Especular em verso: Sena e a experiência das artes

O diálogo interartístico é um dos componentes centrais da poesia seniana. Nesse texto, Eunice Ribeiro explora a fundo as repercussões dessa poética pautada pela reflexão e experimentação constante de outras artes, com destaque para as obras Metamorfoses (1963) e Arte de música (1968). A autora argumenta, ainda, que Sena ocupa a posição de fundador de uma vertente ecfrástica da poesia portuguesa moderna, ao mesmo tempo em que proporciona a ressignificação do próprio conceito de ecfráse.

Eunice Ribeiro
(Universidade do Minho/CEHUM)

1 – Literatura, resistência e humanismo

Salvo ocasionais vestígios daquilo que foi a negatividade moderna e modernista face aos impoderes da linguagem e a um teorizado esgotamento das suas capacidades expressivas,[1] a reflexão crítica de Jorge de Sena em torno da literatura é marcada por uma assumida e radical desmitologização. No seu entendimento do que seja a natureza do literário e as suas intencionalidades próprias, Sena distancia-se da descrença melancólica que caraterizou genericamente o pensamento e a prática artística do passado século, para assumir uma atitude reativa e desassombrada que, de um só golpe, pretende desembaraçar a literatura de dois constrangimentos paralelos: o da obrigação de dizer tudo e o da condenação de nada poder dizer, por outras palavras, o da mitologia branca dos programas realistas e do mimetismo representativo, e o do espectro romântico do inefável. Deslocando-se para fora deste circuito de deveres e castrações, Sena propõe a literatura como ‘superação’: qualquer coisa como um ‘veneno’ vital ou uma ‘prestidigitação’ alquímica capaz de transmutar a negatividade e o vazio em ação comunicante e numa arte de vida válida para toda a humanidade. Na crítica seniana, vemos desenhar-se uma teleologia literária, a um tempo, dinâmica e profundamente humanista, e em função da qual se recusa uma ideia de literatura orientada para a mera ‘sobrevivência’ ou para a ‘subserviência’ a vontades programáticas de qualquer espécie. Neste ponto, Sena não parece afastar-se substantivamente daquela que foi a ‘luta’ presencista pela independência do escritor e da criação artística que ele próprio assinalou como um dos méritos de um geração cujo ‘contrarrevolucionarismo’, em termos de cronologia estética, se tinha talvez apressadamente assinalado.[2] Mas também noutros aspetos do seu pensamento teórico-crítico Jorge de Sena aproxima-se de um certo presencismo, em particular do presencismo regiano, despojado embora das suas mais peculiares ênfases românticas: no valor humano e na dimensão coletiva que comete à experiência literária; nessa espécie de consanguinidade instituída entre a literatura (e a arte) e a vida, entre o homem e o artista; na defesa da ‘invenção’ contra a passividade retórica e livresca de uma literatura que se quer ela própria ‘viva’.

Sena poderia certamente subscrever com Régio uma ideia orgânica de língua como “meio vivo de expressão artística” (Régio, 1994: 10), ou uma ideia performativa de literatura como “novidade de processos” (id.: 11), recordando alguns momentos de um conhecido texto programático regiano, publicado em 1927, no primeiro número da folha de arte e crítica coimbrã. Também na interpretação seniana, a literatura não é passiva: pelo contrário, ela age em nome da intencionalidade do(s) sentido(s), propondo-nos — continuamente, diversamente — alternativas ao absurdo: não porque nos forneça soluções ou conclusões (a literatura suspende toda e qualquer conclusão, ou, nas palavras de Sena, ‘tira-nos o tapete’), mas porque nos propõe, de cada vez, novas configurações do possível. O amor da literatura seniano vem sobretudo dessa pressuposta relação com a vida que a constitui como condição do sentido do mundo e do nosso próprio sentido enquanto seres humanos:

A literatura cinge, cerca, delimita, persegue esse núcleo central da personalidade: e a criação literária, como transposição do limiar, define-se precisamente pelo contrário do que é normalmente entendido: define-se pela transmutação centrífuga de toda essa negação do inacessível e do intransmissível, a qual estabelece uma comunicação, um sistema de relações, um modus vivendi, no mais alto sentido da expressão. (2004: 266)

Esta visão holística do literário permite-nos compreender, por outro lado, a sua conceção transcronológica do que é ser moderno. Num ensaio de 71 acerca do conceito de modernidade na poesia portuguesa contemporânea, onde denuncia, com a verve que lhe é característica, aquilo que considera constituírem não mais do que mistificações de vanguarda e de modernidade produzidas por uma sociedade desorientada, manipulada por um consumismo analfabeto e por um desejo de autopromoção burguesa, Sena é claro — de uma clareza baudelairiana — na desvinculação que advoga entre modernidade e cronologias ou periodologias estéticas particulares. Ser moderno, nessa leitura inclusiva de Sena, é “ser-se do tempo em que se vive” (2004: 338), um tempo cuja desejável ou necessária ‘superação’ se comete à vanguarda, entendida, uma vez mais, enquanto “categoria ativa” (id.: 343) e absorvendo em si — ou realizando-a radicalmente — a missão transformadora da literatura em sentido lato. O que equivale a dizer que toda a literatura seria intrinsecamente vanguardista na ação poética que move contra o seu próprio tempo.

Por aqui se entende que a poesia em defesa da qual escreve Jorge de Sena lhe seja destilada por uma visão ‘profunda’ e eticamente comprometida, que a identifica com uma comunicação fundamental, encarada para além de ‘tribalismos’[3] doutrinários e estético-críticos de qualquer espécie: nem moderna nem antiga, nem grande nem pequena — a poesia é só uma (conforme o lema dos Cadernos de Poesia que subscreveu) enquanto gesto humano de responsabilidade e resistência que se anuncia, antes de mais, pelo trabalho exercido sobre a língua, compreendendo-a como aparelho primário do poder. A pedagogia ensaística de Sena, que autolegitima, ao mesmo tempo, a sua pessoal prática poética, constrói-se com base numa definição ético-político-filosófica de poesia enquanto crítica da vida, meditação sobre o nosso estar no mundo e ensaio de sentido(s) para o ato de viver:

