Espreitando uma correspondência inédita: Jorge de Sena/José Saramago

Em meio às celebrações do centenário de José Saramago, trazemos este artigo de Gilda Santos sobre a correspondência entre ele e Jorge de Sena. Destacam-se, nos quase quinze anos de cartas trocadas, três temas: os bastidores de um prêmio literário, a censura do período salazarista e a consulta do poeta estreante ao poeta consagrado.

Gilda Santos*

À primeira vista, até parece volumosa a editada correspondência de Jorge de Sena com doze de seus contemporâneos[1], porém, quem percorre a casa da Randolph Road em Santa Barbara, Califórnia, onde ainda repousa grande parte de seu espólio[2], cedo percebe como essa impressão inicial está longe da verdade. Os arquivos e mais arquivos, abarrotados de cartas que ainda estão à espera de vir à luz, dão-nos a dimensão do ínfimo que tais publicações significam no conjunto da epistolografia seniana. E, se há tempo para maior apuro no vasculhar dos gavetões, é espantosa a quantidade de interlocutores cujos nomes logo saltam aos olhos: sem favor, aí estão as grandes figuras da cultura portuguesa (e não só!) de décadas do séc. XX.

Ora, se isto se passa com o escritor a quem a vida só concedeu 59 anos, o que não pensar de um outro – seu amigo, seu correspondente e inegavelmente grande – que acabou de falecer aos 87 anos? Para quem conheceu José Saramago, ou as páginas dos Cadernos de Lanzarote, ou O Caderno/blogue dos últimos tempos, é fácil pressupor a riqueza epistolográfi ca de seu legado, como aliás, a exposição “José Saramago: a consistência dos sonhos”[3] bem assinalou. Contudo, vindas à luz até o momento, apenas as cartas trocadas com José Rodrigues Miguéis, de 1959 a 1971, lançadas em meados de 2010. O que nos faz ansiar pelo muito que certamente virá.

Com tão escasso material disponível até o momento, tanto quanto sei, pouco se falou desse Saramago epistológrafo, a não ser pelas notas jornalísticas a celebrarem o novo livro. Eis porque, tendo tido acesso, em Santa Barbara, à correspondência trocada entre Sena e Saramago, dispus-me a apresentá-la aqui, em despretensioso registro informativo.

Começo pela cronologia: as 46 missivas assinadas por Saramago estendem-se de 1/4/59 a 29/11/71, exatamente ao longo dos 12 anos em que exercia a função de “diretor literário” na Editorial Estúdios Cor de Lisboa; as 41 de Jorge de Sena, das quais 17 estão extraviadas, vão de 11/12/59 a 24/4/74 – período em que já se encontrava em exílio voluntário, primeiro no Brasil (até 1965) e depois nos Estados Unidos.

As datas, na quase totalidade coincidentes com aquelas das mensagens trocadas entre Miguéis e Saramago, fazem de imediato adivinhar o principal motivo da correspondência: os acertos necessários à publicação de textos de Sena pela editora que Saramago co-dirigia, o que implica inevitáveis referências a prazos, pagamentos, revisões, vetos, postagens, divulgação, recepção… De fato, sob a chancela dos Estúdios Cor e a intermediação eficiente de Saramago, em fins de 1960, ganharam primeiras edições, tanto os contos reunidos sob o título de Andanças do Demônio, como, dentro da série “História Ilustrada das Grandes Literaturas”, o volume História da Literatura Inglesa, de A. C. Ward, revista, anotada, prefaciada e completada na época contemporânea (em 136 páginas) por Jorge de Sena. Este incumbia-se também de traduções, como a dos contos das “Mil e uma noites”, que lhe aportavam mais alguns recursos para honrar encargos que tinha deixado em Portugal.

