Neste artigo, Lígia Bernardino analisa o livro Metamorfoses (1963) à luz do conceito de ecfráse, mostrando as relações entre a imagem, a palavra, o tempo e a morte. A autora recorre a uma consistente bibliografia crítica e teórica para inserir o pensamento poético seniano nas discussões sobre a poesia ecfrástica e as suas contribuições para a literatura portuguesa moderna e contemporânea.
Lígia Bernardino (Universidade do Porto)
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst of other woe
Than ours, a friend to man, to whom thou say’st,
“Beauty is truth, truth beauty,— that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.”
John Keats, «Ode on a Grecian Urn», 1820
Resgatar do esquecimento através da poesia, através da arte: Metamorfoses, de Jorge de Sena, obra publicada em 1963, é uma celebração do espírito humano, mais do que uma reverência às obras de arte convocadas. É também a manifestação de uma angústia face à mortalidade, que o autor assume em denegação. A morte sucede-se a cada geração que passa, mas há uma cicatriz que não se apaga, e essa fica patente através das obras de arte, que a palavra imortaliza. O diálogo com as obras de arte constitui uma manifestação ecfrástica de converter imagens em
palavras. Contudo, os poemas de Sena que resultam desta técnica autonomizam-se. O tributo torna-se tributável, pois os poemas de Metamorfoses ganham intensidades diferentes das obras plásticas convocadas. Cumpre-se a máxima horaciana ut pictura poesis, não implicando isso, porém, que haja uma correspondência imediata entre a obra evocada e o poema.
Em Museum of Words, James W. Heffernan destaca o caráter perecível da obra de arte visual porque o material se degrada, sendo as palavras — o museu das palavras — a forma mais eficaz de salvar do esquecimento essas obras transitórias. Há assim uma esperança: as palavras resgatam, forma salvífica de uma manifestação humana, sinal de permanência que o material inviabiliza. Quando, em Metamorfoses, Sena recupera obras artísticas de diversas épocas e proveniências, não é apenas o combate ao esquecimento que se destaca, mas a possibilidade de imortalização do espírito que as concebeu. A ambição amplia-se: mais do que evocar obras de arte, algumas delas
tão aparentemente insignificantes que passariam despercebidas, trata-se de presentificar todas as gerações que fizeram — que fazem — o homem de cada geração, num anseio de eternização que a obra de arte incita.
Segundo Heffernan, «twentieth-century ekphrasis springs from the museum, the shrine where all poets worship in a secular age» (1993,138), como se se registasse uma transferência do local de culto: o altar relocaliza-se no museu e a obra de arte sacraliza-se. Etimologicamente, religião deriva do verbo latino religare, que significa re-ligar, ou de relegere, que significa re-colher ou re-ler. Em Metamorfoses, a palavra procede a essa religação, como promove a releitura, já que a obra de arte é convertida em testemunho da presença humana. Do museu, Sena extrai não uma
contemplação transcendente, mas um sentido imanente das ações humanas, paradoxalmente tão belas quanto nefastas, como se depreende no excerto seguinte de «Gazela da Ibéria»:
Há muito as árvores caíram. Há
perdidos tempos sem memória que
morreram as aldeias nas montanhas
e pedra a pedra se deliram nelas.
Há muito que esse povo — qual? —
violado foi por invasões, e em sangue,
em fogo e em escravidão, ou só no amor
dos homens que chegavam em navios
de longos remos e altas velas pandas
se dissolveu tranquilo
(Sena 1963, 307)
No posfácio de Metamorfoses, Sena explica que o alinhamento dos poemas foi cuidadosamente elaborado, pelo que «Gazela da Ibéria», o primeiro poema da obra após o prelúdio, clarifica a intenção do autor. Partindo da pequena reprodução de uma gazela já sem uma pata, dos séculos VIII ou VII a. C., não é a riqueza artística que impressiona o poeta, mas a permanência após tantos séculos. Desta, resulta uma especulação acerca do tempo da conceção de tal pequena obra de arte e do seu uso em eras remotas. As civilizações desapareceram, mas a sua inscrição permanece na pequena gazela «suspensa nas três patas» (703). As árvores caídas metaforizam a sucessão das eras; o anonimato do povo evocado indicia a fatuidade dos atos humanos; o poema traduz a possibilidade de fazer permanecer atos e povos, a partir da leveza dos traços que deixaram. O propósito é assim superar a obra, num desejo explícito de convertê-la em signo de múltiplas conotações: a obra regista, inscreve a época em que é criada apenas para transcendê-la e desse modo servir de testemunho e mensagem de tempos idos.
