Neste artigo, Patrícia Chanely analisa as produções poéticas de Jorge de Sena e Luís Quintais relativas à interlocução poesia e música, tomando por base os livros Arte de música (1968), de Sena, e Depois da música (2013), de Quintais. Além disso, a autora ainda explora como esses poetas se integram numa linhagem, iniciada no Simbolismo, que busca refletir sobre os diversos pontos de contato entre as duas artes, tanto em seu caráter técnico como no aspecto abstrato.
Patrícia Chanely Silva Ricarte
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Em memória do Júnior, amado irmão.
Faz parte da tradição moderna da poesia uma relação crítica com a música que vai desde a ênfase nas potencialidades sonoras da linguagem, a partir do cultivo de modulações, assonâncias e aliterações, até à exploração do poder sugestivo de uma arte altamente provocadora da imaginação. Anna Balakian (2007), em seu ensaio acerca do Simbolismo francês, destaca o papel da música como um dos tópicos centrais da poética de Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé e Paul Verlaine, e chama a atenção para os diferentes modos de concepção da poesia que revelam, nesses três poetas, um tipo específico de aprendizado que eles foram buscar, sobretudo, na arte de Richard Wagner. Segundo a autora, enquanto Baudelaire e Mallarmé priorizam o aspecto intelectual da poesia – como “um êxtase feito de enlevo e conhecimento”, para o primeiro, e como um tipo de experiência que nos libera da compreensão lógica, para o segundo – , Verlaine, por sua vez, aposta nas associações de combinações de palavras e na recorrência de sons que se prestam como música aos ouvidos. Em Mallarmé, aliás, a música é tomada em seu aspecto composicional, como arte do cálculo, cujos elementos e procedimentos constitutivos – temas, variações, orquestração sinfônica da frase, pausas etc. – a poesia deveria buscar uma analogia.
A meu ver, encontramos esse princípio composicional da poesia nas duas obras que formam o corpus deste estudo: Arte de música, publicada por Jorge de Sena em 1968, e Depois da música, trazida a lume em 2013 por Luís Quintais. Trata-se de dois livros que têm a arte musical não apenas como tema central, mas como principal elemento estruturante de seu projeto poético e editorial, haja vista o modo sistemático como a referência a composições musicais e a artistas da música participa da organização de ambas as coletâneas. Nesse sentido, merece destaque a experiência de audição, que, nos dois casos, é assumida como etapa fundamental da formação poética do escritor e, portanto, em seu caráter eminentemente estético, reflexivo e criativo.
1 (Re)escrever a música
No contexto artístico em causa, a condição de posteridade da poesia em relação à música é estabelecida por uma cena de escrita em que o poeta-ouvinte se dispõe a uma espécie de (re)escritura, como se pode observar no poema “‘La Cathédrale Engloutie’, de Claude Débussy”, que abre a coletânea poética de Jorge de Sena, e que se refere à interessante transformação que a audição da composição homônima do músico francês, um dos principais representantes do estilo impressionista, teria provocado no poeta português:
Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart,
[…]
Um dia, no rádio Pilot da minha Avó, ouvi
uma série de acordes aquáticos, que os pedais faziam pensativos,
mas cujas dissonâncias eram a imagem tremulante
daquelas fendas ténues que na vida,
na minha e na dos outros, ou havia ou faltavam.
Foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos,
os cânticos, e o eco das abóbadas, e ver as altas torres
sobre que as ondas glaucas se espumavam tranquilas.
Nas naves povoadas de limos e de anémonas, vi que perpassavam
almas penadas como as do Marão e que eu temia
em todos os estalidos e cantos escuros da casa.
Ante um caderno, tentei dizer tudo isso. Mas
só a música que comprei e estudei ao piano mo ensinou
mas sem palavras. Escrevi. Como o vaso da China,
pomposo e com dragões em relevo, que havia na sala,
e que uma criada ao espanejar partiu,
e dele saíram lixo e papéis velhos lá caídos,
as fissuras da vida abriram-se-me para sempre,
ainda que o sentido de muitas eu só entendesse mais tarde.