Em 1961, transmite-lhe Saramago o convite para que fosse ele o autor do “conto de Natal”, brochura de tradição na editora, a ser ofertada como brinde festivo à “Crítica” e aos clientes e amigos da casa. Convite aceito, vem à luz “A Noite que fora de Natal”[4], último texto seniano aí publicado, apesar dos interesses recíprocos em prosseguir na parceria. Efetivamente, as cartas referem ainda os projetos frustrados de publicação das Novas Andanças do Demônio e, sobretudo, do livro de poemas Metamorfoses, cujas gênese, leitura e concepção “arquitetônica” ganham muitos parágrafos dos dois interlocutores antes da comunicação de desistência por parte da editora, devido a dificuldades orçamentais.

Sobre os dois signatários, é importante sublinhar que, apesar da pequena diferença de idade – Sena nascera em 1919 e Saramago em 1922 – há acentuada distância entre o escritor conhecido pelos vários títulos de poesia e ensaio que já publicara e o então diretor, que, no início da correspondência, apenas podia listar em seu Curriculum literário um romance (Terra do pecado, autorrepudiado durante largo tempo), e, quando ela se encerra, mais dois livros de poemas (Os Poemas Possíveis, de 1966 e Provavelmente Alegria, de 1970). Embora caiba a Saramago comunicar decisões editoriais (por vezes confessadamente duras e difíceis) a um Sena obrigado a acatá-las, aquela distância justificará o tom mais cerimonioso que inicialmente se observa nas páginas de papel timbrado que partem de Lisboa, mas que rapidamente se dissipa, substituído pelo da franca amizade, cedo recíproca, como atestam algumas considerações sobre o escrever e receber dessas cartas:

Pondera Saramago a 13 de outubro de 1960:

Ainda há quem diga que cartas são palavras: são sim senhor, mas são alguma coisa mais do que isso, quando escritas com a franqueza das suas: a confirmação de uma personalidade fortíssima e original, um pouco truculenta, sem dúvida, algo barroca e excessiva, um tumulto organizado, se os há, porque, paralelamente, a todo este fervilhar, há uma disciplina mental rara neste país desconexo. E aqui tem outra vantagem das cartas: de viva voz nunca eu lhe diria isto, não porque o não sentisse, mas por aquela espécie de pudor e de constrangimento que nos prende cá dentro as efusões, mesmo as mais sinceras (ou principalmente essas).

Declara Sena em dois momentos posteriores:

Eu estava dando pulos por falta de notícias, imaginando coisas horrorosas; felizmente as notícias vieram, e constituíram, como sempre acontece com as suas cartas, motivo de preclaras satisfações. Tenho a impressão de que, se acaso voltar a Portugal, não poderei prescindir de que V. me escreva de vez em quando. (7/4/61)

Gostei muitíssimo da sua carta […], das melhores que tenho consoladamente recebido de V. Como sempre são aquela discreta amizade, uma desencantada e sã amargura, o humor de quem sabe que o riso nem todos o merecem; e, por trás de tudo, um bom senso e um equilíbrio que lhe invejo sinceramente, quando os meus me custam (e a V. também, quem sabe) olímpicos, tanto ranger de dentes… (18/5/61)

Esboçado o enquadramento destas páginas que cruzaram o Atlântico, não é difícil deduzir os muitos temas que por elas perpassam, quer de natureza pessoal, biográfica (como, por exemplo, a sondagem que Saramago faz a um Sena já afeito ao Brazilian way of life, em fevereiro de 1962, sobre hipotética tentativa de mudança para o Brasil), quer de interesse público, documental, histórico (como as visões de ambos em relação ao mundo em que viviam e aos seus pares do circuito cultural, refletindo as muitas tensões surdas adivinháveis em tempos salazaristas, ou as incertezas temidas pós-renúncia de Jânio). Mas, ante a impossibilidade de aqui me alongar mais, concentro-me prioritariamente no diálogo à volta de questões literárias/editoriais e delas recorto três tópicos, dando voz aos próprios missivistas: os bastidores de um prêmio literário, a incontornável submissão aos ditames da Censura e a consulta do poeta iniciante ao poeta já consagrado.

O Prêmio Camilo Castelo Branco 1961

Criado pela extinta Sociedade Portuguesa de Escritores, o “Prémio Camilo Castelo Branco”[5] galardoava anualmente a prosa de ficção editada no ano anterior, e, evidentemente, constituía objeto de cobiça por parte de autores e editores.