Toda a poesia, grande ou pequena, maior ou menor, é (ou não será) uma crítica da vida, uma meditação sobre o estar no mundo, uma súbita visão profunda de insuspeitadas correlações entre nós e as coisas, entre nós e nós mesmos. Mas é também a capacidade de dar uma estrutura e um sentido ao próprio acto de viver, e ao problema de conhecer e de pensar, e à História como continuidade humana. (Sena, 2005: 106)

Nesta ordem de ideias, diz-nos Sena, ela fala menos do que foi do que daquilo que poderia ter sido, e é nessa “luta contra a imortalidade” (id.: 82), a favor do ínfimo, do fugaz, do não vivido, que a poesia se exercita centrifugamente como abertura e como ambiguidade, i. e., como contínua expansão da linguagem. A arte poética seniana supõe, deste modo, uma exposição ao mundo e trabalha nos seus intervalos, nas suas irrealizações, tomando-os positivamente: não como limite, mas como condição do dizer. Talvez pudéssemos falar neste sentido numa arte poética infeciosa, retomando as metáforas químicas e alquímicas de Sena pela versão de um outro poeta que com ele muito se encontrou,[4] crente da biologia transformativa da palavra e da sua ‘perfeita impureza’.

2 – Um museu de gente viva e a poesia como promessa

O exercício poético de Jorge de Sena pauta-se por uma vontade persistente de alargamento das possibilidades da palavra que usa regularmente como ‘método’ a sua exposição à contaminação das artes e dos seus diversos regimes de expressão. Neste particular, a poesia de Sena inscreve-se historicamente naquilo que é a modernidade do seu tempo e na sua poderosa tradição de diálogo interartístico, antecipando, por outro lado, o que viria a ser a nossa contemporânea cultura de convergência (Jenkins, 2008). E inscreve-se ainda, excedendo-o, no horizonte nacional de um sensacionismo ‘desenvolto’ e pós-pessoano pelo qual a poesia (moderna) se apresenta como a “vibração pessoal” de sensações novas ou latentes que “vão encontrando uma maneira de serem sentidas” (Sena, 2005: 22).

Se falamos aqui de ‘método’, vale anotar que o pensamento crítico de Sena sobre poesia não erradica o sentido do ‘mistério’ ou do ‘enigma’, tecendo-se num contínuo movimento tensional gerador de contrapontos dinâmicos ou dialéticos de conceitos: entre emoção e conhecimento, perceção e meditação, visão e alucinação (ou visão profunda) jogam-se repetidos equilíbrios meditativos de acordo com uma conceção essencialmente fenomenológica da criação poética, sobre a qual já se escreveu extensa e rigorosamente (cf. Carlos, 1999). Uma fenomenologia que acolhe uma dimensão cognitiva ou epistemológica em função da qual poesia, filosofia e conhecimento se tornam, na crítica seniana, termos não exclusivos. O que aproximaria a ideia de poesia em Jorge de Sena desse conhecimento-falena sobre o qual escreveu mais recentemente Didi-Huberman, uma espécie de ‘gaia ciência’ do intervalar, aliviada, no caso de Sena, da dimensão de ruína com que a pensa o filósofo francês [5] (conquanto a elegia não esteja ausente da poesia seniana) e tomada essencialmente na sua pregnância significante, ou, citando o poeta, na sua conivência e convivência com o ilimitado: “Nesta conivência com o ilimitado é que está a poesia” (2005:38).

Enquanto experiência a um tempo individual e coletiva do mundo e das coisas do mundo — entre as quais as outras artes lhe permitem experimentar o que é já de si experiência —, o poema para Sena acontece apesar do poeta, como se ele fosse, em certa medida, o paciente do poema ou o poema fosse mais ou menos involuntário. A ‘aparição da poesia’ em Jorge de Sena, a génese do seu exercício poético representa, assim, ao mesmo tempo um acontecimento literário, tematizado em prosa e em verso,[6] e um acontecimento biográfico que resulta diretamente de uma vivência estética, de uma experiência vivida dos outros fazeres artísticos. Daí a ideia seniana do poema como “coágulo de uma palpitação humana” (Sena, 2005: 28), o que não é, em todo o caso, o mesmo que entender-se a poesia, romântica ou realisticamente, enquanto ‘expressão vital’ ou ‘documento humano’.

Na singularidade da sua interpelação das artes como estimuladora da criação poética, Jorge de Sena ocupa no plano da poesia portuguesa do século XX um lugar fundador — e nesse sentido, um lugar de vanguarda – e reconhecidamente tutelar (cf.Coelho, 1988:121) em relação a inúmeros poetas de língua portuguesa das gerações seguintes. Metamorfoses (1963) e Arte de Música (1968) constituem obras pioneiras na reinterpretação que iniciaram entre nós da remota prática da écfrase poética, ao mesmo tempo que facilitaram a sinalização de alguns inerentes equívocos ao conceito ecfrástico e provocaram a necessidade da sua reconceptualização. Essa “reflexão provocativa”, como a apelidou recentemente Ida Alves (2017: 78), que Sena leva a cabo nesses dois volumes poéticos a partir de objetos estéticos visuais e musicais, interpelados na sua historicidade própria e para além dela, não pode dizer-se absolutamente inédita ou sem precedentes. São livros de um poeta culto que não receia ser inteligente (e nem só ‘intuitivo’), de um poeta com memória que conhece a tradição literária nacional e ocidental, que visita museus e é ciente da enciclopédia do mundo. É, aliás, ele próprio a assumir a sua inscrição numa tradição lírico-especulativa “da mais alta dignidade” (Sena, 1988: 155) que remonta, no caso da poesia em língua portuguesa, a Sá de Miranda, Bernardim e Camões. Por outro lado, a assimilação, por parte de Sena, da prática poética das “descrições subjetivas de objetos artísticos” (Magalhães, 1981: 59; Avelar, 2018:451) do Modernismo anglo-saxónico tem sido frequentemente reconhecida. Como não rever nessa ‘experiência exemplar’ de um poeta face a produções artísticas e a objets d’art aquela inquirição meditativa de John Keats em torno de uma urna grega (na verdade, a écfrase de Keats apenas simula um encontro com um objeto visual único[7]) que Spitzer haveria de equacionar criticamente nos termos de uma imagem ao serviço do pensamento: “image serving thought” (Spitzer, 1955: 225) ?

