Neste artigo, Diogo Fernandes faz uma análise comparativa de “Conto Brevíssimo” de Jorge de Sena, e “Isto não é um conto”, de Diderot, destacando os elementos estruturais que fazem destas narrativas um contraponto ou subversão ao gênero a que pertencem.
Diogo Fernandes
IELT/Departamento de Estudos Portugueses. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova
de Lisboa
Referia Ian Reid, a propósito do conto de Jorge Luis Borges “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, que a sua importância, numa tradição de histórias com um enredo solidamente estabelecido, adquiria contornos paródicos e subversivos particularmente relevantes porque “colapsava a distinção entre verdade e ficção, separando-se em várias possibilidades narrativas incompatíveis de forma a debilitar a premissa de causalidade da qual a narrativa pudesse depender” (Reid, 1977, pp. 7-8). Já Philip Stevick, aliás, tinha incluído, seis anos antes, o conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, do mesmo autor, na sua antologia de 1971, Anti-Story: An Anthology of Experimental Fiction, ao lado de contos como “O Rinoceronte”, de Eugène Ionesco, e “As Babas do Diabo”, de Julio Cortázar (sob o título “Blow-up”), por considerar que este(s) texto(s) fracturava(m), de alguma maneira, a forma convencional de se contar uma história.
Do mesmo modo, é possível encontrar um princípio análogo nos textos de Denis Diderot – “Isto não é um conto” – e de Jorge de Sena – “Conto brevíssimo” ―, na medida em que ambos procuram subverter diferentes noções afectas ao conto, jogando não só com a pertinência dos seus elementos mais firmemente estabelecidos – desde as concepções de brevidade, de limite ou de desfecho, até à própria importância da função da narrativa –, como também com as expectativas do leitor, frustrando-as de forma mais ou menos deliberada.
“Conto brevíssimo”, de Sena, serve-se da conjugação destes pressupostos de forma transversal e bastante explícita, começando – e terminando – com uma abordagem ao tema da brevidade no conto e das implicações desta tensão no próprio acto de narrar: “Este é um conto breve. É mesmo brevíssimo. De resto, se não fosse breve, muitíssimo breve, correria o risco de não ser um conto. A obrigação principal dos contos, mais do que os homens, é conhecerem os seus limites” (Sena, 2006, p. 195). A simplicidade aparente destas afirmações contrasta, desde logo, com a natureza muitas vezes irónica com que são referidas ao longo do texto e, sobretudo, com a complexa dinâmica textual que representam, requerendo algumas observações preliminares.
De facto, o número de elementos que se pode narrar ou incorporar num texto que se pretende breve é, à partida, limitado, sobretudo se considerarmos formas mais extensas, cuja génese não preveja determinado tipo de restrições; o conto, por oposição ao romance, parece adquirir a sua identidade através da sua brevidade e das consequências narrativas que lhe são inerentes. Este princípio, não obstante, comporta uma dimensão significativamente ambígua – como de resto Jorge de Sena não o ignorava: “Sem definições, a brevidade não existe, não se realiza, da mesma forma que, com elas, não tem essência própria nem estrutura virtual” (Sena, 2006, p. 197) —, que deriva da dificuldade de o converter numa extensão física concreta e delimitável.
Julio Cortázar, compreendendo a complexidade que esta conjectura encerra, irá abordá-la através de outra perspectiva, atentando não numa normalização da extensão do texto, mas utilizando a própria consciência que o conto retira da sua brevidade enquanto género literário: sabendo que não pode proceder acumulativamente, “o conto parte de uma noção de limite, que é em primeiro lugar um limite físico” (Cortázar, 1970, p. 406). Nesse sentido, conclui, o tempo e o espaço, no conto, estarão condicionados por essa exigência de condensação narrativa; a acção, do mesmo modo, é limitada pelo enquadramento escolhido.
