Nesta homenagem a Ana Luísa Amaral, trazemos dois textos da escritora: um ensaio sobre a correspondência entre Sena e Sophia e um poema-glosa de três poemas senianos, “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, “Uma pequenina luz” e “Quem a tem…”. O primeiro está presente no volume comemorativo Sena & Sophia: centenários (2020) e o segundo aparece no número especial dedicado a Sena da revista Metamorfoses.
Ana Luísa Amaral
Se não eu por mim, quem por mim? Se eu for só por mim, quem sou eu? Se não for agora, quando? Se não com os outros, como?
Hilel, o Sábio, cerca do ano 6º antes de Cristo, e Adrienne Rich, 2001
As paixões são pessoais, mas acredito que transmissíveis. A Sophia de que eu queria aqui falar é a minha Sophia: a Sophia das utopias sonhadas e das coisas sonhando com seus nome exactos – que entendia, com toda a inteireza que a poesia tem, que “seria possível construir um mundo justo”, que “as cidades poderiam ser claras e lavadas”.[1] A minha Sophia é, como escrevi já uma vez, a Sophia de mim, criança, a ficar cheia de febre pela beleza da descrição de Veneza no Cavaleiro da Dinamarca: “Aérea e leve a cidade pousava sobre as águas verdes, ao longo da sua própria imagem”[2], lia eu, em voz alta e muito devagar, por entre os meus nove anos e um exílio a norte do meu país. Tinha sido mudada de Lisboa para o Porto, e essa Veneza era para mim o terceiro lugar, o que ficava entre dois rios, o Tejo e o Douro, nem sul nem norte, um entre-estar. E de que serviam então aliterações ou metáforas, se o que ficava era sentir as palavras, saber (e eu sem as palavras) que o sensível correspondia a uma verdade? A minha Sophia é a Sophia da justeza como propriedade que o poema para si procura de forma a poder dizer equilíbrio e beleza, a propriedade que convém à busca da justiça, a que escreveu poemas onde o poético e o político magnificamente se cruzam, como “Retrato de uma princesa desconhecida” – também, suspeito, auto-retrato, e neste sentido consciência de um privilégio de casta impossível de devolver: “Foi um imenso desperdiçar de gente/ Para que ela fosse aquela perfeição/ Solitária, exilada, sem destino”. A minha Sophia é a Sophia das palavras-entes, poliedros de luzes ao lado do escuro, que disse um dia que, “cortados os trigos,/ melhor se via a [sua] solidão”. Era desta Sophia que eu gostaria de falar, e das suas conversas em papel e entre mares com um amigo grande que tinha, como ele próprio diria sobre Goya, um “coração cheio de fúria e de amor”. Conversas com esse amigo, primeiro o Atlântico a dividi-los, depois o Atlântico e o Pacífico, sobre filhos, sobre poesia, sobre liberdade. Queria falar dessas conversas da minha Sophia com o meu Jorge de Sena. Sem considerações académicas.
Porque o Jorge de Sena que eu amo é o da pequenina luz bruxuleante, apesar de tudo, apesar de todos, o que entrou no “mais profundo fundo das profundas/ cavernas altas onde o estar se esconde”. O meu Jorge de Sena é o que disse em carta a um jovem poeta que “a poesia é a solidão mesma”. É também aquele que, como só a grande literatura sabe fazer, antecipou teorias radicalmente novas em personagens como um tal Físico prodigioso que experimenta todos os prazeres, multiplicando-se em identidades, ou desdobrando-se nelas, qual heterónimo pessoano, mas para lá dele – e usa esses prazeres para o bem comum. O meu Jorge de Sena foi aquele que se debateu com o seu tempo e que, à boa maneira renascentista, tudo abarcou: poesia, ficção, ensaio, tradução. O Sena que eu amo traduziu Beatrice de Die, e quantos poetas portugueses traduziriam essa trovadora do século XII? E ele é também aquele que um dia, não sabendo como nomear a imensa poeta americana que foi Emily Dickinson, lhe chamou um poeta, deu-lhe virilidade e feminizou-lhe os críticos seus contemporâneos. O meu Sena não morreu “sem saber qual a cor da liberdade”, mas, tal como para a sua amiga, a liberdade sonhada foi diferente da liberdade encontrada. “Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso”, disse o meu Sena. E fez-me escrever uma carta a minha filha.
O meu Sena e a minha Sophia convocam para mim maravilhamento e louvor, protesto e justeza, lembram-me o romântico William Blake, para quem a verdadeira inocência era a habitação para a sabedoria.
