de Sena na trajetória metafísico-religiosa de Antero de Quental, com o que isso implica de angústia existencial, de dúvida sobre a ideia ou a realidade da transcendência, em suma, do que consideramos como o próprio modelo do drama da dúvida religiosa com todas as suas consequências literárias e humanas. Decerto, tudo que se pensa em qualquer nível de profundidade entre nós descende de Antero, como de Camões ou Pascoaes. Mas parece-me que Jorge de Sena advém de outra instância, mora numa outra galáxia. Jorge de Sena não era da raça dos que se matam. Ele não vem de um lugar iluminado, de uma infância feliz, mas de um lugar obscuro do qual precisou sair para sobreviver, para tornar-se de alguma maneira sua própria criatura. É a palavra vontade, é toda sua vida que será assumida sob o modo do voluntarismo, pensamento-e-ação misturados, a viver cada um por si ou um do fracasso do outro, mas não separados, em conflito mortal como em Antero, ou em dissociação original como em Pessoa. Essa experiência ao mesmo tempo pessoal e transpessoal encontrará na panóplia ideológica do marxismo a palavra-chave de sua visão de mundo, que impregna sua prática teórica de crítico e historiador da literatura, bem como sua prática criadora de poeta, contista e romancista: a palavra dialética.
Naturalmente, não se deve esperar ver Jorge de Sena prisioneiro das leituras sagradas desse famoso conceito. Jorge de Sena não é um filósofo e não busca encarar um dos conceitos ou uma das ideias mais veneráveis e mais equívocas da história do pensamento ocidental. É por tentar ler de uma nova maneira a poesia de Camões – em sintonia com a fascinação que o famoso conceito exerce sobre nossa cultura nos anos 40 – que Jorge de Sena se apropria dessa “chave de ouro” para explicar um pouco melhor, se não o mundo, pelo menos sua relação com o mundo e sobretudo o mistério sempre obscuro e sempre renovado que faz das mais altas obras humanas esse lugar onde a vida se revela simultaneamente como sombra e luz, como ser e não ser. A poesia de Camões lhe parece – não vou discutir o fundamento desse olhar fundador de sua aventura enquanto aventura intelectual (mas ela é um pouco mais que isso) – o próprio exemplo dessa dialética instável no coração do real. Esse Jorge de Sena, ainda jovem, não hesita em escrever que essa concepção antecipa a visão futura do mundo do espírito, tal como Hegel a desenvolverá sistematicamente e [que] Marx fará descer do céu idealista à terra dos homens. Na realidade, o que Jorge de Sena capta de essencial através da ideia de dialética[23] é menos a lei imanente ao movimento do real enquanto Ideia do que a visão do espetáculo da vida como luta mortal de elementos contrários, eternamente contrários, do qual se espera uma síntese futura, um final feliz e apaziguante. Em suma, como para uma parte significativa de sua geração, para Jorge de Sena não há uma Verdade, não há sequer verdade, isto é, não podemos ter a experiência dessa relação com a realidade em que tudo torna-se claro, em que a luz separa-se das trevas e o bem do mal. Mas Jorge de Sena não cede à tentação de Pessoa de perder-se imaginariamente em uma pluralidade de verdades eternamente descentradas ou, à maneira de Régio, na imaginação de uma verdade por ausência, de um “evangelho em branco” onde, de tanta ascese e anulação de si, nosso segredo e o segredo do mundo seriam revelados. De uma vez por todas, Jorge de Sena decidiu desdramatizar a questão da Verdade, a questão-Deus, a relegá-la menos ao espaço do erro ou da inexistência, do que a um fora do homem, ao mesmo tempo impensável e real, em relação ao qual o homem não é estritamente nada. É essa impotência ontológica do homem que Sena expressou no conhecido verso “tu não chegas para saber/ o que é ou não é eterno”[24], com patente eco kantiano. Temos muito a ver com a resolução da contradição permanente inscrita no coração das coisas, da história, das mentes e dos corações. A essa realidade, ainda diante de nós, ou unida a nós, por assim dizer, não temos esse acesso régio que chamamos, por conveniência, de verdade. Para Jorge de Sena, para nossa geração, a exigência do verdadeiro, impossível de alcançar, mas sempre presente, manifesta-se como forma de recusa, como combate, mais que paradoxal, contra o não-verdadeiro. Num mundo em que Deus escondeu-se ou desapareceu para sempre, resta essa misteriosa tarefa de recusar o inaceitável, sob todas as máscaras – Poder-Saber-Crer – em nome dessa Verdade-Ausência ou dessa Verdade-Ausente. É, pois, esse espaço humano aberto, nesta terra consciente de sua solicitude que Jorge de Sena abriu os olhos, a emprestar sua voz à não-verdade de um mundo preferível aos simulacros, às mentiras e às traições do antigo mundo da Verdade.
NOTAS
1 Versos de “Passagem cuidadosa”, que integra o livro Post-Scriptum, 1960, que não teve edição isolada e foi incluído como inédito na colectânea Poesia I. P1, pp. 293-294.