(SENA, 1978, p. 171-172)
Trata-se de um processo subjetivo de metamorfose, detonado pela escuta sensível da obra musical, que interfere, inclusive, na forma como o ouvinte passa a conceber e, finalmente, compreender a poesia, assumindo uma posição fundamental entre os elementos de ordem afetiva que marcam a formação, a um só tempo consciente e inconsciente, do poeta. A obra de Débussy é, para Sena, uma “música literata e fascinante”, responsável pela criação do seu próprio ser-poeta:
Passei a ser esta soma teimosa do que não existe:
exigência, anseio, dúvida, e gosto
de impor aos outros a visão profunda,
não a visão que eles fingem,
mas a visão que recusam:
esse lixo do mundo e papéis velhos
que sai dum jarrão exótico que a criada partiu,
como a catedral se iria em acordes que ficam
na memória das coisas como um livro infantil
de lendas de outras terras que não são a minha”
(SENA, 1978, p. 172)
A composição de Débussy, que evoca a lenda bretã da catedral de Ys, misteriosamente submersa no mar, ensina a enxergar poeticamente, mas a partir de uma linguagem imprecisa, que se dá sem palavras. De acordo com Luciana Salles (2008, p. 263), a partir desse mito, este poema é responsável por fundar uma nova poética na obra seniana, em que “Arte de música se torna um livro inaugural, instaurador de uma nova forma de compreensão das linguagens verbal e musical”. Quanto ao gesto de escrever em torno da impressão que a música suscita em quem a ouve e por ela é afetado, é forçoso dizer que, no poema em questão, este já nasce como um ato crítico ou, melhor dizendo, em crise. Nessa perspectiva, salienta-se o desbaratamento da poesia escrita – “esta desgraça impotente de actuar no mundo” (SENA, 1978, p. 172) – em relação à música. Assim, enquanto a música nada diz mas tudo faz, a poesia caracteriza-se pela debilidade da palavra.
Luís Quintais, por sua vez, explora, em Depois da música, as virtualidades poéticas, em sentido crítico, do gesto de escuta musical. O poema em prosa homônimo a este livro de 2013 diz o seguinte:
Depois da música, a poesia será escrita como se tingida por inegociáveis medos. Debruçou-se sobre a mesa, sobre o arquivo, sobre o mapa da sua morte, escutou o rumor de um mar espesso, sem mecânica. Saiu pela porta sem porta da história e voltou ao terreno da biografia. “A música acabou”, escreveu, “a história jaz sepultada, sem herói civilizador”. Tudo agoniza, agonizará a partir desse ontem. Um plasma queima o sangue por dentro, e é suja a noite, suja de um azul ameaçador. Debruçou-se sobre a mesa. Os prédios estremeciam como uma pele estremecente. A mesa era negra, como fora o quadro riscado. Dedicado, perseguia um desígnio distante, talvez apagado no chão móvel da página. (QUINTAIS, 2013, p. 8)
O gesto da escrita, portanto, constitui-se como algo póstumo à ideia de música e de história. Ou, melhor dizendo, conforme as palavras do poema, a cena de escrita refuta a ideia de música como história (história da poesia?) e elege a ideia de poema como biografia. Eis o primeiro passo para que tal gesto opere como uma espécie de mal de arquivo, ou seja, como possibilidade de mobilização do arquivo, o qual deixa de ser algo fixo e congelado, voltado apenas para o passado. Nesse viés, a relação da escrita poética com o arquivo musical ou histórico caracteriza-se por uma interferência marcada pela destruição e pela perda, isto é, pela “pulsão de morte”, na acepção de Jacques Derrida (2001). Em sua leitura da obra freudiana, Derrida (2001, p. 21) sublinha o seguinte sobre tal pulsão:
Ela trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar mas também com vistas a apagar seus ‘próprios’ traços […]. Ela devora seu arquivo, antes mesmo de tê-lo produzido externamente. Esta pulsão, portanto, parece não apenas anárquica, anarcôntica (não nos esqueçamos que a pulsão de morte, por mais originária que seja, não é um princípio, como o são o princípio do prazer e o princípio de realidade): a pulsão de morte é, acima de tudo, anarquívica, poderíamos dizer, arquiviolítica. Sempre foi, por vocação, silenciosa, destruidora do arquivo.