Assim, em Metamorfoses, a ecfrásis não se reduz à descrição estrita de uma obra de arte, ainda que sem estas expressões plásticas de arte não pudesse existir. Conforme escreve Fernanda Conrado sobre este livro de Sena, só existe ecfrásis quando há uma relação descritiva e/ ou reflexiva entre o objeto e o texto. Portanto, não basta uma alusão: o objeto artístico tem de ser suporte ou entrar em diálogo intenso com o texto (118), tal como acontece com a pequena gazela da Ibéria. Há assim a superação da dualidade patente nos autores de textos ecfrásticos conforme defendido por Thomas W. J. Mitchell, quando explica que «the ekphrastic poet typically stands in a middle position between the object described or addressed and a listening subject who (if ekphrastic hope is fulfilled) will
be made to “see” the object through the medium of the poet’s voice» (164).
Em Metamorfoses não é muito relevante a reconstituição da obra de arte através das palavras, dado haver o seu registo pictórico. Interessa sobretudo a possibilidade de refletir sobre as emoções e os temas que a obra subjetivamente suscita. A mera descrição seria para Sena limitativa. Luís Adriano Carlos considera haver na obra deste poeta um processo de «dualidades articuladas num fluxo dialéctico de tipo hegeliano» (1999, 72). Por outras palavras, Metamorfoses não reproduz obras de arte através de uma descrição, nem é um tratado acerca da condição humana. Porém, estes dois aspetos fundem-se através da linguagem poética, permitindo a extrapolação de sentidos que superam quaisquer dualismos.
Convocando Lessing, Wendy Steiner denomina de «pregnant moment» a conversão ecfrástica da pintura, ou seja, a captação de um momento climático de uma narrativa na pintura, como acontece no episódio bíblico em que Judite corta a cabeça de Holofrene, no quadro de Caravaggio. A narrativa fica em suspenso, como o tempo, que se atém a um momento, e este abre–se a todas as interpretações. É nesse sentido que Sena, em «Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya», se liberta do próprio quadro, quase ignorando o que nele vê, para tecer considerações utópicas de um mundo justo, por contraposição aos sucessivos atropelos contra os mais básicos direitos humanos:
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor.
(1963, 348)
A ofensa sentida por Goya é a mesma de Sena, que vê no quadro daquele pintor não a narrativa de um episódio concreto, mas o testemunho de um acontecimento revelador do contínuo combate pela justiça e pela dignidade. «Não foi para morrermos que nascemos», exclama o poeta em «A morte, o espaço, a eternidade» (1963, 355). Este raciocínio denuncia a revolta patente em Metamorfoses contra a inevitabilidade da morte. Já o poema inspirado no referido quadro de Goya incide sobre um outro tipo de revolta, espécie de grito que atravessa tempos contra investidas humanas que quantas vezes redundam em destruição do próprio homem.
Segundo Mitchell, a questão dos poemas ecfrásticos é sobretudo semântica, pois diz respeito à interpretação dada ao significante, uma vez que poemas e obras de arte estão «all located in differences of intention, reference, and affective response» (159). A transposição de meio e contexto confere a possibilidade de reinterpretações do representado. Em Metamorfoses (como, de resto, em Arte de Música, publicado em 1968, para evocar composições musicais que sensibilizaram o autor), para além da semântica, destaca–se a questão ética, em que a experiência artística se apresenta como revelação fenomenológica das vivências humanas. Através dessa revelação, torna-se possível idealizar o espírito humano. Como defende Carlo Vittorio Cattaneo, a poesia de Sena tem um programa que se prende à criação de «uma poesia de intenção altamente cívica, mergulhada na realidade histórica e empenhada, com o seu contributo de testemunho e revelação, em colaborar com os homens na transformação do mundo» (241). Nesse sentido, as obras de arte de Metamorfoses servem como fonte de meditação acerca da condição existencial dos homens, ao mesmo tempo que é um apelo à dignidade e ao respeito pelo outro.