Assim, a 13 de outubro de 1960, depois de ler quatro dos contos que Sena lhe enviara, Saramago comenta:

Não, não são nada cómodos os seus contos. São até mesmo terrivelmente incómodos. A crítica vai dar pulos de fúria (em especial os profissionais do otimismo, de qualquer cor que sejam), o público, habituado como está aos escritores à-moda-do-Minho, vai mostrar-se desconfiado de que estão a “mangar com a tropa” ou de que o querem arrancar à santa sonolência das letras e das tretas pátrias – mas se ainda houver justiça nesta terra, eu bem sei quem terá o
Camilo Castelo Branco do ano que vem… Está provado, pelos vistos, que não sou assim tão mau profeta: se já acertei no romance, porque não hei-de acertar no Prémio?…

Convicto de sua avaliação, em post scriptum na carta de 8 de dezembro de 1960, Saramago reitera: “Responda com urgência, pois não esquecemos que interessa publicar o livro até ao fim do ano… O Prémio está ao nosso alcance!” E logo que Óscar Lopes, um dos membros do júri, publica no jornal O Comércio do Porto, de 11 de abril de 1961, sua recensão a Andanças do Demónio, Saramago apressa-se em enviar o recorte a Sena, que rapidamente o comenta, na carta de 30 de abril:

Muito obrigado pela crítica do Óscar, que assim li mais depressa […]. Também me parece uma declaração de voto, e inteligente […] Acredito, e agradeço profundamente, que não ganhar eu o prémio será uma das maiores decepções da sua vida. Para mim, será sem dúvida um desgosto (pela injustiça que representará e pela vantagem financeira que me traria) – mas decepção, creio que não. É tanto delas feita a minha vida, Saramago!

No entanto, frustrando expectativas, o prêmio não é concedido a Sena, que, em carta de 18 de maio[6], adianta sua avaliação do caso:

Ontem, os jornais brasileiros noticiavam a concessão de prémio CCB à Fernanda Botelho, o que eu esperava, desde que, junto, no mesmo correio, com aquela sua carta, me veio um recorte do D[iário] de Lisboa (ou coisa parecida),
em que havia uma longa lista indiscreta com os nomes dos mais eminentes concorredores. Quero crer que o meu cunhado [Óscar Lopes] e o [Mário] Dionísio terão votado em mim; e que o espírito de corpo, em mistura, da Faculdade de Letra e da velha “Távola”, tenha, nas pessoas do David [Mourão-Ferreira] (do qual o mesmo correio me trouxe uma obrinha sobre o Teixeira Gomes, com maviosíssima dedicatória) e do Jacinto [do Prado Coelho], votado na Botelho que, se bem me lembro, já haviam querido premiar contra o Migueis. Claro que os interesses da Bertrand, a que todos mais ou menos se encontram ligados, fez o resto, já que o [ João Gaspar] Simões votaria no diabo, e não no demónio das andanças… Agradam-me, porém duas ou três coisas: 1º – eu não concorri, mas a editorial…; 2º havia, na lista, o Régio, e outros (que eu não considero muito, mas são “eminentes”) como o Redol, o Abelaira, o Urbano, também premiáveis; 3º a concessão do prémio à Botelho, notoriamente neutra ou fascistoide, mas pelo menos autora de uma literatura castrada do ponto de vista ético-político, é manifestamente uma “prudência”, uma subserviência, não digo à ordem estabelecida, mas ao não incomodarem-na. Enfim, não me lamento, porque o prémio sempre eu achei que o não ganhava; e não vos culpo: porque achei legítimo concorrer e não me opuz. Do ponto de vista financeiro, os cincoenta contos, pra quem devia em Lisboa, ainda, mais do que isso e em
requerência de pagamento urgente, sem saber onde há-de ir buscá-lo, esses trinta (cincoenta, não é?) contos, assim passados por diante do nariz, são um rude golpe. Do ponto de vista da minha situação aqui, também o são, porque
eram – embora eu não acredite em prémios – um acréscimo de prestígio entre os que acreditam neles; e, para os meus inimigos, é um farto motivo de goso. Mas não cuidemos mais desta história toda, ainda que eu fi que, curiosamente, à espera dos seus comentários póstumos.