O tempo é escassíssimo para falar dessas conversas entre os dois, tidas entre 1959 e 1978. Mas podia começar de diferentes maneiras. Por exemplo, citando o poema que Sophia dedica a Sena, em 1978, já depois da revolução de abril e já depois da morte de Sena, realmente um poema-carta (ou cartas). Podia então dele referir a abertura e diria como esse poema ao que trazia consigo um certo ar de “capitão de tempestades” o posiciona num lugar estranho de entre-estar, no que à identidade nacional e social diz respeito (“Não és navegador, mas emigrante/ Legítimo português de novecentos”). Não há ali peça dentro de peça, mas cartas dentro de cartas, as cartas que no poema são referidas, as que Sophia diz chegarem com poemas e notícias, e que se consubstanciavam depois na “festa” celebrada “em redor da mesa” onde “tiniam talheres, louças e vidros”, ou “o instante que brilhava entre frutos e rostos” nesses momentos em que “havia avidez, azáfama e pressa”:
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Diria como as palavras que descrevem a reunião com o amigo que às vezes chegava de terras estrangeiras evocam nesta carta-poema de 1978 a celebração cristã, espécie de Eucaristia, um ambiente muito semelhante ao que encontramos em contos de Sophia para a infância, como (mais uma vez) O cavaleiro da Dinamarca, publicado dez anos antes. “Então havia sempre grande azáfama em casa do Cavaleiro. Juntava-se a família e vinham amigos e parentes (…) e as escadas e todas as coisas eram lavadas, enceradas e polidas.” Isto lembrar-me-ia versos seus como “O arfado espaço/ Onde o que está lavado se relava/ Para o rito de espanto e do começo”[3], ou “Onde o mar aberto e o tempo lavado?”.[4] E falaria da coerência espantosa de Sophia, não só ética, mas também vocabular.
Talvez me perdesse um pouco nesta ideia conhecida: a de que há na escrita de Sophia um circular regresso a certos campos semânticos e até às mesmas palavras e a temas-chave, chaves para a leitura do mundo. Sim, perder-me-ia. E isto levar-me-ia à ideia de contaminação entre escritas de poema e de cartas. E provavelmente, por causa disto mesmo, havia de falar um pouco de Emily Dickinson, e de depuração de escrita e do desmantelar das fronteiras entre os géneros poético e epistolar, empurrando os seus limites até pontos de fusão. E, contaminada agora pela chegada de Dickinson, talvez até sugerisse que era possível falar em genealogias, comparar Sena e Sophia, com um outro par, os “pais” da poesia norte-americana, Dickinson e Whitman: e a expansão na linguagem poética de Sena e mesmo a sua insistência na democracia do corpo, pelo corpo, um corpo múltiplo e diverso, por contraponto à contenção da linguagem poética de Sophia, a suspensão do corpo tantas vezes, a recusa do excedente. E diria como essa recusa está presente até na reacção de Sophia ao México e à arte asteca, que a repele não só pela quase ausência de “belo” (“é raríssimo encontrar um rosto simplesmente belo”, escreve ela) mas também pela extrema elaboração e demasiada complexidade.
Perder-me-ia, pois, um pouco, o que é sempre muito bom. Mas depois, tenho a certeza de que havia de voltar a esse poema e falaria do seu belíssimo final, a secção IV: “E agora chega a notícia que morreste/ A morte vem como nenhuma carta”, dístico que é a variação de um anterior, que constitui a carta II “E agora chega a notícia que morreste/ E algo se desloca em nossa vida”. Sobre essa deslocação, poderia referir Silvina Rodrigues Lopes e o seu comentário a um passo de Hillis Miller, onde, a propósito de Kafka, se diz que que “[o] facto de escrever um poema, uma história, ou um romance, não é outra coisa senão uma extensão do terrível poder de deslocação implicado no gesto mais simples, que consiste em escrever uma carta a um(a) amigo(a)”. Silvina Rodrigues Lopes afirma que “[e]ste princípio de escrita põe em deriva o autor e o leitor…”.[5] Derrida está aqui, bem entendido, defendendo contra Lacan que “uma carta não chega sempre ao seu destino e que (…) quando chega, o seu poder-não-chegar atormenta-a com uma deriva interna”.[6] Por isso “a morte vem como nenhuma carta”. Nenhuma carta só pode trazer consigo a mais radical ausência, portanto a morte; resgatada unicamente através da poesia, pela palavra evocada. Essa era uma possibilidade: começar por falar do poema de Sophia ao amigo já morto.