Segundo Jorge Fazenda Lourenço, ao teorizar a poética de testemunho, Sena demonstra toda a sua «consciência criadora, que, no acto de aferir-se, se revela» (105). Em Metamorfoses, a ecfrásis permite a Sena aferir o seu testemunho enquanto poeta em estado clarividente de apreensão da experiência humana, conforme revela ao afirmar que os objetos artísticos escolhidos «se têm congregado em ser culturalmente nomeados, apontados ou aludidos, em concentrados poemas de grande experimentalismo na supressão surrealista de nexos lógicos mesmo ao nível da “informação”» (1974, 747). Como comenta Fazenda Lourenço, «o poeta transpõe emocionalmente para a escrita os sentimentos que a obra de arte alheia lhe desperta. Partilha com o leitor “um objecto-memória cultural”» (290). Assim, descrever, narrar, refletir sobre as obras selecionadas remete para preocupações metafísicas convertidas em interpretação e expressão de experiências humanas. Neste processo, porém, ressalta o entrelaçamento constante de temporalidade e morte, topoi estruturantes da criação literária de Sena, porque reveladores da precariedade humana.
Entre o erotismo de «“O balouço”, de Fragonard» e a força enigmática do «Retrato de um desconhecido», delineia-se em Metamorfoses uma angústia pelo tempo que passa e deixa no anonimato quase todos quantos constituíram as sucessivas gerações. Por isso, convocar as obras de arte através da poesia serve para Sena resgatar o passado de modo a questionar os percursos humanos, tanto individuais quanto coletivos. No primeiro caso, percebe-se a vontade conscientemente infrutífera de desfazer anonimatos, como na sucessão de perguntas com que termina «Retrato de um desconhecido»:
Inda
dependeremos desse jovem? Mas quem era?
Será que ele o sabia? Ou que o pintor o soube
Naquel’ momento de olhos em que o mundo
coube?
(329)
No segundo caso, lembram-se os combates que, aniquilando, fazem também a história do presente, como se lê em «Cabecinha romana de Milreu», cuja delicadeza contrasta com a brutalidade das legiões romanas:
nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
na sua boca as legiões não marcham,
na curva do nariz não há os povos
que foram massacrados e traídos.
(311)
Como se o anonimato e a violência fossem parte constitutiva do devir humano; como se o tempo percorrido incitasse a sucessão de catástrofes civilizacionais: a poesia serve para Sena de testemunho, e esse será sempre denúncia, com vista a um aperfeiçoamento para superar as falhas éticas que a História relata. Escreve Walter Benjamin na tese III de «Sobre o conceito da História»:
O cronista, que narra os acontecimentos em cadeia, sem distinguir entre grandes e pequenos, faz jus à verdade, na medida em que nada do que uma vez aconteceu pode ser dado como perdido para a história. É verdade que só à humanidade redimida será dada a plenitude do seu passado. E isto quer dizer que só para a humanidade redimida o passado se tornará citável em cada um dos seus momentos. Cada um dos instantes que ela viveu se torna uma citation à l’ordre du jour — e esse dia é o do Juízo Final. (10)
Os acontecimentos históricos são imutáveis, pelo que a redenção virá apenas no Juízo Final: este o messianismo expresso por Benjamin. Em Sena, o messianismo não surge como o fim da linha; não há teleologia, mas a possibilidade de resgate dos pequenos e grandes acontecimentos civilizacionais a cada momento. Kairos suplanta chronos, se, como explicita Frank Kermode, o primeiro for «um ponto de tempo cheio de significado» (58), ao passo que o segundo é a passagem do tempo. A redenção, em Sena, não tem de esperar pelo Apocalipse, porque o passado não se transforma, e só metafisicamente, pela recuperação de um espírito humano idealizado, se transformará a existência humana.
Ao convocar acontecimentos reais ou imaginários que conceberam objetos artísticos como a gazela da Ibéria, a cabecinha romana de Milreu, no poema homónimo, ou o retrato de Artemidoro no caixão da sua múmia, Sena, não redimindo as figuras evocadas, resgata-as de uma condição meramente artística, para lembrar o espírito humano que elas também configuram, assim eternizando-as. Afinal, como assevera em «A morte, o espaço, a eternidade», cabe ao ser humano «ser o espírito / sempre mais vasto do Universo infindo» (1963, 359).