Na medida em que o mal de arquivo coloca em relevo a virtualidade do arquivo, permitindo que ele seja reiterado infinitamente, pode-se afirmar que, para Quintais, a poesia desenvolvida a partir de uma tal concepção tem a capacidade de tornar mais vivo e dinâmico o acervo musical sobre o qual se debruça. Para tanto, o poeta mantém diante de tal acervo uma postura que ultrapassa o mero diálogo, visto que opera sobre ele uma intervenção efetiva e pouco reverente, por meio do risco ou rasura. Em outro poema do mesmo livro, “Lembrando Rowland S. Howard”, em referência ao músico australiano da vertente pós-punk, morto em 2009, Quintais, à semelhança de Sena, no poema em torno da composição de Débussy, questiona o gesto póstumo e elegíaco de escrever a obra: “Como se escreve agora / uma canção?” E, para tal problema, o poeta apresenta a proposta da biografia poética, com poemas que, como este, revisitam acontecimentos da vida de artistas da música, como modo indireto e marginal (“nas margens da história”) de remeter-se às obras alheias com que dialoga em Depois da música.
2 Elevados ao puro ritmo
Ademais, tanto em Sena quanto em Quintais, o cotejo com a música, baseado na experiência da escuta, representa, para o poeta, uma lição, em nada banal, sobre o ritmo como elemento constitutivo e distintivo da poesia. No poema “Bach: Variações Goldberg”, de Sena, referente à famosa série do músico do período barroco alemão, enfatiza-se a concepção mallarmeana da música como linguagem depurada de sentidos e como obra engenhosamente construída pelo cálculo:
A música é só música, eu sei. Não há
outros termos em que falar dela a não ser que
ela mesma seja menos que si mesma. Mas
o caso é que falar de música em tais termos
é como descrever um quadro em cores e formas e volumes, sem
mostrá-lo ou sem sequer havê-lo visto uma única vez.
Vejamo-lo, bem sei, calados, vendo. E se a música
for música, ouçamo-la e mais nada. No entanto,
nenhum silêncio recolhido nos persiste além
de alguns minutos. E não dura na memória como
silêncio. Ou se dura, esse silêncio cala
a própria música que adora. Porque a música
não é silêncio mas silêncio que
anuncia ou prenuncia o som e o ritmo.
Se os sons, porém, não são de devaneio,
e sim a inteligência que no abstracto busca
ad infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas;
se tudo se organiza como a variada imagem
de uma ideia despojada de sentido;
se tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos
que os grupos, e os grandes números, e as proporções
conhecem necessários; se tudo repercute como
em cânones cada vez mais complexos que não desenvolvem
um raciocínio mas o transformam de um si mesmo em si;
se tudo se acumula menos como som que como pedras
esculpidas em volutas brancas e douradas cujos
recantos de sombra são um trompe-l’oeil
para que elas mais sejam em paredes curvas;
se uma alegria é força de viver e de inventar e de
bater nas teclas em cascatas de ordem;
e se tudo existiu na música para tal triunfo
e dele descende tudo o que de arquitectura
possa existir em notas sem sentido – COMO
não proclamar que essa grandeza imensa
não se comove com íntimos segredos (mesmo implica
que não haja segredo em nada que se faça
a não ser o espanto de fazer-se aquilo),
é como que uma cúpula de som dentro da qual
possamos ter consciência de que o homem é, por vezes,
maior do que si mesmo.
(SENA, 1978, p. 176-177)
Com efeito, a analogia ou correlação entre poesia e música não mais se verifica, na contemporaneidade, pelo recurso ao metro, mas pelo princípio composicional das “combinações até ao infinito”. Isto é o que estabelece a concepção moderna, segundo a qual, é através do conceito mais amplo de ritmo, ao incorporar a relação entre o som e o silêncio, que a poesia pode aproximar-se das noções musicais. Destaca-se, nesse sentido, a grandeza “arquitetônica” da obra de Bach, que, conforme os versos citados, assemelha-se ao templo barroco, como “cúpula de som”. Todavia, neste poema de Sena, tal preceito é confrontado por uma relevante provocação em torno da ideia de abstração da música (e, por tabela, também de certa poesia vanguardista do século XX), ao se colocar em xeque o hiato entre as notas e o sentido. Desta feita, a música bachiana, a despeito de sua grandeza monumental e de sua sofisticação formal, nas notas esculpidas como pedras, consiste em uma invenção que, embora abstrata em termos formais, é responsável pela transformação subjetiva do homem, numa experiência imersiva em que o real e o virtual tornam-se idênticos e em que o ouvinte torna-se música:
Será que alguma vez, senão aqui,
aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto
de real e virtual serem idênticos, e de nós
não sermos mais o quem que ouve, mas quem é? A ponto de
nós termos sido música somente?