Museu seria, como se sabe, o título primitivo concebido para essa primeira coletânea de metamorfoses poéticas, cuja génese, lenta e irregular, se fez ao ritmo do ‘acontecimento’ não calculado dos poemas e cuja intencionalidade se prende com o cumprimento de uma promessa: “A mim mesmo e a Artemidoro prometi que falaria dele.” (Sena, 1988: 152). O livro pode compreender-se neste sentido como um objeto devocional provocado pelo encontro do poeta, no Museu Britânico, com o retrato de um grego egípcio, pintado no seu sarcófago. A morte está, pois, na origem de um livro, de ontologia incerta, que o autor vai confecionando, processualmente, numa espécie de “entressonho de escrever” (id.: 154); mas, ao lado dela, encontramos também um sentido de ressurreição, de prolongamento da vida e da “humanidade viva” (id.) que cada retrato e cada objeto artístico contém, uma fórmula de sobrevivência. Artemidoro é no fundo “o suporte fixo de afeto” (Gil, 2005: 20) que justifica o livro enquanto compromisso entre a arte e a vida. Ou enquanto fascinação estético-metafísica perante uma ‘presença’ que resiste, uma ‘imagem-nua’ e enigmática que aspira à linguagem, retomando formulações de José Gil.[8] Esse sentido de resistência e, ao mesmo tempo, de desafio perante a própria palavra, concentrado no olhar pintado de Artemidoro, parece-me poder resumir as grandes linhas-mestras da poética seniana e explicar, desse modo, a razão da sua promessa e da sua devoção. Metamorfoses começa por ser um ‘museu’, isto é, recordanos Sena à luz da etimologia, “um templo dedicado às Musas, e depois local dedicado às obras das Musas; e (…) também um cantor, vidente e sacerdote místico, que aparece nas lendas áticas” (1988: 157). Como metáfora da habitação poética primordial, o livro reclama uma arquitetura própria, construída deliberadamente sob o modelo da concha. No célebre posfácio de 1963 à coletânea — Metamorfoses, seguidas de Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena, em seu título definitivo —, Sena esclarece as razões dessa urdidura macrotextual, na qual a imagem do Homem, e em particular os retratos, ocupam indiscutivelmente o centro especulativo do livro: as 19 meditações aplicadas ou “inter-metamorfoses-propriamente-ditas” (id.: 158) são ‘contidas’ por uma ante-metamorfose e uma post-metamorfose, “duas valvas de uma concha pagã” (id.: 157), e ‘coroadas’ pelos sonetos dedicados à deusa anadiómena, “como se, da concha tão rica de Morte, Afrodite brotasse qual a do quadro de Botticelli” (id.: 155).

Já a propósito de uma poeta portuguesa contemporânea, também ela particularmente sensível à repercussão das outras artes no seu ofício poético, me referi à semântica simbólica da concha, associada a uma remota tradição sobre a palingénese onde radica a alegoria cristã das ‘conchas de ressureição’ (Ribeiro: 2017: 93-112). Retomo aqui a ideia da concha como matriz de todas as formas vivas, para pensar, a partir dela, a arquitetura textual de Metamorfoses (e, por extensão, a das metamorfoses musicais de Arte de Música) que Sena faz assim corresponder ao Lugar da poesia, pensada para lá de uma mais típica agonia e paralisia modernas, enquanto ação, infeção, germinação — em suma, enquanto biologia dinâmica e transformativa.

A diversidade de processos poéticos acionada pelas metamorfoses visuais e musicais senianas determinam um alargamento e uma complexificação profundos da noção de écfrase de onde parecem partir, e introduzem o que Magalhães considera uma efetiva mudança qualitativa na poesia portuguesa dos anos 60 (cf. Magalhães, 1981). Na verdade, as metamorfoses poéticas praticadas por Jorge de Sena estiveram na origem de diversos acertos teóricos atinentes à própria noção de écfrase, desde o tipo de objeto ou (inter)textualidade convocados,[9] ao estatuto representativo e metarrepresentativo atribuído tradicionalmente ao discurso ecfrástico: uma representação (verbal) de uma representação (plástica), na mais conhecida leitura de James Heffernan (1993). Quer Clüver, quer Fernanda Conrado, inspirando-se nos processos poéticos senianos, propõem reformulações decisivas neste aspeto, transitando de uma ideia de representação para uma outra de verbalização, o que implica passar a perceber a écfrase no âmbito estrito de um paradigma semiótico (e interssemiótico), como operação de ‘tradução’, ao invés de a pensar como dispositivo de mediação entre a ordem da linguagem e a ordem do real, com os respetivos encargos da ‘semelhança’ ou, pelo menos, da ‘verosimilhança’.[10]

As ‘descrições subjetivas’ de Sena, sem se afastarem de um “solo referencial explícito” (Avelar, 2018: 416) que serve de força propulsora ao poema e retoma o vasto speculum cultural e artístico do Ocidente, recorrem a estratégias de enunciação diversíssimas, que nem sempre incluem a descrição (sintomática é, aliás, a diferente seleção de imagens nas várias edições de Metamorfoses): [11] o recurso retórico à enargeia descritiva prolongada em ‘imersões’ especulativas no contexto temporal e cultural inerente aos objetos convocados; a utilização do registo epistolar ao serviço de um discurso confessional de frequente alcance político-ideológico; a confeção de uma ‘narrativa’ sobre a imagem, desvendada nos seus ‘enigmas’; a transposição de um estilo ou de uma estética arquitetónica para a estrutura composicional ou sintática do poema;[12] ou ainda, a convocação da técnica do monólogo dramático pelo qual o poeta, travestido na persona do artista ou do modelo, se coloca no centro da enunciação. Exemplo eloquente da reutilização deste processo em Metamorfoses é o poema “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”, um poderoso texto de denúncia em que um autor, por uma espécie de travestimento ou transferência de identidade, se revela autoconsciente da sua singularidade e do custo social e histórico de escrever o mundo numa língua nova.

Mais ou menos explícita em cada um destes processos metamórficos está, sem dúvida, a presença do poeta enquanto leitor ou intérprete dos objetos. Neste ponto, como assinala Avelar, Sena distancia-se daquela negative capability advogada por Keats e tomada como diluição da identidade autoral e consequente manutenção de um registo poético de neutralidade referencial. Neste retorno persistente aos sujeitos e às pessoas, à ressonância humana que habita, em espessura, os objetos, reside com certeza a principal razão da confessada preferência de Jorge de Sena pelo retrato e pelas metamorfoses retratísticas, também elas inevitáveis operações da memória e cruzamentos de memórias.