Ou podia começar de outra maneira: com o célebre poema que Sena, vindo a ter nove filhos, dedica a Sophia ainda em 1950 (publicado depois em Peregrinatio ad Loca Infecta)[7] e deslumbrado escreve: “Filhos e versos, como os dás ao mundo?” Talvez isto me conduzisse para uma leitura de inflexão feminista, ou de género. Em nota de rodapé chamaria a atenção para a diferença abissal entre o Sena da cartas a Sophia e o Sena das cartas a Eugénio de Andrade (onde se detecta a misoginia partilhada, o registo estereotipadamente masculino e por vezes desregrado, a demolição contundente da cena poética portuguesa). Se pudesse e tivesse tempo, a propósito de Eugénio falaria um pouco de sexualidades. E havia até de referir essa carta de Sena a Sophia, escrita em 1972, em que ele fala da violência e do erotismo escondidos em Sophia e por ela temidos, acrescentando a seguir: “Mas já vais tendo a idade respeitável de atirar tudo ao ar.” E voltaria a Sophia e à problemática da articulação dos papéis psico-socio-sexuais com o ofício da escrita, essa célebre carta de 1963 em que ela confessa a Sena como os papéis de mulher e mãe interferem na inspiração:
Na praça, de repente, no meio dos peixes, das couves e das galinhas pensei que precisava de parar um minuto e (…) ‘fugi’ para o café da praça e (…) pedi ao empregado que me emprestasse um papel e um lápis. Foi assim que consegui acabar o poema num misto de pausa e euforia. Isto é a minha vida.[8]
Falaria dessa vida, e da vida dos dois, contada através de mares, impressa no papel, vinda em forma de carta durante quase vinte anos, cobrindo períodos escuros da História de Portugal, do Brasil, dos Estados Unidos: a ditadura fascista de Salazar e do Estado Novo, com suas ramificações na cultura e na intelectualidade, um Portugal onde (diz Sophia, em carta de 1961) “muitos pacíficos cidadãos nos olham com ódio nas grossas mãos fascistas (os fascistas têm mãos horrorosas). Nem você pode imaginar o que é esta presença do ódio”;[9] a ditadura militar no Brasil, detectada por Sena (“a mais direita das direitas pode tomar o poder”), escreve ele em carta de 1970; os sucessivos governos republicanos nos Estados Unidos, com Nixon, o Imperador, como ele lhe chamaria, ironizando a seguir, e tão premonitoriamente, “E viva a democracia liberal”. E porque teria falado (pela segunda vez) na capacidade premonitória da poesia (e dos poetas), recordaria essa carta de Sophia de 1976, já do pós-5 de abril, em que ela afirma:
O problema, a tragédia de toda esta revolução é a sua INCOMPETÊNCIA CULTURAL. Desde a descolonização, onde tudo se fez com um despachado simplicíssimo, primário, ‘adhoc’, até à reforma agrária falseada e demagógica! Passando pela constituição onde se lutou pela vitória da estupidez com o maior sucesso salvo alguns pontos que muito a custo foi possível salvar. Houve até quem num grupo parlamentar, numa reunião de discussão, respondesse à minha crítica à má redacção de um articulado, dizendo-me que ‘o povo não precisa de gramática’. Vi dia a dia como a esquerda se suicida.[10]
E interrogar-me-ia sobre como seriam estas cartas se o tempo em que eles vivessem fosse o nosso, outro tempo sem luz, retornadas as ondas de barbárie. E que Sena teríamos hoje, no seu contínuo desalinhamento de partidos e de livre pensamento.