(SENA, 1978, p. 178, grifos do autor)
Neste ponto, Sena formula uma espécie de poética do efeito que tem parentesco com o pêndulo entre som e sentido através do qual Paul Valéry (1999, p. 205), no ensaio “Poesia e pensamento abstrato”, definia a natureza não da música, mas da própria poesia:
Observem […] os efeitos da poesia em vocês mesmos. Acharão que, em cada verso, o significado produzido em vocês, longe de destruir a forma musical comunicada, reclama essa forma. O pêndulo vivo que desceu do som em direção ao sentido tende a subir de novo para o seu ponto de partida sensível, como se o próprio sentido proposto ao seu espírito não encontrasse outra saída, outra expressão, outra resposta além da própria música que o originou.
Ademais, na medida em que a reescritura poética da música em Jorge de Sena coloca em pauta o caráter estético da escuta musical, passível de se transformar em poema tão complexo quanto a própria experiência que ele tenta resgatar, pode-se, a meu ver, pensar o pêndulo de Valéry como imagem dos movimentos do espírito do poeta-ouvinte nessa experiência que, de acordo com o próprio Sena, é marcada pela metamorfose subjetiva operada pela música, como arte detonadora de um processo imaginativo. A esse respeito, cabe ainda ressaltar, com Valéry (2005, p. 205-206), que:
Nosso pêndulo poético vai de nossa sensação em direção a alguma idéia ou a algum sentimento, e volta em direção a alguma lembrança da sensação e à ação virtual que reproduziria essa sensação. Ora, o que é sensação está essencialmente presente. Não há outra definição de presente além da própria sensação, completada talvez pelo impulso de ação que modificaria essa sensação. E, ao contrário, o que é propriamente pensamento, imagem, sentimento é sempre, de alguma maneira, produção de coisas ausentes. A memória é a substância de qualquer pensamento. A previsão e suas tentativas, o desejo, o projeto, o esboço de nossas esperanças, de nossos temores são a principal atividade interna de nossos seres.
O pensamento é, em suma, o trabalho que origina em nós o que não existe, que lhe empresta, queiramos ou não, nossas forças atuais, que nos faz tomar a parte pelo todo, a imagem pela realidade e que nos dá a ilusão de ver, de agir, de suportar, de possuir independentemente de nosso querido velho corpo […].
[…] a tarefa do poeta é nos dar a sensação de união íntima entre a palavra e o espírito.
Contudo, por ser arbitrária a relação entre o significante e o significado na língua, tal tarefa realiza-se por meio não do signo, mas de algo motivado e subjetivo: o ritmo do poema. Ao analisar dois versos de Baudelaire, Valéry (1999, p. 206-207) faz a seguinte explanação sobre a linguagem poética:
Essas palavras agem em nós (pelo menos em alguns de nós) sem ensinar-nos muita coisa. Ensinam-nos talvez que nada têm para ensinar; que exercem pelos mesmos meios, que em geral nos ensinam algo, uma função completamente diferente. Elas agem em nós como um acorde musical. A impressão produzida depende muito da ressonância, do ritmo, do número dessas sílabas, mas resulta também da simples aproximação dos significados. […] o ser momentâneo que fez o verso não conseguiria fazê-lo se estivesse em um estado onde a forma e o conteúdo houvessem sido propostos separadamente a seu espírito. Ao contrário, ele estava em uma fase especial do seu campo de existência psíquica, durante a qual o som e o sentido da palavra adquirem ou mantêm a mesma importância – o que está excluído dos hábitos da linguagem prática, bem como das necessidades da linguagem abstrata.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que as Variações Goldberg, de Bach, exercem sobre o poeta-ouvinte um efeito estético que pode ser tomado como uma lição de poesia, essa arte de combinar voz e pensamento, palavra e silêncio, por meio de um trabalho que é, ao mesmo tempo, de imaginação e de ritmo. Com efeito, no livro de Sena, a música é responsável por criar o que Valéry (1999, p. 207) definia como um “estado raro” de “indivisibilidade do som e do sentido” e que consiste em uma experiência “de modificação íntima em que todas as propriedades de nossa linguagem são indistinta mas harmoniosamente convocadas”, ou seja, o estado propriamente poético.