3 – Metamorfoses retratísticas

No capítulo que dedica ao Museu do seu mais recente ensaio sobre Poesia e Artes Visuais, Mário Avelar (2018) cita Proust e Malraux para nos recordar duas ideias fundamentais: a primeira, inspirada em Proust, a de que “os museus são casa que unicamente acolhem pensamentos” (Avelar, 2018: 149), estimulando meditações ontológicas a partir de meditações estéticas, uma ideia que a poesia de Sena facilmente poderia ser chamada a demonstrar; a segunda, a de que a banalização do museu no quotidiano das sociedades burguesas oitocentistas impôs uma alteração profunda no modo como nos relacionamos com os objetos artísticos que passam a ser, segundo Malraux, “apenas imagens de coisas, diferentes das próprias coisas” (apud Avelar, 2018: 150), por conseguinte, pura textualidade. Vale a pena reler a passagem inicial da conhecida reflexão de Malraux em Le Musée Imaginaire (1947), que aqui restituo na língua francesa original:

Le rôle des musées dans notre relation avec les oeuvres d’art est si grand, que nous avons peine à penser qu’il n’en existe pas, qu’il n’en exista jamais, là où la civilisation de l’Europe moderne est ou fut inconnue ; et qu’il en existe chez nous depuis moins de deux siècles. Le XIXe siècle a vécu d’eux ; nous en vivons encore, et oublions qu’ils ont imposé au spectateur une relation toute nouvelle avec l’oeuvre d’art. Ils ont contribué à délivrer de leur fonction les oeuvres d’art qu’ils réunissaient ; à métamorphoser em tableaux, jusqu’aux portraits. Si le buste de César, le Charles Quint equestre, sont encore César et Charles Quint, le duc d’Olivarès n’ est plus que Velasquez. Que nos importe l’identité de l’Homme au Casque, de l’Homme au Gant ? Ils s’appelent Rembrandt et Titien. Le portrait cesse d’être d’abord le portrait de quelqu’un. Jusqu’au XIXe siècle, toutes les oeuvres d’art ont été l’image de quelque chose qui existait ou qui n’existait pas, avant d’être des oeuvres d’art. Aux yeux du peintre seul, la peinture était peinture ; encore estelle souvent aussi poésie. Et le musée suppprime de presque tous les portraits (le fussentils d’un rêve), presque tous leurs modèles, en même temps qu’il arrache leur function aux oeuvres d’art : il ne connaît plus ni palladium, ni saint, ni Christ, ni objet de vénération, de ressemblance, d’imagination, de décor, de possession ; mais des images des choses, différantes des choses mêmes, et tirant de cette différence spécifique leur raison d’être. Il est une confrontation de metamorphoses. (Malraux, 1965: 11-12)

No essencial, Malraux retoma, a propósito da desfuncionalização dos objetos artísticos imposta pelo museu, uma ideia de ‘desumanização’ para a qual Ortega y Gassett, cerca de vinte anos antes, apontara servindo-se de exemplos parcialmente coincidentes: a propósito do retrato de Carlos V de Ticiano (para Malraux, um dos raros casos em que o ‘corpo’— duplo — do rei sobrevive ao pintor e à pintura), o filósofo espanhol formulava então uma alternativa exclusiva de leitura: ou se “convive” com Carlos V ou se “contempla” o quadro, entendidos retrato e retratado como “dois objectos completamente diferentes”. [13]

Ora, não creio que, neste ponto, Sena se identifique com o autor de Le Musée Imaginaire. Pelo contrário, o que observamos na poesia seniana é uma reintegração da humanidade na arte, da convivência na contemplação, do modelo no retrato, como consequência direta de uma visão do museu que não o identifica com um depósito morto de produtos da cultura humana, mas, como vimos, como um espaço pulsante de ‘gente viva’ e de ‘velhos amigos’ que os objetos artísticos, “desmonumentalizados” (Lourenço, 2002: 188), podem trazer ao nosso convívio. No seu modesto manifesto para os museus, o escritor turco Orhan Pamuk defende a ideia de que, além de se constituírem como destinos turísticos e símbolos nacionais, “museums—just like novels—can also speak for individuals”, acrescentando que o grau de sucesso de um museu “should not be its ability to represent a state, a nation or company, or a particular history. It should be its capacity to reveal the humanity of individuals”.[14] Este sentido de intimidade e de inocência devolvida ao museu e aos objetos enquanto silenciosas e frágeis biografias humanas parece-me reter o essencial da experiência seniana das artes.

É certo que, no que toca o caso da música e da sua recriação ou transfiguração poética, as reflexões críticas de Sena parecem por vezes alinhar-se por um paradigma formalista mais rígido. Conforme observa no texto posfacial a Arte de Música, uma composição musical obrigaria a que a entendêssemos “em si mesma, como forma em si, e não em função das variáveis e eventuais emoções que ela, não como experiência de uma forma, mas como vivência ocasional, possa despertar em nós” (Sena, 1988: 208-209). E no entanto, apesar de, no plano crítico, se negar um sentido para a música, que “é só música” (diz um verso do poema “Bach: Variações Goldberg”), cada poema do livro faz aquilo a que aconselha que se não faça: “fala de música, ou fala em vez de música”, tal como observou Óscar Lopes (1983: 170). Se pensarmos no caso da metamorfose musical apontada como testemunho poético da génese do próprio processo criativo em Jorge de Sena, “La cathédrale engloutie, de Debussy”, também aqui a vivência individual e emocional da música surge claramente tematizada. Operando uma dupla metamorfose no sujeito – ontológica (“(…) nunca mais pude ser eu mesmo (…)”) e estética (“(…). Música literata e fascinante/nojenta do que por ela em mim se fez poesia (…)”) –, a música, se coloca por um lado o problema do inverbalizável, problema que o texto poético reflete através de estruturas frásicas de negação e da acumulação final de interrogativas, funciona por outro lado especular e especulativamente ao insinuar a reversibilidade entre quem ouve e o que é ouvido, sujeito e objeto. O que poderá equivaler a sugerir novas confluências entre a linguagem musical, a linguagem poética e o registo (auto)retratístico/biográfico.