É, no entanto, através da posição de Charles May que distinguimos uma nítida preocupação em relacionar os limites do conto com o tipo de experiência que este reflecte, a qual, afirma, se traduz numa forma de conhecimento diferente da que encontramos no romance. A ficção breve, assevera, “exige tanto um assunto como um conjunto de convenções artísticas que derivem de e estabeleçam a primazia de ‘uma experiência’ directa e emocionalmente criada e resolvida” (May, 1994, p. 133).
O texto de Sena, antevendo as posições quer de Cortázar quer de Charles May, adquire a sua formulação aparentemente ensaística à medida a que a narrativa parece ceder o lugar à (auto)reflexão, através do exagero e da repetida enunciação ― e sublinhe-se o papel da ironia: “A brevidade, porém, isenta-nos de quaisquer perigos. Ora os perigos são, quase sempre, muito breves. Pelo que podemos concordar em que este conto é brevíssimo” (Sena, 2006, p. 198) ― das concepções de brevidade e limite, fazendo com que a narrativa se ‘estreite’ de tal forma que quase desaparece no contexto do conto: a subversão do princípio de condensação narrativa converte-se, neste caso, em “desistência de narrar”, e o ‘não-episódio’ que o conto relata procura subordinar-se a uma função verificativa
da sua (auto)reflexão: “E um conto breve, brevíssimo, que seja a própria desistência de narrar […], não sendo mais nada, será por certo a brevidade impreparada, a brevidade captada, a brevidade em si” (Sena, 2006, p. 197).
Assim, e como pretende o narrador comprovar através das constantes repetições, paradoxos ou mesmo pelo carácter muitas vezes digressivo do seu raciocínio em que se dilui e se dilata a sua ironia, à brevidade deste conto – que o é (breve) em termos de extensão —, não corresponderia, deste modo, um princípio de condensação narrativa, visto que os limites do ‘acidente’ ou, melhor, ‘incidente’ narrado, não reflectem os limites do próprio conto. Não é, contudo, claro ou sequer sustentável supor que a experiência que acaba por lhe definir os limites se circunscreva, na sua totalidade, às circunstâncias dos eventos narrados – até pela lógica que do próprio texto sobrevém: “Claro que narrar não é, como todos sabem, o suficiente para escrever um conto” (Sena, 2006, p. 195) —, nem se pode afirmar que a narrativa funcione como um simples pretexto para a (auto)reflexão que ele evidencia, considerando a complexa e subtil relação que se estabelece entre esses eventos. Os seus limites, julgamos, são-lhe impostos pela experiência e a dificuldade que é o acto de narrar, em si, um conto, e este conto em particular, com todas as singularidades que o género literário lhe exige e que o texto de Sena procura subverter. Deste movimento resulta a estupefacção sentida pelo leitor ao verificar que, num conto de facto breve, a narrativa em si torna-se brevíssima em comparação com a interpretação, que a acompanha, sobre o carácter da sua brevidade.
Em “Isto não é um conto”, de Denis Diderot, são-nos apresentados dois relatos que traduzem, em dois momentos distintos, a malícia inerente ao ser humano nas suas ligações amorosas; seja através da relação entre Tanié e a Senhora Reymer ou da relação entre Gardeil e a Senhora de La Chaux, a narrativa procura, de forma deliberada, desdobrar e comprovar esta concepção inicialmente proposta que se irá reflectir, sucessivamente, em “É preciso admitir que há homens muito bons e mulheres muito más” (Diderot, 2010, p. 14) e, mais à frente, “de resto, se há mulheres más e homens muito bons, há também mulheres muito boas e homens muito maus” (Diderot, 2010, p. 23). O narrador, aliás, adverte-nos desde logo para as consequências narrativas desse processo: “a minha historieta não prova mais do que aquelas que vos extenuaram antes” (Diderot, 2010, p. 13), referindo-se a “Uma litania de historietas gastas […] que mais não dizem que uma coisa conhecida de toda a eternidade, a de que o homem e a mulher são duas bestas muito maliciosas” (Diderot, 2010, p. 12). A interpretação que se retira de ambas as premissas supramencionadas, e que corresponde a um paradigma amoroso de contornos trágicos, é tão irónico quanto expectável: “Se há um bom e honrado Tanié, é a uma Reymer que a Providência o envia; se há uma boa e honrada de La Chaux, ela será o quinhão de Gardeil; a fim de que tudo decorra da melhor forma possível” (Diderot, 2010, p. 47).