Se o espírito se eterniza, se a redenção passa pela recuperação daqueles que a história, numa cedência à morte, esqueceu, o objeto que faz a obra de arte e o poema que a celebra serão o veículo de resistência para a ideia messiânica de Metamorfoses. Benjamin refere a redenção do passado no dia do Juízo Final; Sena observa na obra de arte, por mais antiga que seja, a confirmação de um espírito humano que tarda em se manifestar na sua grandeza. «Deméter» é disso exemplo. Esta estátua exposta no British Museum «é um monstro em pregas vastas, sem cabeça» (309), mas, no seu interior, o poema percebe-a enquanto promessa redentora:
Ó terra, ó monstro, ó doce manto
que os véus recobrem temporais e eternos!
Sem pernas e sem braços, sem cabeça,
ó torso e joelhos, seio sem palavra,
ó estátua prometida, carne imaculada!
(311)
Metamorfoses parte da descrição de obras de arte para reflexões metafísicas. Não havendo, portanto, uma conversão stricto sensu de obras de artes plásticas em poesia, as metamorfoses sugeridas no título são uma metonímia de tempos humanos transformados em discurso poético. A convocação de modelos, artistas, homens, povos e civilizações passados, de que resultam os quadros e as esculturas, bem como os poemas, implica a revelação das inquietações que assolam o poeta, designadamente no que diz respeito à morte. Se esta se ressente em Metamorfoses, só a arte permite combatê-la, por constituir-se enquanto testemunho humano, e este eterniza-se.
No posfácio, Jorge de Sena concede que «a presença da Morte domina […] a maioria dos poemas: e não será seguro dizer que a morte não está implícita neles todos» (1963, 372). Entre a escrita em maiúscula e em minúscula, a posição assumida transfigura-se. De uma abrangência abstrata iniludível, os motivos de reflexão predominantes em Metamorfoses não se centram num lamento elegíaco pela morte individual, nem no medo que ela suscita. Essa será sempre escrita em letra minúscula. Antes, Sena convoca a Morte como metonímia permanente do tempo que passa e que ele quer superar. Assim, a convocação das obras de arte resgatadas do esquecimento, logo, da morte, implica uma transformação — uma metamorfose. Enquanto signo indicial de outras eras, de outras gentes, o ato de convocá-las converte-se na valorização não só dos retratados ou dos criadores, mas também do espírito humano que as soube produzir. Dirigindo-se a Artemidoro, escreve, no poema homónimo:
Mas para ti e os teus — um pouco egípcios,
um pouco sírios, gregos e romanos,
cristãos e persas: Cristo Pantocrator,
Ísis, Pan-háguia, os anjos e os profetas,
Deméter, a Fortuna, o Jano bifrontal,
Ormuzd e Ariman, Pitágoras, Platão,
o deus Ptah, Adónis, Minotauro,
e as bacantes agitando o tirso —
[…]
que seria esse olhar tão líquido e profundo que
me fita
envidraçado pela morte e pelas crenças todas
e também pela vidraça que, interposta,
nos não separa menos do que os séculos?
(1963, 314-315)
O mercador Artemidoro morreu enquanto ser individual habitante de uma época, mas não enquanto testemunho humano que se extrai da sucessão temporal. Fora do chronos, a morte inviabiliza-se. No seu devir, o tempo assiste aos atos humanos que, na imaginação do autor, se sucedem sem grandes transformações: guerras, comércios, beleza, sedução e morte física são uma constante humana. Superar a morte significa, pois, a assunção do kairos.
A representação pictórica serve enquanto mote para ascender à «geometria / do espírito provável», conforme Sena escreve no poema «A nave de Alcobaça» (319). A pintura e a escultura de Metamorfoses celebram o que Rosa Maria
Martelo considera ser o «grande fascínio pela imagem» (195) que a poesia sempre teve. Em Sena, tal força atrativa plasma-se com a vontade de fusão de tempos, por só desse modo se superar a condição mortal do homem e se prover à sua ascensão enquanto ser eterno.