Os solicitados “comentários póstumos” do futuro Nobel seguem a 16 de maio, na verdade antecipando-se ao pedido, já que as duas cartas se cruzaram na postagem:

Retardei a minha resposta à sua última carta, a fim de saber e lhe dizer as últimas acerca do “Prémio”. Os ventos que sopravam não enganaram: foi a Fernanda Botelho a contemplada. Fiquei um pouco zonzo, porque ainda tinha esperanças. Não quero falar do que não sei, e por isso não digo da justiça ou injustiça da decisão. Vou ler “A Gata e a Fábula”, mas vou de pé-atrás, Deus me perdôe! Páginas como “A Janela da Esquina” só acontecem uma vez em 40 anos. Será que a Fernanda Botelho escreveu alguma coisa que só aparece em 50 anos? Ou terão pesado na atribuição do prémio outras considerações? Será que é necessário correr a roda dos editores? Será que um Mourão-Ferreira, um Simões e um Prado Coelho, não têm olhos na cara e entendimento crítico avonde? Será que entre um romance, talvez correcto e honestamente feito, e um livro revolucionário, foram eles pelo seguro? Temos outra como o “Orfeu”? Quantos anos terão de passar para que sejam entendidas as “Andanças do Demónio”? Isto é como nas
paradas militares: ao batedor que vai à frente, ninguém dá por ele; é preciso que chegue o grosso da coluna para que o público comece aos berros e às palmas… E se a banda vem à frente, a tocar, isso nem se fala!…

Mas Sena, de modo desabrido como lhe permite a confiança em seu interlocutor, na carta de 23 de maio revela a ira decorrente das novas informações recebidas, acrescentando novo capítulo à história de um prêmio que muda as regras do jogo sem aviso:

Sobre o prémio, eu gratamente – e como não? – registo a sua explosão de desgosto, que é também de admiração pelo meu livro. Mas seria assim, necessariamente, Saramago. Todo o meu vanguardismo, em tudo o que tenho
feito, não teve nunca um “grupo de interesses” a clangorá-lo. Os meus amigos de grupo-não-grupo, ou os meus amigos literários, nem sempre coincidiram com os meus amigos políticos. Fui um anti-presencista, anti-“neo-realista”, antitavolagem, anti-Faculdade-de-Letras. Estou praticamente exilado. Como queria V. que eles me dessem o prémio? Embora, confesso, eu não imaginasse que chegassem ao que chegaram… Por carta do meu cunhado, recebida ontem, sei o que se passou. Quando o Óscar entrou na sala do juri, o Dionísio chamou-o de parte, para lhe explicar que o Simões fizera prevalecer o princípio da hierarquia dos géneros(!), que todos quatro aceitavam o princípio, e que votariam, assim na Gata com fábulas de Botelho. Foi um golpe de mestre, está V. a ver. Pena que, previamente, não tivessem avisado a gente. E que, provavelmente, não publiquem a razão por que excluiram os contistas… O Óscar conta que se indignou, se recusou a aceitar a tese, e votou por mim, forçando-os assim à maioria que eles queriam unanimidade. E que, em contrapartida, os fez aceitar a tese seguinte: uma vez que houvera hierarquia de géneros, sem aviso prévio, o próximo prémio seria para contos do biénio 1960-61. Só para os arreliar, e se for possível, concorreremos este ano, com uma reedição correta e aumentada das Andanças, já que novo livro, com os contos que tenho, e de que, em breve, lhe mandarei cópia do mais retumbante, não é possível. Eu creio, definitivamente,
que esse país é, do ponto de vista da moral literária, uma merda. Há professores oficiais, presencistas oficiais, comunistas oficiais, putas oficiais, tudo é oficial. E um prémio dado por essa gente não poderá deixar de ser oficial…