Diga-se, aliás, que o trânsito metonímico que se estabelece entre objeto e sujeito (ou nome do sujeito), em vários poemas de ambas as coletâneas admite que interpretemos como poemas-retrato textos que não tomam como referente qualquer figura humana. Fazenda Lourenço reconheceu isso mesmo a propósito de poemas como “A cadeira amarela, de Van Gogh” onde a referência à assinatura e ao nome do pintor, elementos aparentemente laterais ao texto pictórico, se transformam nos principais responsáveis de uma certa perversão ecfrástica no poema, ao ponto de ser possível lê-lo no registo do autorretrato. “Neste poema”, afirma Lourenço, “a cadeira é visada, menos como objeto do quadro, e mais como representação simbólica da condição humana”, ela é o pretexto “para compor um retrato (humano) do pintor, transformando o objeto cadeira numa figuração do sujeito Vincent Van Gogh” (2002: 171). Curiosamente, a própria tela do pintor holandês foi já classificada por alguns dos seus biógrafos dentro dos parâmetros ora da natureza-morta, ora do género retratístico, pelo que o poema de Sena se converteria assim num singular meta-auto-retrato. [15]

Esta interpretação relativamente flutuante das metarmofoses senianas no que se refere ao seu registo genológico pode explicar algumas discrepâncias taxinómicas entre o autor e os seus críticos. Se, no posfácio a Metamorfoses, Sena anota o predomínio de poemas que se referem “a retratos ou ao que podemos supor que o é” (1988: 157), contabilizando, sem os identificar, sete textos de entre os dezanove que compõem o núcleo inicial da coletânea, já Fazenda Lourenço enumera, por sua vez, oito poemas (considerados no conjunto definitivo dos vinte textos centrais) que “têm como referente retratos” (2002: 171), para nos propor, por fim, um grupo mais alargado de dez retratos onde constam dois poemas cujos referentes são objetos não-humanos (“Gazela da Ibéria” e “A Cadeira Amarela, de Van Gogh”).[16] Além deles, Lourenço não descarta ainda a possibilidade de outros retratos “no sentido largo do termo” (id.: 174), dos quais poderá ser exemplo o poema “Pietà de Avignon”, inspirado numa pintura do séc. XV que inclui, entre as figurações das pessoas santas, um possível retrato do doador, explicitamente convocado no poema seniano (“Em vão se ajoelha glabro, imaculado e atento, / ao canto, o doador. (…)” ).

Paralelamente às hesitações críticas quanto ao género textual das meditações aplicadas de Sena, desde logo reveladoras de uma certa heterodoxia representativa que elas mesmas concitam, interessa assinalar, em particular, a possibilidade de um entendimento outro da ontologia própria do retrato que se desprende dos poemas. Se é verdade que a frequente convocação poética do retratado na segunda pessoa do singular, assim como a utilização reiterada do presente verbal conseguem gerar um efeito de intimidade e de proximidade temporal e afetiva entre o poeta e o seu interlocutor, dramatizando uma conversa conjetural ou entrelaçando testemunho e imaginação, para nos socorrermos uma vez mais dos penetrantes comentários de Fazenda Lourenço (cf.2002: 173), o certo é que os poemas de Sena são muito menos meditações sobre a semelhança, e muito mais meditações sobre a diferença e o possível. Não exatamente, todavia, com um propósito metateórico de desconstrução conceptual da representação enquanto ‘mimese’ (como John Ashbery virá a propor no poema homónimo do famoso Autorretrato em espelho convexo de Parmigianino[17]), mas antes numa perspetiva acentuadamente filosófica que considera a margem de segredo e de desconhecido da própria vida humana à qual nenhum retrato, pensado como representação, consegue esquivar-se. Um segredo e um desconhecido que apenas a poesia poderá “interrogativamente, incertamente, inquietamente, angustiadamente” (Sena, 1988: 157) penetrar.

Nesta perspetiva, Jorge de Sena explora deliberadamente a dimensão de invisualidade das imagens, para recuperarmos um termo e um conceito recentes de Carlos Vidal,[18] não só porque os seus poemas surgem ‘depois de ver’, como meditações à distância que a memória modela e transforma, mas sobretudo porque o poeta realiza um ‘salto na visão’, operando uma metamorfose do próprio desígnio visualista (cf. Cunha: 2011: 29). Eis porque a écfrase, em particular no que toca a prática do retrato poético, não se reduz, na poesia seniana, à simples restituição ou recodificação, pelos meios da palavra, de uma rede de sinais percetíveis, mas implica a indagação do que Lourenço apelida “falha documental” (cf. Lourenço: 177), recorrendo a processos associativos e/ou alusivos para lá do visto e do percecionado.

Em relação à sua postura crítica e poética sobre a imagem, em particular sobre a imagem retratística, Sena inscreve-se pioneiramente numa linha de reflexão teórica sobre o retrato e aquilo que, na contemporaneidade, configura o seu deslocamento epistemológico (cf. Marques, 2014: 435) face ao paradigma albertiano da ‘janela aberta’ sobre o real e rumo a um sentido preferencialmente inferencial ou evocativo, que pode confinar com poéticas do vestígio ou mesmo com a pura abstração. Um sentido não dissociável de novas epistemologias não-essencialistas da identidade, pensada fora dos limites do observável e do permanente, como uma experiência transformativa e processual sobre a qual o único conhecimento possível é da ordem do momentâneo ou do intervalar, voltando aos termos da gaia-ciência seniana. Na recriação poética destas identidades em devir, como são eminentemente as identidades contemporâneas, Jorge de Sena anunciou os seus sucessores.