Daí talvez passasse para paisagens que falam do eu e da sua ligação ao mundo, e às formas como Sena e Sophia com ele dialogam, quer na esfera social e política, quer na esfera estética. E das posições de ambos que, mesmo descontado o tempo em que as expressaram, não deixam de ser xenófobas, e mesmo racistas. Sophia falando do México e da sua arte, em carta de 1971: “Mas é um mundo que não posso nem quero integrar. Parece-me um desvio do homem: terror, sacrifícios humanos, uma arte do esgar, uma grande festa da crueldade. O facto de terem inventado o zero não chega”;[11] Jorge de Sena, no mesmo ano, declarando, sobre as populações indígenas do Brasil: “os índios e índias que tenho visto em realidade e em reprodução fotográfica são uma espécie de chineses ainda mais tarrecos que estes.” Assinalaria ainda divergências entre ambos, como o desacordo quanto à importância de Camões na poesia ocidental (Sena coloca-o abaixo somente de Shakespeare, Sophia diz serem maiores Dante ou Novalis), ou a discordância de Sena em relação a uma Grécia mítica e sua potencialidade de regeneração da poesia. Referiria a descrição de Sophia, em 1964: “Como se eu me despedisse de todos os meus desencontros, todas as minhas feridas e acordasse no primeiro dia da criação num lugar desde sempre pressentido.” Citaria a posição de Sena, em 1972: “(…) lembra-te de que aquilo foi uma colossal mistificação criada, à custa dos deuses, pela colecção de cidades mais politicamente pérfidas e oligárquicas, esclavagistas, racistas, suprematistas, etc., que inventaram a democracia para a falsificarem. O Pártenon é um milagre que lhes aconteceu (…) Tudo o mais são milhares de anos de conversa”. E tentaria mostrar como esta divergência se estendera já, por exemplo, ao poema de Sena “Deixa os gregos em paz”, [12] sobre o qual Sophia declarara não gostar da primeira estrofe que diz o passado grego “revoluto, extinto e depilado”: “A Grécia nunca foi depilada” (como pode a terra dos faunos ser depilada?) e não está extinta”, contrapusera Sophia ao poema de Sena, continuando, em carta de 1969:
Creio que o grande mal português foi que sempre deixámos os gregos em paz. Por isso somos um país que não se reconhece. Um país que julga que a austera, apagada e vil tristeza é a condição do homem. Fomos um país de grandes navegadores – mas nunca tivemos em frente do mundo aquele sorriso de espanto que tinham as estátuas dos navegadores jónicos.[13]
A “apagada e vil tristeza” camoniana, declarada no Canto X, denúncia de “uma pátria (…) metida no gosto da cobiça e da rudeza”, a voz enrouquecida não do canto da poesia como pura possibilidade, mas de saber que o que se canta é “a gente surda e endurecida” é muito mais familiar ao Sena exilado e revoltado, ao Sena injustiçado, do que, apesar de tudo, a Sophia, que “acredita ser possível que o nosso ser coincida com os outros seres”, que não deixa de platonicamente crer na imanência e no belo enquanto adequação à ‘verdade’, não uma verdade verificável, mas a verdade enquanto aquilo que nos convoca e nos impele em termos de desejo. Talvez neste momento citasse Jean-Luc Nancy e uma conferência sua de 2009 sobre a ideia de belo. Sophia havia de concordar com Nancy quando ele sublinha que a frase clássica ‘O belo é o esplendor da verdade’ não quer dizer somente que o verdadeiro brilhe, mas que a verdade, para além de ser a verdade, brilha e resplandece. E eu depois acrescentaria: mesmo desestabilizando e inquietando – ou justamente porque desestabiliza e inquieta.
Que estas cartas são duas poéticas, por vezes em confronto, não tenho dúvidas, diria. Por isso falaria também da tradução. Em 1972, Sophia defendendo a tradução literal, dizendo “quero traduções, mas que deixem em branco o vazio entre duas línguas”. [14] E Sena replicando: “Não há traduções nuas, minha querida, da mesma forma que os deuses da Grécia só andavam nus nas horas íntimas de violarem as Ledas, pois que, no resto do tempo, eram como o Senhor de Matosinhos, cobertos de roupas e colares.”[15] E porque Emily Dickinson ainda ali estava muito perto, acho que lembraria uma carta sua a uma amiga, de 1850, onde ela deixa um espaço em branco, escrevendo a seguir: “Não é um espaço vazio esse onde comecei – está tão cheio de afecto que nem o consegues ver.” Esse vazio entre as línguas é como o afecto, e é também uma terra de ninguém habitada por sentidos. Isto queria eu dizer, quem sabe tomar aquele fragmento de Safo, o 48, que literalmente é assim: “Pôs-se a Lua,/ fugiram as Pléiades./ A noite vai a meio e o tempo passa./ E eu estou deitada sozinha.” Sena traduziu esse poema: “A Lua pôs-se,/ Com ela as Plêiades./ E a Meia-Noite/ Já se aproxima./ O tempo passa,/ E passa, enquanto/ Sozinha eu jazo”,[16] e salientaria da tradução de Sena a riqueza rítmica e musical, a grande leveza formal. A seguir, citaria um poema de Sophia de Mar novo, em que ela escreve (sem menção a Safo): “Sozinha estou entre paredes brancas/ Pela janela azul entrou a noite/ Com seu rosto altíssimo de estrelas”.[17] Subterrânea, ouvimos a voz de Sapho, que “reconhecemos por não ser já dela”, agora expandida, liberta, na voz inconfundível da poeta portuguesa. Brincaria até um pouco: Sophia=Sapho…