A onipotente Censura

É quase tautologia referir o quanto, nas décadas em pauta, pairava sobre as cabeças pensantes de Portugal a ininterrupta ameaça de ações repressivas provindas de organismos salazaristas. Uma resposta como esta, em PS – “Que eu saiba, nenhum conhecido ou amigo nosso foi servir a Pátria nas Províncias Ultramarinas…” – dada por Saramago a Sena, em 6/8/61, bem demonstra a cautela tomada pelos dois interlocutores. Mas, mesmo assim, não escaparam de uma carta de Sena (10/3/63) ter sido interceptada pela PIDE…

Nesse clima, justificam-se as preocupações dos editores quanto aos efeitos da Censura num texto a publicar (no caso, já se sabe, os contos de Andanças do Demónio). Está tudo dito na carta a Sena, datada de 8 de dezembro de 1960, escrita por um prudente Saramago, que estava longe de futurar a censura que, tempos depois, também lhe seria imposta:

Meu caro Sena:
O caso é muito grave, hoje. Peço toda a sua compreensão e, acima de tudo, que não considere que estamos a levantar obstáculos pelo prazer de lhe amargar a vida. Mas aqui trata-se de escolher entre dois amargos de boca, o seu de adoçar ou eliminar passagens do livro, ou o nosso de ver pelo menos a obra apreendida. Vamos aos factos. Nas provas que seguem com esta carta verá assinaladas passagens que reputamos altamente perigosas neste momento, em que tudo quanto possa parecer, mesmo de longe, discordância da política do governo, é considerado traição (assim mesmo, com todas as letras). Não sei se lê os nossos jornais, os discursos que aqui se fazem a toda a hora. A Emissora só abre a boca para chamar comunista a toda a atitude, nacional ou internacional, que ponha em dúvida a portugalidade das províncias ultramarinas ou o valor da nossa missão civilizadora. (Escrevo tudo isto sem reticências nem sublinhados para fazer sobressair a gravidade do caso). Publicar o livro tal qual está, naqueles trechos, equivaleria à apreensão imediata, pelo menos, repito, porque, mesmo sem querer ver as coisas negras de mais, não nos espantaríamos muito se as sanções fossem além disso. Não é exagero, creia. Nós que cá estamos, é que sabemos a atmosfera que se respira. A própria oposição tem tomado uma atitude que, se não é de apoio à política do governo, é a de quem não considera possível, aconselhável ou conveniente (escolha daqui o que preferir) outra política. Com tudo isto, queremos dizer o seguinte: é absolutamente impossível publicar qualquer passagem susceptível de cair sob a alçada dos poderes constituídos. Bem sei quanto lhe custará cortar, suprimir, transformar o que escreveu, mas creia que não há outra solução. Se procedêssemos diferentemente, podíamos contar desde já com duas coroas de martírio, mas olhe que a nossa seria bem mais pesada que a sua…
Aguardamos as suas notícias. Até lá abraça-o com muita amizade o
(ass) José Saramago

O poeta Saramago consulta o poeta Sena

Em carta datada de 6 de agosto de 1961, depois de ler os poemas de Metamorfoses, Saramago faz longa e elogiosa apreciação do livro, concluindo:

Felizmente que existem os poetas. Graças a eles (a si, Sena), as cansadas palavras de todos os dias, refazem-se, recuperam-se a si próprias e surgem novamente prenhes de poder de sugestão, de capacidade de arrebatamento. A “Metamorfose”[7] é feita destas palavras. Tudo quanto eu gostaria de encontrar num poema, está nos seus versos, talvez porque também tenha descoberto em si uma voz de muitas coisas que sinto e penso, e que imperfeitamente vou murmurando cá no íntimo. Acredito que um poeta não fala por si só. Dragão de nova espécie, o poeta não é “a bicha de sete cabeças”, mas uma cabeça com inúmeros corpos, e a sua língua articula mediùnicamente as palavras que os outros pressentem e não sabem dizer. Essa, parece-me, é a sua suprema glória, e não outra.