Na ausência de um elemento de perturbação, acontece exactamente o que o narrador antecipa e o desfecho, previsto, procura converter a narrativa num exercício de verificação. Nesse sentido, o autor, aproveitando-se das expectativas do leitor – através da introdução das personagens a que correspondem as figuras do narrador e do leitor e da formulação do diálogo entre si —, antecipa a sequência dos eventos que irão alegadamente ‘limitar-se’ a apresentar os factos, na medida em que estes comprovam a veracidade da sua concepção inicial, despojando-os, dessa forma, do seu valor intrínseco. Resta, no entanto, o texto literário e o prazer da sua leitura, como o mesmo afirma, não sem alguma ironia, aludindo a outros textos de uma mesma natureza trágico-amorosa: “Mas parece que lhe devemos, contudo, um serão bastante agradável, e que essa leitura levou a que…” (Diderot, 2010, p. 12); e, de facto, a sua leitura leva-nos não só a reflectir sobre a importância de vários aspectos do género em que insere como se torna tão mais interessante quanto a consciência da profundidade do seu ‘logro’: se o subterfúgio originado por esta deslocação narrativa coloca em causa a relevância do desenlace, porque o priva da sua imprevisibilidade, torna-o, ao mesmo tempo, num objecto fundamental no efeito – de frustração das expectativas – causado no leitor. Desta subversão do processo narrativo resulta não só a provocação contida no título “Isto não é um conto”, como a adenda subsequente “ou que é, em caso de dúvida, um mau conto” (Diderot, 2010, p. 9), cuja ironia só podemos compreender depois de considerarmos os mecanismos de que este texto se serve.
Comentava Allan Pasco, distanciando-se da posição enunciada por E. D. Hirsch, que “As características distintivas [de um texto, dentro de um género] só se tornam de facto distintivas quando, na sua congruência plural, contribuem com sucesso para isolar – de forma mais ou menos acentuada e na maior parte – um locus” (Pasco, 1994, p. 115). Um género pode – e deve – admitir variações no modo como os seus elementos são utilizados, senão acabaria por se esgotar rapidamente na sua inflexibilidade, até mesmo variações tão profundas quanto os exemplos que “Conto brevíssimo” e “Isto não é um conto” representam para o conto. A sua existência, apesar do que os seus autores possam ou não ter delineado, não coloca necessariamente em causa a definição do género em que se inserem, porque estes textos apenas adquirem os seus contornos disruptivos dentro e em relação a esse grupo específico, e a sua formulação deliberadamente subversiva acaba por tornar evidente a pertinência dos elementos que o caracterizam.
Referências Bibliográficas
Cortázar, J. (1970). Algunos aspectos del cuento. Casa de las Américas, 60, 403-416.
Diderot, D. (2010). Isto não é um conto. Lisboa, Portugal: Arbor Litterae.
May, C. (1994). The Nature of Knowledge in Short Fiction. In C. May (Ed.), The New Short Story Theories (pp. 131-143). Athens, Ohio: Ohio University Press.
Pasco, A. (1994). On defining short stories. In C. May (Ed.), The New Short Story Theories (pp. 114-130). Athens, Ohio: Ohio University Press.
Reid, I. (1977). The Short Story. Londres, Inglaterra: Methuem.
Sena, J (2006). Conto brevíssimo. Antigas e Novas Andanças do Demónio (pp. 195-198). Lisboa, Portugal: Edições 70.