Em Luís Quintais, a poesia se afirma como pós-histórica e pós-musical, o que, a meu ver, significa a assumência de uma escritura poética que não mais se pauta pela história do ritmo enquanto métrica. Aliás, ao longo de sua obra, este poeta vai gradativamente abandonando a ideia da linguagem como “métrica” e como “mapa”, a partir de uma constante ruptura com as convenções da poesia, conforme patenteia o seguinte trecho de um poema de Duelo, livro publicado em 2004:
[…] o mapa não é a realidade,
e esta enovela-se num largo território
para o qual não há métrica
senão, e apenas, sonho de métrica.
(QUINTAIS, 2004, p. 18)
Nesse sentido, a poesia, desquitada do elemento musical, assume-se como ritmo-discurso, e não como notação. Cabe, portanto, pensar, com base na proposta de Henri Meschonnic (2009), o discurso poético como linguagem sem música, em sentido métrico, ainda que, ao poeta, continue sendo legítimo o expediente da analogia com os procedimentos musicais, como se pode observar no seguinte poema em prosa de Quintais:
As estradas do Luisiana
As estradas do Luisiana foram de novo percorridas pelos infames de guitarra às costas e leves, leves, pela beleza de uma condenação elevados ao puro ritmo. Deus ou o demónio surgiam em cada encruzilhada e os menos talentosos tinham apenas de assumir o erro e a ambição, a futura clausura das almas no buraco fétido onde o mal apodrece, vai apodrecendo já. Desde o início do grito, percutidas foram as estradas sob passos, idas e vindas, até serem a espessa canção, o lamento arrepiado das almas condenadas. Jogava-se o jogo a doze compassos destruídos pela voz e pelo vento, e essa seria a melhor cilada de quem gere palavras e metálicos sons sobre a página do que jamais foi escrito. Riscos que as torrentes enlameadas apagarão para que o meu nome seja, também ele, inscrevível pó nas estradas do Luisiana. (QUINTAIS, 2013, p. 42)
Nesse texto, a música é tomada a partir do recurso à biografia, a escritura da vida, no caso, a lenda em torno do músico norte-americano Robert Johnson, um dos principais responsáveis pela padronização do formato dos compassos do blues, e que, conforme um mito popular, teria feito um pacto com o diabo numa encruzilhada, vindo a tornar-se um mestre da guitarra. Numa leitura alegórica do poema de Quintais, o músico assemelha-se ao poeta contemporâneo, que, pela sua condenação a trilhar um caminho já percorrido por vários outros, é elevado ao “puro ritmo”, único elemento capaz de diferenciação e singularização da arte poética em nossos dias. Entretanto, tal condição não parece ser exclusiva dos poetas de hoje, mas, pelo que diz o poema, é a de todos aqueles que já percorreram as estradas da poesia, essa condenação. A imagem das estradas mil vezes percutidas como “espessa canção” remete à multiplicidade de vozes que permeiam a poesia, tomada, na contemporaneidade, como discurso, ou seja, como um trabalho sobre a prosa do mundo, sobre as “palavras de outrem”.
De fato, tanto Sena quanto Quintais, ao recorrerem ao universo da música, buscam ressaltar a operação rítmica que constitui o papel do sujeito poético sobre a linguagem, inclusive, como modo de constituição da própria identidade ou singularidade de tal sujeito. Nesse sentido, é importante frisar que, em ambos os poetas, ao mesmo tempo em que se abandona a correlação métrica entre poesia e música, procura-se tirar o máximo proveito da analogia rítmica e também do ponto de vista da imaginação (à Baudelaire) que se pode conceber entre essas duas atividades artísticas.
3 Quem tinha assim a morte na sua voz e na vida
Cabe ressaltar, ainda, o fato de ambos os poetas, a despeito de enfatizarem os aspectos composicionais da poesia e da música, empreenderem, cada um a seu modo, uma reflexão acerca da relação entre a música (ou poesia) e a condição humana. No poema “Ouvindo o Quarteto Op. 131, de Beethoven”, Jorge de Sena restabelece o vínculo entre música e palavra e, por conseguinte, entre música e vida, a partir da ideia de que a consciência, em seu estágio “não humano”, ou seja, como inconsciência – pode-se supor – , teria um caráter apenas melódico, e não verbal: “Não é de angústia este rasgar melódico / da consciência antes de criar-se humano?” Contudo, essa melodia pode dotar-se de sentimentos humanos, como a referida “angústia” e a “tristeza”: “Não há então tristeza alguma nesta / vida transformada em puro som, / em homogénea outra realidade?”