E, a seguir, revela:

Ao escrever isto, reparo que é a altura de lhe fazer uma confissão que me anda a saltar cá dentro há que tempos e que até hoje não me atrevi a fazer, talvez por pudor, ou coisa assim. E não a faria também hoje, se o que escrevi sobre a “Metamorfose” não me pusesse num estado de espírito que a torna inevitável. É que, cá na minha lura ao rés da terra, também me acontece às vezes fazer versos. Os amigos (favores!) dizem que gostam, e eu estou naquela conhecida situação da coruja que adora os seus corujinhos. Atitudes nada críticas, como vê. Quer o Sena dizer-me francametne o que pensa destas “produções do meu estro”? Depois disso, prometo-lhe solenemente que não volto a roubar espaço nas minhas cartas com as ditas produções. Aí vão duas amostras – e seja o que Deus quiser! [Segue-se a transcrição dos poemas “Medusas” e “Profundidade”, que integrarão Os Poemas Possíveis]
Pronto! Saiu o desabafo, e só eu sei quanto ele me custou. E antes de regressar à “Metamorfose”, só lhe quero pedir um favor: franqueza total para o bom e para o mau, que nem outra coisa o Sena poderia usar.

Evidentemente, Sena atende ao pedido do novel e modesto poeta, logo na carta seguinte, de 27 de agosto:

Li os seus corujinhos , com a maior atenção. Se são corujinhos, V. é uma coruja de classe, de belas penas e pios harmoniosos. Fico muitíssimo curioso de conhecer a ninhada toda. A elegância rítmica e metafórica dos seus poemas é de primeira ordem; e há neles uma sensualidade reflectida (não de reflexo, mas de reflexão) que sumamente me agrada. Qualquer dos dois que vieram de amostra é belíssimo; mas eu gostaria de ver, com outros, se a imagística marinha é constante sua, ou se acaso é comum apenas a alguns poemas como estes dois.

Assim estimulado, Saramago, avança com mais alguns dos Poemas Possíveis, a 20 de setembro e 29 de outubro: “Balada do mundo transformado” (na primeira carta) e “Dá-me a tua mão”, “Chove melancolia”, “Bancos”, “Calendário” (na segunda). Atitude despretensiosa que igualmente adotará para com Rodrigues Miguéis, conforme se lê na aludida correspondência. (E para quantos outros destinatários?)

Assim incentivado, vem à luz o livro que reúne essa primeira produção poética saramaguiana. No entanto, tornando-se mais espaçada a troca de mensagens entre os dois escritores, somente a 11 de junho de 1968 Sena o comentará, com elogios, atribuindo-lhe especial relevo qualitativo no contexto mais amplo da literatura portuguesa de então:

Quanto ao seu livro, como já disse, recebi-o. E li-o com especial agrado. Devo dizer-lhe que muita da poesia que recebo de Portugal […] me parece irremediavelmente o mesmo que há trinta anos somos forçados a ler desde que os Torgas se lembraram de fi xar uma forma bebida no post-simbolismo, ou lamentavelmente pedante, ou pilularmente “concreta”. O que é tanto mais triste, quanto poucas literaturas contemporâneas podem orgulhar-se de uma massa tão grande de poetas de excelente nível e interesse, neste século. Por isso, quando recebo um livro como o seu, recobro algum ânimo e satisfação: ainda se escrevem versos com profundidade, atenção, honestidade, sensibilidade, sem presunções de ser tão moderno quanto os falsos modelos da moda. Livros, diria, não-adolescentes, maduros, seriamente vividos e escritos. Porque o mal da nova literatura portuguesa (que torna tão impossivelmente ridículas as páginas literárias) é a juvenil ânsia de louvor e consagração, a petulância com que as pessoas falam de si mesmas ou com que delas se fala. O provincianismo que sempre me horrorizou em Portugal parece-me ter atingido as raias do suprareal, e é como se Lisboa fosse, à medida que cresce, cada vez mais Paio Pires ou Alguidares de Baixo. Já Unamuno dizia, pouco antes de morrer, que Portugal lhe parecia um povo de anões, todos nas pontas dos pés, a gritar que são muito altos. Durante anos, a minha geração, como nenhuma outra, resistiu: agora parece que as pessoas se instalaram na boa vida de serem “resistentes”, a a minha geração inclusive. Mas, voltando ao livro. Particularmente apreciei certo tom de contida grandiloquência, em que a ironia e o sarcasmo transparecem sobretudo
no contorno das metáforas. Estas, por outro lado, agradaram-me pelo que não possuem de gratuito (uma das coisas que mais detesto é a metáfora ornamental, com que a “liberdade” do surrealismo acabou prendendo em mau barroco muito poeta, e que está lá porque sim, e não por outra necessidade interna que a acumulação fantasiosa de metáforas). E a sua dicção tem uma grande segurança rítmica e uma notável fluência – que, deixe-me dizer-lhe, é um dos seus perigos (gostaria de vê-lo experimentar com ritmos mais abruptos e mais livres por vezes, e mais libertos do apoio da rima). Não há pior perigo do que criarmo-nos o domínio de certos ritmos e certas cadências que podem escravizar de futuro a expressão, como um arsenal sempre pronto a servir. V. não é um jovem a quem
se devam dar conselhos – e eu sempre detestei aconselhar, por pensar que o que não descobrimos e reconhecemos por nós, pouco adianta. É como crítico, porém, que falo, e não como conselheiro. E é neste sentido que, por experiência, lhe digo o que penso e sinto dos poemas que V. publicou.