4 – Os filhos de Jorge de Sena

Na travessia meditativa que executam pela arte e pela cultura ocidental, desde a era pré-cristã ao último século, as metamorfoses visuais e musicais de Sena, concebidas ao longo de cerca de 20 anos (tendo em conta a genealogia difusa das duas coletâneas, com as importações e acréscimos mais tardios de poemas que foram absorvendo), em Portugal, no Brasil e nos Estados Unidos, estabeleceram para a poesia em língua portuguesa um inevitável patamar de referência. Se a convocação das artes e o diálogo interartístico se converteu, com especial incidência a partir do século XX, num poderoso motor de criação poética e literária, a relação que a literatura passou a estabelecer com a écfrase e os processos criativos dela derivados tornou-se reconhecidamente mais adulta. Como nos recorda Joana Matos Frias (2016: 12), naquele que é por excelência o século da imagem, em que não só os museus se banalizaram como espaços culturais e turísticos, como passaram a ser visitados virtulamente, a ‘inutilidade’ do descritivo como dispositivo de um dar a ver alternativo parece-nos consensual. Por outro lado, desde o Laocoonte de Lessing e a consolidação da tradição do paragone e da tese sobre a concorrência expressiva entre as artes, foi-se tornando cada vez mais óbvio que as artes não são irmãs, que a poesia não é pintura (nem música, nem …) e que, para ‘falar pintura’, como teria afirmado Matisse e nos recorda Ferreira Gullar (2003), é necessário cortar a língua, pois só os pincéis valem.

É justamente a propósito de Gullar e do poeta português João Miguel Fernandes Jorge, ambos situáveis na linha derivativa seniana na relação que mantêm com o universo artístico e os mecanismos da écfrase, que Ida Alves, num estudo já aqui citado, destaca, com absoluta propriedade, dois aspetos convergentes e devedores da lição de Sena apesar da notória diversidade das respetivas poéticas individuais: “uma consciência lírica da falta, da falha, do menos que, paradoxalmente, faz o poema existir” (2018: 81) e a conceção do poema enquanto “espaço teórico-crítico e prático sobre o gesto criativo a partir da construção de imagens” (id.: 84).

Ambos os aspetos, também presentes em muitos outros poetas contemporâneos e nas distintas ‘variações’ pessoais a que sujeitam o princípio e a prática ecfrásticas, podem levar-nos a considerações mais amplas, nomeadamente no que respeita uma possível desconstrução de ‘armadilhas’ e aporias associadas ao conceito tradicional de écfrase. (cf. Matos Frias, 2016b), começando pela constatação de que ela não depende necessariamente da existência de um objeto ou de um referente extrínseco, mas da construção, pela própria palavra, de um efeito ou de uma ficção de visão pelo qual o visível dá lugar ao visualizável, entendido como processo mental ou imaginativo (uma variante ‘nocional’ da écfrase). Há muito sabemos da inexistência do escudo de Aquiles, diz-nos, em jeito de meditação metaecfrástica, um poema de Fernando Guimarães: “No entanto, / Pensamos nele. É como se observássemos todos os seus detalhes, sentíssemos / O relevo que tem, levássemos os dedos à sua cercadura. (…)” (Guimarães, apud Matos Frias, 2016: 19).

Dizer o ver constitui, em muitos poetas contemporâneos, uma experiência de durações mínimas, frágeis alucinações, relâmpagos (reutilizo termos e metáforas de Gullar), inevidências ou invisualidades através das quais, todavia, se partilham “zonas de indeterminação” (Rancière, 2010) que desdobram o sensível em pensamento ou em pensatividade, isto é, conforme esclarece Rancière, numa “imagem que contém pensamento não pensado” (id.: 157).[19] O fazer verbal, enquanto fazer imaginativo, torna-se dinamicamente reconstrutivo, uma poiesis entendida como um investimento criativo de modelação da palavra capaz de refigurar o mundo e reorganizar as formas do real. Se a experiência do museu continua a inspirar livros e poemas,[20] também neste caso é frequente o mecanismo ecfrástico trabalhar a partir da ausência e por afastamento em relação a uma suposta missão de evidência: como se, segundo um trajeto de progressiva autonomia, a ‘descrição’ se descolasse da perceção, assumindo a ficcionalidade da escrita.

Tal autonomização traz, por outro lado, novas consequências no que diz respeito à ontologia discursiva da écfrase, regressando à questão das suas aporias. A vulgar associação entre ‘descritividade’ e ‘discursividade’ que configurou tradicionalmente a retórica ecfrástica como um exercício do detalhe, uma amplificatio ou dilatatio, tal como nos recorda Lourenço a propósito das metamorfoses senianas (2002: 181), pode converter-se no seu inverso: certas poéticas ecfrásticas contemporâneas manifestam-se como gestos verbais de contenção e minimalismo, iludindo a temporalidade linguística até ao limite do quase-silêncio.

É certo que, para além de écfrases poéticas onde se tem concentrado a maior atenção da crítica, e sem aqui considerarmos variantes ecfrásticas não-literárias, a literatura portuguesa dos dois últimos séculos tem produzido abundantes exemplos de écfrases ficcionais, sob as modalidades do conto ou do romance,[21] com funções narrativas muito variadas[22] e desenvolvendo, com frequência, conteúdos metaliterários e autobiográficos.

Ao lado destas expansões narrativas a que continua a prestar-se a lógica ecfrástica, subsistem, como dizíamos, poemas de natureza tendencialmente epigramática ou mesmo fantasmática cujo trânsito intersemiótico se faz da visualidade (uma visualidade alargada ao espaço medial e intermedial contemporâneo) à ausência. Ilustro, para concluir, com dois exemplos apenas: o primeiro, o poema de Adília Lopes “Um filme português”, incorporado na secção ‘Filmagens’ da antologia Poemas com Cinema (2010) onde se reúnem “textos nos quais a presença do cinema surge através de processos ecfrásticos ou é associada a formas de transposição discursiva pelas quais o próprio poema se concebe como «filme»” (Frias et al. 2010: 14):

Um piano
toca

Um candelabro
aceso

Um livro
encontrado

Um corvo
parado

Um cavalo
corre

Uma carta
lacrada
(Lopes apud Martelo: 2010: 173)

A sintaxe enumerativa e a gramática elítica e descontínua do poema, que se apresenta como uma montagem de itens cenográficos (verbalmente transpostos ou totalmente simulados) sem articulação narrativa e sugerindo, pelas formas verbais utilizadas (presentes e particípios passados), uma temporalidade ambígua entre a ação e a inércia, poderá insinuar uma glosa irónica do estereótipo do ‘cinema parado’ português; por outro lado, a desnarrativização poeticamente fabricada gera um efeito de enigma, de relato secreto ou ‘lacrado’ que convoca o intérprete/espectador como operador do(s) sentido(s) poético/fílmico.