2 Versos do poema “Dedicatória”, do livro póstumo 40 Anos de Servidão, Lisboa, Moraes Ed., 1979. P2, pp. 550-551.
3 José-Augusto França, “Jorge de Sena, poeta temporal”, in Luciana Stegagno Picchio (org.), Jorge de Sena – Quaderni Portoghesi 13-14, Pisa, Giardini Ed., 1985, pp. 35-52.
4 Homenagem ao Papagaio Verde” integra Os Grão-Capitães. Uma Sequência de Contos, Lisboa, Ed. 70, 1976, pp. 25-50.
5 Ibidem, p. 49.
6 “Jorge de Sena: o homem que queria ser rei”, JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 24/5/1983, pp. 26-27. Rpd. em Eugénio Lisboa (org.), Estudos sobre Jorge de Sena, Lisboa, IN-CM, 1984, pp. 9-21, e Eugénio Lisboa, As Vinte e Cinco Notas do Texto, Lisboa, IN-CM, 1987, pp. 24-34.
7 Porto, Portvcale, 1951.
8 Lisboa, Ed. 70, 1979.
9 Lisboa, Ed. 70, 1977.
10 Do Soneto I de “Sete sonetos da visão perpétua”, do livro Peregrinatio ad Loca Infecta, 1969, in Poesia III. P1, pp. 518-523.
11 Em várias cartas dirigidas a EL, evidenciam-se ácidas críticas de JS aos seus contemporâneos e predecessores. Entretanto, a longa e “amarga” datada de 8/6/1967, sendo paradigmática nessa deriva, provavelmente será a aludida.
12 “Sans doute y a-t-il trop de nord en moi pour que je sois jamais l’homme de la pleine adhésion” é a frase inicial do manuscrito intitulado “Prolégomènes à un Troisième Manifeste du Surréalisme ou Non”, datado de Nova Iorque, 28/4/1942. André Breton, OEuvres Complètes, t. III, Paris, Éd. Gallimard, 1992, pp. 5-15. JS menciona-o no seu “Prefácio” a André Breton, Manifestos do Surrealismo, Lisboa, Moraes Ed., 1969. Rpd. em O Dogma da Trindade Poética (Rimbaud) e Outros Ensaios, Porto, ASA, 1994, pp. 197-207.
13 “Jorge de Sena é uma mentalidade clássica, porventura o último dos nossos clássicos” é afirmativa de EL no ensaio “Jorge de Sena e o demoníaco”.
14 Conto de Novas Andanças do Demónio, Lisboa, Portugália Ed., 1966. Livro depois integrado, com o anterior Andanças do Demónio (1960), em Antigas e Novas Andanças do Demónio, Lisboa, Ed. 70, 1978, pp. 155-166.
15 Versos iniciais de “Os vivos e os mortos ou homenagem a Rilke”, no livro Peregrinatio ad Loca Infecta, 1969, in Poesia III. P1, pp. 543-544.
16 Neste ponto, EL acrescentou, em sobrelinha, “la clef”. Porém, como não se encontra no original aqui citado e traduzido, optou-se pela omissão.
17 “Certes, c’est un sujet merveilleusement vain, divers et ondoyant, que l’homme”, Michel de Montaigne, Essais, Paris/Lyon, Périsse Frères Libr.-Ed., 1847, p. 21 (Livre I, Chapitre 1).
18 JS, “Nota introdutória”, O Poeta é um Fingidor, Lisboa, Ed. Ática, 1961. Este livro foi, segundo Mécia de Sena, “desmantelado” e seus textos reproduzidos em várias outras colectâneas. Assim, a referida “Nota” encontra-se em O Dogma da Trindade Poética (Rimbaud) e Outros Ensaios, Porto, ASA, 1994, pp. 13-18.
19 Wigalois, le Chevalier à la Roue, de Wirnt de Grafenberg, é um romance germânico do ciclo arturiano escrito, em verso, nos primeiros anos do século XIII e reproduzido em vários manuscritos. No século XV, teve uma versão em prosa, impressa em Augsburg no ano de 1493.
20 “Marx e O Capital”, in José Paulo Paes (org.), Livros que Abalaram o Mundo, São Paulo, Ed. Cultrix, 1963. Rpd. em Maquiavel, Marx e Outros Estudos, Lisboa, Livros Cotovia, 1991, pp. 113-140.
21 “Uma sepultura em Londres”, poema de Peregrinatio ad Loca Infecta, 1969, in Poesia III. P1, pp. 499-501.
22 Foi na mencionada sequência “Sete sonetos da visão perpétua” que Mécia de Sena colheu o título para o livro póstumo em que reuniu a obra poética inédita de JS, escrita entre 1942 e 1978: Visão Perpétua, Lisboa, Moraes Ed./IN-CM, 1982.
23 Na carta de 9/8/1951, incompleta e não enviada, EL questiona detidamente o conceito de “dialéctica” articulado por JS . Cf. neste volume.
24 Do poema “Purificação da unidade”, de Perseguição, 1942, in Poesia I. P1, pp. 78-80.
FONTE: LOURENÇO, Eduardo. “(In)situação de Jorge de Sena”. Trad. Breno Reis e Marlon Augusto Barbosa. In. Metamorfoses – revista de estudos literários luso-afro-brasileiros. V. 19, n. 1., Rio de Janeiro: 2023. p. 215-225.