A melancolia advém da consciência de que esse todo é constituído por indivíduos cujas existências são presentificadas apenas pela evocação que deles fazem os poemas. É esse o sentido da «poesia meditativa, e mediadora», conforme analisa Jorge Fazenda Lourenço (58), a propósito de Metamorfoses, obra que se apoia «num enquadramento narrativo, com base na mitologia, na História, ou em notações do quotidiano, pessoal ou colectivo» (ibidem).
Na tese III de «O Conceito da História», Benjamin refere a redenção de cada momento no dia do Juízo Final; Sena sugere a convergência de todo o passado num momento imortalizável. Por isso a narratividade secundariza-se, para se destacar o que Gastão Cruz classifica de «dimensão ética, política ou “existencial”, que o poeta capta e emocionalmente reelabora» (73) através de Metamorfoses. Nesse processo, diluem-se as fronteiras temporais, pelo que se desvanece também a notação cronológica. Tempos e nomes figuráveis no tempo, como os referidos na citação destacada de «Artemidoro», são meros apontamentos cujo fim se amplifica ao sentido da existência.
Jean-François Lyotard refere a dificuldade de se isolar o tempo em arte: há o tempo da produção da pintura, da sua época histórica, da época retratada e da de receção, para além do tempo que dura a chegar ao recetor-observador e o de permanência nesse recetor. A complexidade impede univocidades e suscita meras hipóteses de, «na sua ambição infantil, [permitir] isolar “lugares de tempo” diferentes» (85). Ora, é precisamente a ideia de cartografar o observado que Sena contraria: mais importante do que os tempos e os lugares empíricos, interessa a extrapolação de perspetivas metafísicas e éticas que deem sentido à catástrofe sucessiva da história humana, bem como ao devir do tempo.
Segundo Rosa Maria Martelo, nota-se a secundarização diegética nos exercícios ecfrásticos, o que corrobora Sena, quando esta afirma que «na arte do passado, importa muito pouco o “assunto” que parece importar tanto e era encomendado, e importa muitíssimo o pormenor, ou a estrutura em si. Os assuntos são o mais perecível da obra de arte» (117). Por isso as descrições feitas das obras de arte subjetivamente escolhidas para incluir em Metamorfoses ou se assumem numa intensidade trágica, como acontece na descrição do quadro «A morta», de Rembrandt, no poema homónimo, ou se diluem nas reflexões metafísicas, resistindo à objetivização que tempo e espaço lhes confeririam, como na convocação da pequena cabeça romana de Milreu. O tom elegíaco que percorre este livro decorre não das obras de arte evocadas, que o autor considera «essenciais à condição humana, como expressão de uma sempre acrescentada experiência da consciência livre» (125), mas da falência de passar para a vida empírica a possibilidade de suspensão do tempo que arte e poesia proporcionam. Na vida empírica, o tempo permanece como propulsionador de perda.
Os poemas são uma forma encontrada por Sena para atenuar essa perda. A palavra eterniza; no entanto, a fixidez que ela aparentemente suscita é frágil. A imagem — pictórica ou a produzida pela literatura — evoca e estimula a rememoração, ou seja, a reatualização permanente do vivido que, segundo Lyotard, «implica a identificação do rememoriado, a sua classificação num calendário e uma cartografia» (59). Ora, esse resgate do passado converte-se, em Sena, num programa determinado de valorização humana, ainda que ciente da precariedade física e ética do homem. A obra de arte interessa não só pela emoção estética que suscita, mas também pelo que ela esconde sob as suas pregas, como a pedra ondulante de Deméter, ou na ausência do que mostra, como a cadeira de Van Gogh que, tendo os objetos usados pelo pintor, retrata o «ter lá estado e ter lá sido» (Sena 1963, 343); retrata uma memória, portanto.