A ideia de elipse (ou de eclipse) encontra-se também no segundo exemplo que aqui recupero: “Só a imagem”, um poema do poeta brasileiro Duda Machado para quem “o ato de escrever poemas hoje deveria estar assombrado de algum modo, por um certo/incerto eclipse da pintura” (2008: 48), prescinde de todo e qualquer referente externo, para propor-se como puro espaço verbal, autorreferencial e imediado, entre a écfrase e a sua negação:

Um lugar
sem ninguém
e sem ninguém para vê-lo.
E um único modo
de alcançá-lo. (id.: 47)

Mesmo assim (ou por isso mesmo), na sua máxima economia, o poema continua a ser, enquanto única imagem, um exercício de reflexão metapoética que inscreveríamos sem dificuldade no âmbito da ‘poética dos limites’ cultivada pelo autor: em suma, o lugar concentrado de uma meditação sobre a poesia e o gesto criador.

Em ambos os exemplos aqui revistos, coloca-se, por conseguinte, aquela que aparenta ser a aporia máxima contida na ideia de écfrase enquanto gesto representativo: a possibilidade de coabitação entre a retórica ecfrástica e uma retórica do silêncio (cf. Gil&Almeida, 2016: 46), dos diferentes silêncios contidos nessa abertura do que poderia ter sido ou do irrealizado onde o poético retrospetivamente opera, pondo em evidência a dimensão criativa e performativa (e não apenas replicativa ou tradutora) da própria écfrase.

“Em todas as vidas existe qualquer coisa de não vivido, do mesmo modo que em toda a palavra há qualquer coisa que fica por exprimir” (Agamben, 1999: 89): é aí, nesse intervalo do nunca acontecido (“daquilo que nunca foi”, na formulação de Agamben – ibid.), no confronto dinâmico com os seus avessos, com as margens do não-vivido e do não-dito, como nos mostrou pioneiramente Jorge de Sena, que a literatura pode exercerse como superação e constituir-se como experiência da felicidade.

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NOTAS:

1 A ‘inutilidade’ da voz poética é um tópico não completamente ausente da reflexão crítica seniana, em particular aquela que se localiza no interior da própria fala poética. “De poesia falemos” (in Fidelidades, 1958) poderia exemplificar uma atitude de clara desistência moderna perante a linguagem: “Contemplo inutilmente a voz que surge / e é tão inútil como contemplá-la. / Inútil escrevê-la, dar-lhe a fala / mansa e provável com que procurá-la / por entre ecos urgentes e confusos” (Sena, 1988: 23). Não as circunscrevendo à questão da expressão linguística, Adriano Carlos sinalizou igualmente certas notas de pessimismo niilista e angústia existencial nalguma poesia do autor (cf. 1999: 68).

2 Recordamos o conhecido texto de homenagem “O Cinquentenário da presença” (in Régio, Casais, a “presença” e Outros Afins, 1977) no qual Jorge de Sena não hesita em afirmar a sua discordância face a um polémico artigo de Eduardo Lourenço, publicado originalmente em 1960, sobre um certo conservadorismo presencista que aí entendia como uma ‘contrarrevolução’ no quadro do Modernismo Português.

3 No Post-fácio de 1969 a Arte de Música, Sena demarca-se com veemência de perspetivas romântico-nacionalistas que, guiando-se por uma “mentalidade tribal”, reduzem a música — ‘popular’, ‘folclórica’ ou outra — a uma escala meramente regional: “Esse tribalismo subsiste na música culta ou erudita, ou no século passado foi romântica e politicamente inventada. Música francesa, música alemã, italiana, russa, ou espanhola, podem valer como música, mas nunca primacialmente como o adjetivo nacionaleiro que se lhe aponha (…)” (Sena, 1988: 210).

4 Referimo-nos a Vasco Graça Moura e em particular a “poema”, texto de abertura ao primeiro livro de poesia do autor, modo mudando (1963), posteriormente inserido em Artes Poéticas — Pequena antologia reflexiva (2002); aí se enuncia uma lição de impureza que me parece ecoar em muitos aspetos a ideia seniana sobre o fazer poético: “silenciosamente aproximo-me do poema / circundo-o duma palavra faço dela / uma incisão deliberada // e exponho a ferida ao ar sem protegê-la / para que infecte e frutifique / (…)” (Moura, 2002: 13).

5 Recorrendo à metáfora da mariposa noturna, a falena, Georges Didi-Huberman propõe uma fenomenologia da aparição que congrega em simultâneo imagem e tempo: “La connaissance-phalène serait donc un gai savoir hanté par la destruction, prévenu de la destruction: savoir en deuil, déjà, de sa propre vocation à la ruine. Quand un papillon passe devant nos yeux, notre regard s’enjoue subitement, retrouve son enfance. Mais par ce mouvement même, au moment où s’en va le papillon, notre regard bientôt s’endeuille” (2013: 76).

6 Referimo-nos em particular ao texto em prosa “Aparição da Poesia”, que viria a integrar o romance autobiográfico Sinais de Fogo, e ao poema “La cathédrale engloutie, de Debussy” de Arte de Música que Luís Adriano Carlos aproxima, no plano lírico, da representação ficcional do ato de nascimento do poeta, em termos de uma “via paralela” (1999: 26).

7 Veja-se, a este propósito, Avelar, 2018: 153-154.

8 Acerca dos retratos de Fayum cujo enigma se concentra no olhar, esse líquido olhar que impressionou o poeta Jorge de Sena, leia-se Gil (2005: 22-25).

9 Com base na análise das metamorfoses senianas, Claus Clüver (1996) alargou substancialmente a latitude da focagem ecfrástica estendendo-a a qualquer tipo de texto composto num sistema de signos não-verbal, incluindo os textos musicais.

10 Se, no estudo citado, Clüver propõe entender a écfrase como “the verbal representation of a real or ficticious text composed in a non-verbal sign system”(1996: 42), Fernanda Conrado irá ainda mais longe ao apresentar a écfrase como uma “verbalização de textos reais ou fictícios compostos num sistema sígnico não verbal, mas não dependente do recurso a processos de espacialização mimética” (Conrado, 1996: 61).