Porque teria falado de liberdade, diria, claro, da feroz verticalidade e da inteireza que unem Sophia e Sena. E como essa inteireza e verticalidade entroncam na alternativa ao fingimento e na ideia de poesia como testemunho de Sena, a “disponibilidade vigilante”, que equivale em Sophia à aguda atenção ao mundo, ao “estar atenta como uma antena, nunca esquecer”, quase como se ambos fossem, como disse Mallarmé de Victor Hugo, “o verso pessoalmente”. E citaria Sena: “sempre entendi a poesia, cuja melhor arte consistirá em dar expressão ao que o mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, não apena de outros mundos simultânea e idealmente possíveis, mas, principalmente, de outro que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que o sejam de facto”.[18]
Faria então notar que talvez as palavras que mais surjam nesta correspondência sejam estas justamente, usadas em diferentes contextos: liberdade e dignidade. E chegaria ao final, ao que é para mim o ex-libris da poesia de Sena: o seu “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, e o diálogo com o quadro de Goya. Pensaria também nas gravações de Goya “Os desastres de guerra” (1810-1814), uma delas aproveitada por Susan Sontag para a capa de um igualmente magnífico livro: Olhando a dor dos outros. No quadro de Goya, 3 de Mayo de 1808, as figuras estão dispostas no sopé de um monte, longe da povoação, mas conseguem ver-se, ao longe, telhados. As casas – uma promessa longínqua de protecção, de calor humano e dos ofícios de que se faz a vida. Nesse quadro que todos conhecemos, o que sobressai é a mancha branca da camisa do homem e o seu olhar de frente, quando, a seu lado, os outros choram e suplicam. Esse olhar não diz da ausência de medo, mas do “medo de ter medo”, não sei se imaginando o que “podia ter sido”, não sei se pensando “nesse gesto de amor que faria – amanhã”. Poema e quadro dizem-nos, afinal, que o indizível horror pode conviver com a mais profunda dignidade. E que é ela, e ela só, que nos pode manter vivos. Que só ela nos permite resistir a tempos sem protecção e de liberdade ameaçada. O que me comove no poema de Sena é a sua definição de dignidade: “a dignidade, meus filhos,/ não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo/ e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre/ para que um só de vós resista um pouco mais/ à morte que é de todos e virá.”[19]
Em 1998 escrevi um poema chamado “Um pouco só de Goya: Carta a minha filha”. É um poema sobre a memória, sobre liberdade, sobre o amor. Sobretudo é homenagem ao grande poema de Sena. Nesse meu poema, à violência exercida sobre as diferenças de religião, de raça e de classe do poema de Sena, acrescentei a violência sobre as múltiplas maneiras que há de amar, e a dignidade que nessa multiplicidade existe, desde que ali presida a condição humana da justiça, e o cuidado. Quis oferecer à minha filha (e não só à minha filha) antídotos feitos de palavras contra algo que eu receava: que, “num futuro mais perto”, lhe viessem dizer que “quem assim habita os espaços das vidas/ tem olhos de gigante ou chifres monstruosos”. Não sabia que, vinte anos depois, eu veria no nosso mundo as gentes que governam a defender isto mesmo. Esse meu poema fecha assim:
(…)
Não sei que te dirão num futuro mais perto,
se quem assim habita os espaços das vidas
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.
Porque te amo, queria-te um antídoto
igual a elixir, que te fizesse grande
de repente, voando, como fada, sobre a fila.
Mas por te amar, não posso fazer isso,
e nesta noite quente a rasgar junho,
quero dizer-te da fila e do novelo
e das formas de amar todas diversas,
mas feitas de pequenos sons de espanto,
se o justo e o humano aí se abraçam.
A vida, minha filha, pode ser
de metáfora outra: uma língua de fogo;
uma camisa branca da cor do pesadelo.
Mas também esse bolbo que me deste,
e que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos. [20]
Voltaria a dizer que as paixões são pessoais, mas acredito que transmissíveis. Era desta partilha da minha Sophia e do meu Sena que eu gostaria de falar.