Há um posicionamento, há uma emoção, há um terceiro termo que é a obra escrita a partir do observado e que se viabiliza a partir da memória. O poema ecfrástico de Sena existe por hipomnese: a memória coletiva suscitada pela obra de arte converte-se numa versão pessoal da civilização humana. Talvez seja o lugar da khôra, como Jacques Derrida interpreta no texto homónimo, lugar para além do mito e do logos:
(…) afin de penser khôra, il faut revenir à un commencement plus ancien que le commencement, à savoir la naissance du cosmos, tout comme l’origine des Athéniens doit leur être rappelée par-delà leur propre mémoire. Dans ce qu’elle a de formel, précisément, l’analogie est déclarée: un souci de composition architecturale, textuelle (histologique) et même organique se présente comme tel un peu plus loin. (96)
Para Derrida, na sua análise de Timeu, de Platão, a khôra transforma-se num recetáculo, numa mãe que dá à luz o momento de uma história, de um mito, só existente através do logos. A khôra converte-se num eixo de espaço/tempo, em que se viabiliza o relato do outro através de uma observação exterior: conta-se o que nos foi contado. Há assim um intercâmbio de ideias e palavras. Retomando Timeu, Derrida descreve como Sócrates, situando-se num local em que recebe as palavras dos outros que ali estiveram, não reproduz as palavras desses, mas fá-las tornarem-se dizíveis. Usa palavras que não são e, contudo, são suas. Por isso, o local é tão insubstituível quanto insituável: a referencialidade muda com o tempo, com a pessoa, com o local.
Sena procede a um método semelhante nos seus poemas ecfrásticos. Não se trata apenas da memória, anamnésica ou hipomnésica, nem dos locais onde as obras se expõem, nem ainda do que as obras de arte reproduzem. Os poemas de Metamorfoses pretendem alcançar uma diversidade de sentidos cujo ponto comum será a sinalização da condição humana, para além de factos ou de figuras historicamente reconhecíveis. Derrida afirma que Sócrates não é khôra, mas põe-se no seu lugar, e este será insubstituível. O lugar do poema, em Sena, assume esse posicionamento
que o extrai de uma cartografia estrita, como se percebe em «Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya». Neste poema, Sena inscreve o seu testamento ético, num tom confessional que supera uma mera notação de angústia individual:
Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos
séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não
sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
(1963, 349)
Nota-se a presença da hipomnese, resultante da experiência coletiva do sofrimento infligido pelos humanos. Essa memória suplanta referências geracionais. O poema, de pendor universalista, sintetiza relatos sobre relatos do horror através do qual se instituiu a civilização contemporânea. Mais do que o mito, mais do que o logos, o poema é o eixo da experiência humana, insituável, inapropriável, aquém e além de factos reais ou imaginários. O posicionamento de Sena é, pois, filosófico; a sua criação poética em Metamorfoses visa um terceiro termo, e esse aproxima-se da khōra.
Percebe-se, nesta obra de Sena, um olhar escatológico, ao colocar o homem numa posição de risco em que a derrocada parece iminente, ao mesmo tempo que oscila entre a intemporalidade e a civilização a que pertence. Sena acredita que o homem vive o seu tempo, é dele testemunho, tendo a poesia o intuito de transformar o que de mal assiste no mundo. Como defende no prefácio da primeira edição de Poesia I, «o “testemunho” é, na sua expectação, na sua discrição, na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do mundo» (1961, 726), nem que seja pelo esboço de mundos ideais, com vista à convocação e concretização da «dignidade humana» (ibidem).
Essa vontade de criação de universos utópicos entrelaça-se com os registos memoriais que resultam das suas vivências e bagagem cultural.De obra de arte em obra de arte, o poeta tece a sua própria análise do mundo a que assiste e vivencia, mas a conversão das suas ideias e emoções em poema persegue uma universalização que transcenda limiares solipsistas. É a hipomnese, não a anamnese, que os poemas de Metamorfoses convocam, porque a memória que se resgata é a do ser humano, não a do autor, nem das figuras individuais retratadas. Trata-se de efabular através de um conhecimento coletivo, da hipomnese, portanto, e de uma reconfiguração que não tem de ser verdadeira historicamente, como exemplifica a especulação acerca do povo que terá concebido a pequena gazela da Ibéria no poema homónimo.