Trata-se, para Sena, no referido poema, de questionar a abstração
“irresponsável” da música, arte que ele estabelece como “raiz profunda”
– ou inconsciente, eu diria – da poesia:
Como pode uma coisa que sentimos tão medonha,
tão visionariamente séria e pensativa,
ser irresponsável?
[…]
De que, portanto, vem este triunfo
que se precipita, contraditório, nas arcadas
dos instrumentos conversando essências?
É simples convenção? É artifício?
Silêncio irresponsável?
Se há mistério na grandeza ignota,
e se há grandeza em se criar mistério,
esta música existe para perguntá-lo.
E porque se interroga e não a nós,
ela se justifica e justifica
o próprio interrogar com que se afirma
não quintessência ela, mas raiz profunda
daquilo que será provável ou possível
como consciência, quando houver palavras,
ou quando puramente inúteis forem.
(SENA, 1978, p. 189-190)
Assim, a música de Beethoven revela, em última instância, que a força da poesia está justamente em sua precariedade, ou seja, na oscilação entre o jogo de significantes e os significados existenciais de que se carregam as palavras, o que é reforçado pela estrutura interrogativa do poema.
Além disso, essa história particular da Arte de música composta por Sena mostra, no penúltimo poema disposto na coletânea, intitulado “A Piaf”, como referência à cantora francesa Edith Piaf, que, no caso da canção popular, é a voz, em toda a sua corporeidade, ou seja, como condição biológica da artista, que marca a sua passagem pelo mundo:
Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,
ou docemente lírica e sentimental,
ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do “Ça ira”,
ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos,
dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,
e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado
nas noites desesperadas da carne saudosa que se não conforma
de não ter tido plenamente a carne que a traiu,
esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,
como exactamente a vida que os outros continuam vivendo
ante os olhos que se fazem garganta e palavras
para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham
nesta sombra que se estende luminosa por dentro
das multidões solitárias que teimam em resistir
como melodias valsando suburbanas
nas vielas do amor
e do mundo.
Quem tinha assim a morte na sua voz
e na vida. Quem como ela perdeu
toda a alegria e toda a esperança
é que pode cantar com esta ciência
do desespero de ser-se um ser humano
entre os humanos que o são tão pouco.
(SENA, 1978, p. 211-212)
De acordo com Michel Collot (2015, p. 239),
[o] canto é a inscrição de um ser no mundo inscrito na estrutura e na textura própria da matéria, que é de tal forma organizada que dá existência a organismos capazes não somente de perceber, mas de exprimir sua organização por meio dos órgãos da visão e da voz.
Ao se referir, em seu blogue, a um poema presente em Depois da música como resposta a uma canção interpretada pela cantora de jazz norte-americana Billie Holiday, Quintais faz o seguinte comentário:
É uma canção sobre a barbárie, mas é sobretudo uma canção de luto pelo humano. Esse luto está na voz de Billie Holiday, como nunca esteve na voz de ninguém, nem sequer na voz de Robert Wyatt, que assina uma das mais belas versões. O poema da canção não é sequer exemplar. Algumas das imagens parecem-me mesmo óbvias, demasiado óbvias (senão mesmo forçadas ou artificiosas) para dizer o que a voz de Billie Holiday diz, como nenhuma voz antes, como nenhuma voz depois. Tentei uma tradução. Desisti. Escrevi depois um poema, como resposta. Há sempre um poema que responde. Tem de haver.
A referência aqui é à canção “Strange fruit”, composta em 1936 por Lewis Allan (1903-1986), pseudônimo de Abel Meeropol, na qual se denunciam os linchamentos raciais de negros por enforcamento no Sul dos Estados Unidos. A imagem das vítimas penduradas nos galhos das árvores, sob a metáfora do “fruto estranho”, é uma das mais fortes já escritas e, juntamente com a interpretação de Billie Holiday, que em 1939 passou a cantar essa composição, nascida inicialmente como poema, garantiu à obra de Allan, um ativista político de esquerda, professor da Universidade de Nova Iorque, o posto de “primeiro protesto relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra o racismo”, segundo o crítico musical Leonard Feather (apud LAGO, 2015, p. 47). Eis a letra da canção, com sua versão em português na sequência:
Strange fruit
Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant South,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.