Com esta crítica de mestre, a demonstrar rigor e generosidade, encerro o rápido sobrevôo pelo fértil diálogo entre dois gigantes das nossas letras, que, conforme creio ter demonstrado, imensamente se respeitavam e se admiravam.

Mas, apesar da brevidade dos exemplos dados, duas certezas interligadas se impõem: são incontáveis os veios de pesquisa que esta correspondência possibilita, e, por isso, é urgente publicar tão fértil diálogo entre Jorge de Sena e José Saramago.

Referências

PEREIRA , José Albino, org. José Rodrigues Miguéis/ José Saramago Correspondência 1959-1971. Lisboa, Ed. Caminho, 2010.


Site Ler Jorge de Sena. Disponível em: www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena. Acesso permanente.

* Doutora em Letras Vernáculas pela UFRJ, lecionou Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras dessa universidade de 1976 a 2006, quando se aposentou. Vice-Presidente do Real Gabinete Português de Leitura (Centro de Estudos), onde, desde 2001, coordena o Polo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras (PPRLB).

1 Com os seguintes interlocutores: Guilherme de Castilho, Mécia de Sena, José Régio, Vergílio Ferreira, Taborda de Vasconcelos, Eduardo Lourenço, Edith Sitwell, Dante Moreira Leite, Manuel Bandeira, Sophia de Mello Bryner Andresen, José-Augusto França e Pe. Manuel Antunes. Para maiores detalhes, ver “Escritos pessoais” no site Ler Jorge de Sena, disponível em: www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena (acesso permanente).

2 Doado pela família à Biblioteca Nacional de Portugal, o espólio está sendo paulatinamente transferido de Santa Barbara para Lisboa.

3 Exposição inaugurada em novembro de 2007 na Fundação César Manrique, de Lanzarote, Canárias, esteve depois em espaços do Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa (abril a junho de 2008), e da Fundação Tomie Ohtake, em São Paulo (novembro de 2008 a fevereiro de 2009).

4 Conto que hoje integra o volume Antigas e Novas Andanças do Demónio.

5 Não confundir com o ainda hoje existente “Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco”, instituído em 1991 pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão e APE-Associação Portuguesa de Escritores.

6 Com autorização de Mécia de Sena, esta carta está transcrita na íntegra no site Ler Jorge de Sena: www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena (acesso permanente).

7 Sistematicamente, Saramago engana-se e nomeia o livro Metamorfoses de Sena no singular.

Este texto foi publicado originalmente na revista IPOTESI em 2011.

SANTOS, Gilda. “Espreitando uma correspondência inédita: Jorge de Sena/José Saramago”. In: IPOTESI, v.15, n.1, Juiz de Fora, jan./jun. 2011, p.225-233.