Nem sequer é crucial a referência a um tempo histórico concreto. Quando, em «“Eleonora di Toledo, Granduchessa di Toscana”, de Bronzino», Sena inclui apontamentos cronologicamente referenciáveis, os factos submetem-se ao pensamento filosófico:
Mas a pintura era outra coisa, um escudo,
um escudo de armas e um broquel tauxiado,
para morrer tranquilo, quando a angústia brota,
como um vómito de sangue, do singelo facto
de ter-se ou não ter alma, os mundos serem
múltiplos,
e o Sol rodar ou não em torno à terra inteira,
iluminando as múltidões, as raças, tudo
(1963, 332)
A verdade decorre da experiência humana; a história advém da bagagem cultural que tanto resulta de um estudo aturado, percetível nas diversas referências patentes na obra de Sena, quanto da memória coletiva. Importa, neste excerto, convocar um tempo que produz o ser humano a cada época que passa, ressituando-o: o tempo humano tal como idealizado por Sena é o da eternidade. No entanto, para alcançá-la, é ainda necessário recorrer à memória, e esta encontra suporte na obra de arte.
Neste sentido, Bernard Stiegler definiria como próteses todas as peças a que Sena recorre para conceber Metamorfoses, já que, para o filósofo francês, «la temporalité de l’homme, qui le marque parmi les autres vivants, suppose l’extériorisation, la prothéticité» (181). Stiegler preconiza, pois, a artificialidade da memória, que necessita do registo escrito ou, desde o século XIX e cada vez com mais evidência na atualidade, do técnico, para que o passado não se perca em absoluto. Há assim, manifestamente, uma dependência, convertida em Sena numa profunda reflexão acerca das fragilidades humanas. Em Metamorfoses, a memória tornada poesia resgata, resguarda, avisa. Não há apenas emoção estética na contemplação de uma obra de arte. «Turner» traduz em forma de poema, para além das efusões de cor e formas indistintas, o rumor do mundo de todos os tempos, khôra de onde emana uma síntese da experiência e do conhecimento humanos:
Como se espalha em nódoa sobre a tela
uma cegueira penetrante e ávida
que a tudo vai roendo em marulhar de mundos!
(Sena 1963, 340)
Na «Fonte da Juventude», um quadro de Lucas Cranach, o Velho, concebido em 1546, figura uma piscina em plano central. Do lado esquerdo, a paisagem é árida, as pessoas são idosas e dirigem-se para a água, lá mergulhando; no verdejante lado direito, outras pessoas saem da água rejuvenescidas, prontas para recomeçarem a viver. Este quadro não consta da leitura ecfrástica que Sena desenvolve em Metamorfoses. No entanto, nota-se uma preocupação comum relativamente à questão do tempo e da morte. Sena omite a alegria do rejuvenescimento que confere leveza ao quadro de Cranach. Antes, os poemas focam-se num passado cujo resgate se viabilizará apenas pela homenagem a um espírito humano disponível à dignidade, bem como na irreversibilidade do tempo e da morte. «“A morta”, de Rembrandt» assinala o drama:
É muito velha. Velha ou consumida
na serena angústia de aguardar que a vida
vá golpe a golpe desbastando os laços
de carne e de memória, de prazer, piedade,
ou do simples ouvir que os outros riem,
e choram e ciciam ou silentes
se escutam tal como ela se escutava
na calma distracção de respirar
o tempo que circula pelas veias.
(Sena 1963, 333)
Da morte individual para a vida que se esgota num processo comum a todos: meditação que «supera o dado relativo de uma velha defunta para se dirigir a todos os homens», conforme salienta Vittorio Cattaneo (253). O poema torna-se endereçamento, portanto, o que se percebe ao longo desta segunda estrofe. Nota-se uma sensação de esgotamento resultante da consciência da «usura do tempo e [da] precariedade da existência humana no seu impulso para a morte», conforme escreve Luís Adriano Carlos (2006, 63) a propósito da obra de Sena. Para além da reflexão metafísica do sentido da existência, para além da questão ética numa senda pela dignidade humana, há ainda a realidade ineludível da precariedade da vida humana, talhada para a morte. De pouco serve a revolta expressa no já aludido poema «A morte, o espaço, a eternidade»: a morta retratada por Rembrandt, como também a máscara de Keats, evocada no poema «A máscara do poeta», são a evidência da inevitável derrocada humana, pois, como se lê no excerto acima, o tempo circula pelas veias e acaba por vencer.