Começaria realmente, então –
1 Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra poética. Dir. Carlos Mendes de Sousa. Prefácio Maria Andresen de Sousa Tavares. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p.710.
2 Sophia de Mello Breyner Andresen, O Cavaleiro da Dinamarca, Porto: Porto Editora, 2017 [1964]. p.14.
3 Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual in Obra poética. Dir. Carlos Mendes de Sousa. Prefácio Maria Andresen de Sousa Tavares. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015. p.615
4 Sophia de Mello Breyner Andresen, O nome das coisas in Obra poética, p.713.
5 Silvina Rodrigues Lopes, Aprendizagem do incerto. Lisboa: Litoral Edições, 1990, p.7.
6 Jacques Derrida, La carte postale de Socrate a Freud et au-delá, Paris: Aubier-Flammarion, 1980. p.439.
7 Jorge de Sena, Peregrinatio ad Loca Infecta in Poesia I, ed. e coord. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa: Guimarães Editores, 2013, p.457.
8 Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena. Correspondência 1959-1978. 3ª ed. Lisboa: Guerra & Paz, 2010, p.77.
9 Idem, p.51.
10 Ibid., p.145-146.
11 Ibid., p.129.
12 Jorge de Sena, “Deixa os gregos em paz”, in Peregrinatio in Poesia I, ed. e coord. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa: Guimarães Editores, 2013, p.528.
13 Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena, op. cit., p.115.
14 Idem, p.138.
15 Ibid., p.140.
16 Jorge de Sena, Poesia de 26 séculos, Poesia de 26 séculos – de Arquíloco a Nietzsche. Coimbra: Fora do Texto, 1993, 1993, p.27.
17 Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar novo in Obra Poética, p.401.
18 Jorge de Sena, “Prefácio” Poesia I, Lisboa: Moraes Editores, 1961, p.11-12.
19 Jorge de Sena, “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, in Poesia I, 2013, p.347-351.
20 Ana Luísa Amaral, Inversos, Poesia 1990-2010, Lisboa: Dom Quixote, 2010, p.357-358.
CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA (e UMA PEQUENINA LUZ e “QUEM A TEM…”)
Ana Luísa Amaral
UMA PEQUENINA LUZ / DA COR DA LIBERDADE: ENTRE FILHOS E VERSOS
Ainda pôde ver a sua cor
Em tinta verdadeira como o sangue.
Mas que diria destes nossos tempos
E destes novos ventos?
Vinha de fora
e não era monção, nem vento norte
nem qualquer outro vento conhecido,
vento que lhes dissesse
podem lutar comigo, podem prever-me
de quando em quando as notas
e por vezes até acautelar-me
os crimes
Este era um novo vento
sem dono e de outra aragem,
sem deslocação de ar que se soubesse,
mas podia, temeram,
destruir muito mais que os outros ventos
E eles trancaram janelas e fronteiras
e cumpriram aquilo que lhes fora ensinado:
erguer muralhas contra o que voava mas era rente
ao chão. Como podia um vento voar e rastejar,
ser fome em movimento?
Mas este vento nem se chamava vento, e eles
não sabiam o seu nome. Era um vento
selvagem e com asas, ele mesmo era asa e fogo,
rija e frágil matéria, e tudo
ao mesmo tempo
Por detrás das portadas, os mestres entre si
trocavam coisas várias: saberes e lajes de cimento
e gume para que os muros fossem mais opacos
e chegassem mais alto, combatessem o vento
que não tinha nome, e falavam de ardis s
obre como afiar melhor os seus
ensinamentos
Porque sabiam que este vento chegava
por eles terem lançado as areias
sobre as suas terras
E nele confundidos,
vinham de longe os hóspedes
trazidos nesse vento, donos de nada,
e por muito que os muros
se erguessem contra o vento,
mais o vento se erguia, mais resistente e dúctil
se afinava com a matéria
que o compunha
Não se sabe até quando o vento
errou, errou de desacerto e vaguear
por entre as ruas todas, errou sem rumo,
mas com lume bastante para alumiar tudo,
todos os aposentos das casas
que encontrou
e fez arder, de vermelho
insubmisso, os campos e as copas
das árvores mais altas
E conta quem lá esteve,
os filhos dos que tinham chegado com o vento,
os filhos dos escravos por eles libertados,
e ainda aqueles que ainda conseguiam falar com as crianças,
que esse ponto de luz, ínfimo, muito terno,
despertara outra vez –
e eles puderam ver também
a sua cor