(MARGOLICK, 2012)
Fruta estranha[1]
Árvores do Sul dão fruta estranha;
Folha ou raiz, em sangue se banha;
Corpo de negro balançando, lento;
Fruta pendendo de um galho ao vento.
Cena pastoril do Sul celebrado;
A boca torta e o olho inchado;
Cheiro de magnólia chega e passa;
De repente o odor de carne em brasa.
Eis uma fruta pra que o vento sugue,
Pra que um corvo puxe, pra que a chuva enrugue,
Pra que o Sol resseque, pra que o chão degluta,
Eis uma estranha e amarga fruta.
(MARGOLICK, 2012)
Agora, vejamos a réplica (no sentido de resposta, e não de cópia) escrita por Quintais:
Here is a strange and bitter crop
Estranho fruto é a morte
suportando-se, frágil,
por linha vegetal imperfeita,
na pesada árvore
que não vemos,
que não veremos,
que não queremos ver,
nunca, nunca.
(QUINTAIS, 2013, p. 48)
No poema de Quintais, a remissão indireta ao fato mencionado na canção americana abre a possibilidade de leitura metapoética, a qual pode se verificar por meio do símbolo da árvore, que, na obra deste poeta, participa de um projeto de subversão da tópica ocidental, como se pode notar em outro texto da mesma coletânea:
O tema é a destruição da árvore
esquemática, gráfica.
A que se debruça cúmplice
sobre o sentido unânime
da sua biografia.
(QUINTAIS, 2013, p. 21)
Gesto póstumo, a escritura poética é responsável por um processo abrasivo e também abrasador da tradição poética enquanto árvore genealógica. De todo modo, nesse mesmo gesto, por meio do recurso à biografia, como escritura da vida, a poesia de Quintais, ao estabelecer a música como um de seus subtextos fundamentais, carrega-se de lastro existencial, em função de um recorrente discurso sobre a morte ou finitude – morte dos músicos/artistas, do poeta e, em última instância e simbolicamente falando, da música e da poesia.
Sublinhe-se, ainda, no depoimento de Quintais, publicado em sua página pessoal na internet, o aspecto de intraduzibilidade da canção, em razão da diferença material entre o poema, como mancha gráfica, e a voz de um sujeito específico. A voz é o traço irreproduzível do sujeito porque é o registro de sua existência única neste mundo, de sua passagem pela terra. Nesse sentido, cabe lembrar, ainda com Collot (2015, p. 239-240), que
[…] o homem não é o único ser vivo capaz de cantar. O canto dos pássaros tem sempre fascinado os poetas, que, muitas vezes, o tomam como modelo […]. Sabemos que ele está ligado aos ritmos do dia e das estações, assim como ao movimento dos astros e à definição de um território. É um comportamento indissociavelmente vital e estético. […] É por seu canto, e por um dispositivo análogo a uma mise-en-scène ou a uma mise-en-page que o pássaro traça em torno de si o perímetro no seio do qual ele desdobra suas faculdades expressivas, esse “poder de cantar fora de si” que ele partilha com o poeta lírico. O canto permite a este último criar um espaço transicional entre si e o mundo.
Ao poeta, com efeito, cabe tanto “o ofício de sorrir o fluxo encantado das imagens”, como diria Herberto Helder (2016, p. 72), em “As musas cegas”, quanto a condição de ouvir os “frutos da música” e, diante da beleza que deve então morrer, escolher, “dentro da alegria”, ruína, terra, som, melancolia, como diria ainda outro lírico português: Gastão Cruz (2005, p. 28). A meu ver, é nesse contexto que, de certa forma, podemos situar a questão da música e do canto em Jorge de Sena e Luís Quintais, ou seja, a partir da condição terrestre de uma poesia que se anuncia, a um só tempo, como sopro de vida e como estar humano no mundo.
Referências
BALAKIAN, A. O simbolismo. Trad. José Bonifácio. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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NOTAS:
1 Versão do compositor brasileiro Carlos Rennó.