Ao contrário da perspetiva teleológica da existência defendida por Frank Kermode, ao afirmar que «o tempo não é livre, é escravo dum fim mítico» (98), Metamorfoses não aponta um fim; não é a narrativa que impulsiona os poemas. São os momentos eternizados pelas obras de arte, as emoções despertadas por esses momentos, que criam unidades de sentido para a compreensão do homem na sua relação com a existência, numa reveladora e acutilante análise do tempo, entrelaçada com uma prospeção filosófica acerca da condição humana.
O momento captado por Rembrandt no quadro salienta a irreversibilidade da morte; «Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya», suspende-se no momento prévio à morte, assim destacando a injustiça prestes a concretizar-se perpetrada pelo homem; «A máscara do poeta» permite perceber a angústia causada pela certeza da morte. Evocando John Keats, este poema refere uma peça escultórica cuja qualidade é irrelevante, contrastando com o valor do retratado: a máscara da morte do poeta — a obra de arte que serve de base ao poema — não corresponde à máscara do poeta vivo, em cujo âmago palpita «a carne, o sangue, a sensação de ser, / o pensamento arguto penetrando as coisas» (1963, 352).
Como símbolo, esta máscara ganha relevância por reproduzir o rosto do poeta de «Ode on a Grecian Urn», poema ecfrástico pioneiro, que descreve as imagens retidas num vaso da antiguidade grega. Também este poema de Keats, sendo uma ode, se converte numa apurada reflexão acerca da irreversibilidade do tempo, que impedirá a revelação do momento vivido pelas figuras retratadas, assim sugerindo a fragilidade da condição humana: a obra sobreviveu ao longo de gerações e assim continuará pelas gerações vindouras. Convocando a máscara de Keats, o poema de Sena não obsta a uma análise ecfrástica. Porém, permite centrar o foco de Metamorfoses no homem, cujo destino é fatalmente diverso do da obra de arte. Como refere Fazenda Lourenço, trata-se de «desmonumentalizar os objectos estéticos, retirando-os ao tal pó ou pátina dos museus, para os reintegrar na vida que cada poema propõe» (300). Ora, tal processo de reintegração não implica uma permanência estática dos tempos e do homem, mas permite uma
revisão dos tempos, para prover à sua transformação. Sena defende que as obras de arte «são essenciais à condição humana, como expressão de uma sempre acrescentada experiência da consciência livre» (1973, 125).
Que procura Sena na deambulação pelas obras de arte? Os seus criadores estão mortos (somente Fernando Azevedo, pintor surrealista do quadro «Ofélia», permanecia vivo, na altura da publicação de Metamorfoses) e os modelos também. A reconstrução do que as obras representam é impossível: com frequência sugerem apenas imagens de quotidianos longínquos, pelo que as interpretações suscitadas abrem-se a especulações plenamente assumidas pelo autor. Referindo a demanda do filósofo neoplatónico Damáscio em busca do princípio dos princípios, Giorgio Agamben conclui que, «conhecendo a incognoscibilidade do outro, não conhecemos alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós» (26). Estendamos aqui o plural ao tempo de escrita dos poemas. Sena perscruta as vivências da humanidade através das obras que contempla, mas desse modo dá a sua interpretação do tempo por si efetivamente experienciado.
Metamorfoses resulta assim de uma vontade de transformação que percorre toda a criação literária de Jorge de Sena, donde o nome adotado apontar para mais do que a mera conversão de obras de arte plástica em poesia. Através de um diálogo ecfrástico com obras de arte que marcaram o autor no seu périplo por variados museus europeus, não é a técnica, nem o valor artístico, nem a mestria dos pintores e escultores que Sena convoca: as obras de arte são mote para reflexões acerca do tempo, da morte e da condição humana. Se as gerações parecem destinadas ao esquecimento, a arte permite resgatá-las, ao figurar como impressão digital de tempos e seres que fizeram esses tempos, ao propor um tempo eternizado, o kairos que tudo funde num imenso universo humano. A arte prolonga a vida de seres anónimos, criadores ou modelos, mesmo que apenas na imaginação do observador; a poesia ecfrástica de Sena amplia essas vidas para um patamar metafísico, numa tentativa de superação do tempo e da morte através de palavras.
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