11 Recomenda-se a consulta do pormenorizado recenseamento das estratégias ecfrásticas de Sena apresentado por Mário Avelar (2018: 203-228), retomando e ampliando o seu anterior estudo de 2006. Jorge Fazenda Lourenço (2002) apresentou igualmente uma detida leitura dos poemas de Metamorfoses e dos respetivos processos poéticos senianos.

12 João Borges da Cunha e Jorge Fazenda Lourenço (2011) propõem uma notável leitura interartística dos poemas senianos “Mesquita de Córdova” e “A arquitetura dos corpos”, aproximando princípios arquitetónicos e poéticas verbais, em particular poéticas sonetísticas, pelo jogo transformativo que ambas as artes convocam e pelo equilíbrio que exigem entre lógicas da necessidade e lógicas da possibilidade.

13 Cf. Leia-se Ortega y Gassett: “Para poder deleitar-se com o retrato eqüestre de Carlos V, de Tiziano, é condição ineludível que não vejamos ali Carlos V em pessoa, autêntico e vivo, mas sim em seu lugar devemos ver apenas um retrato, uma imagem irreal, uma ficção. O retratado e seu retrato são dois objectos completamente diferentes: ou nos interessamos por um ou por outro. No primeiro caso, “convivemos” com Carlos V; no segundo, “contemplamos” um objecto artístico” como tal” (1991: 27-28).

14 O texto deste manifesto encontra-se acessível na página d’ O Museu da Inocência, um singular projeto de Pamuk que articula ficção e realidade, consistindo numa proposta estética dupla e complementar: o edifício de um museu, inaugurado em 2012 em Istambul, homónimo do seu romance de 2008 e contendo os objetos obsessivamente colecionados pelo protagonista da narrativa no decurso de uma história de amor impossível. Cf. https://en.masumiyetmuzesi.org/page/a-modest-manifesto-for-museums

15 Recordamos ainda a leitura mais recente de Daniel Tavares sobre o dito poema seniano, chamando a atenção para o facto de a sua construção emular os processos compositivos do pintor “no sentido em que apela declaradamente a uma leitura autorretratística de um objeto que “não é, nem foi, nem será mais cadeira:/ apenas o retrato concentrado e claro/ de ter lá estado e de ter lá sido quem/ a conheceu de olhá-la” (Tavares, 2018: 77).

16 De um grupo inicial de poemas que identifica como referindo-se a retratos — “Cabecinha Romana de Milreu”, “Artemidoro”, “Retrato de um Desconhecido”, “Camões Dirige-se aos Seus Contemporâneos”, “Eleanora di Toledo, Granduchessa di Toscana, de Bronzino”, “A Morta, de Rembrandt”, “A Máscara do Poeta” e “Dançarino de Brunei” (Lourenço, 2002:171) —, Fazenda Lourenço termina propondo um conjunto amplificado de dez retratos “de personalidades históricas, mais ou menos desconhecidas, ou de figuras míticas e lendárias, visadas enquanto personagens (personae, máscaras) de um tempo e de uma época mais ou menos determináveis”; deste conjunto foi retirado o poema mais tardio “Dançarino de Brunei” e acrescentados à anterior listagem os poemas “Gazela da Ibéria”, “Deméter” e “A Cadeira Amarela, de Van Gogh” (id.: 189).

17 Recordo as lúcidas reflexões de Richard Stamelman a propósito do poema de Ashbery: “Ashbery is a poet of demystifications, differences, and, as will become clear, deconstructions. In the very act of presenting the Parmigianino painting — describing its formal elements, its stylistic mannerisms, the history of its composition — he critically dismantles the portrait, pointing to the sealed, life-denying, motionless image of self it portrays; the poem offers a critical deconstruction of representation itself, or more precisely, of the aesthetic of perfection which gives representations an aura of eternal sameness, enshrining them in the paradise of art so that they constitute what Harold Bloom calls a “supermimesis” (1984: 608).

18 Remeto neste ponto para a ideia não-albertiana de pintura que expõe Carlos Vidal num estudo de referência: “Portanto, ver uma pintura é vê-la além da sua pele e última ‘inscrição’, é vê-la na sua organicidade ou processualidade, é a ilustração de um salto da visão e um impulso não consciente (não redutível ao conhecimento) para além do imediatamente discernível, é chegar a um território invisual. (Vidal, 2015: 300)

19 O conceito de pensatividade de Jacques Rancière parece-me particularmente operativo para a compreensão de algumas modalidades ecfrásticas, como as praticadas por Vaco Graça Moura na esteira da lição seniana, as quais, a partir de uma reclamada simetria dos ofícios e dos fazeres artísticos, ponderam o próprio exercício poético num sentido tendencialmente inconclusivo e interrogante. Cf. Ribeiro (2012).

20 Sobre a tematização poética do museu, Matos Frias antologia composições de autores tão diversos como Bernardo Soares, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Tolentino Mendonça, Pedro Tamen, Rui Pires Cabral, Nuno Rocha Morais, José Miguel Silva, Alexandre O´Neill, Ana Hatherly (cf. Matos Frias, 2016: 21-36).

21 Autores como Fernanda Botelho, Mário Cláudio, Agustina Bessa Luís, Nuno Júdice, Frederico Lourenço, Gonçalo M. Tavares, de entre um vasto conjunto de nomes no âmbito da literatura em português, têm exercitado diversamente écfrases em prosa literária. Lembro, a este propósito, o mais antigo projeto editorial Poética dos cinco sentidos (1979) — revisitado em 2010 por seis ensaístas brasileiros —, também ele decorrente da experiência do museu, neste caso o museu francês de Cluny onde, em 1882, foi exibido ao público o conjunto de tapeçarias conhecido sob o nome La Dame à la Licorne; no dito projeto, seis escritores portugueses compuseram breves narrativas de inspiração ecfrástica a partir da alegoria dos sentidos proposta pelas tapeçarias: Ana Hatherly, Augusto Abelaira, Isabel da Nóbrega, José Saramago, Maria Velho da Costa e Nuno Bragança.

22 Hoek (2006) ensaia uma classificação das funções narrativas da écfrase (psicológica, retórica, estrutural e ontológica), analisando os vários graus de imbricação entre texto e imagem.

FONTE: https://hdl.handle.net/1822/78962