Complementando e fazendo ecoar nossa edição anterior, aqui trazemos, sob o olhar arguto de Helder Macedo, o conto "A Gra-Canária", de Os Grão-Capitães, onde encontros e desencontros atingem rara densidade e pungência. Promovendo um encontro entre as "ilhas" de Sena e Camões, buscadas num "espelho liso que só reflecte superfícies", Helder Macedo faz da sua pioneira leitura crítica do conto "A Grã-Canária" um texto que perdura como referência incontornável entre os estudos da prosa seniana. O ensaio é aqui reproduzido na íntegra, graças à gentil liberação do autor.
No prefácio de Os Grão-Capitães (a colectânea de contos e novelas que inclui «Grã-Canária»), Jorge de Sena escreve que «o realismo só é definível no plano da imaginação» e que um escritor realista é «um escritor capaz de imaginar a realidade». A transformação qualitativa de realidade factual em realidade imaginada é admiravelmente ilustrada na maneira como o autor organiza estilisticamente os elementos circunstanciais, históricos e autobiográficos que constituem a matéria-prima de «Grã-Canária».
Ao nível do seu realismo imediato, a novela conta uma história brutal de marinheiros e de prostitutas. Mas, entendido o seu realismo no plano da imaginação, é uma fábula moral, uma parábola poética sobre a redenção do mal através do amor.
O narrador de «Grã-Canária» é identificado como um dos cadetes em treino num navio de guerra português durante a fase final da guerra civil de Espanha, quando as Canárias já estavam sob o controle das forças de Franco e Portugal atravessava um período de violenta repressão política na sequência da chamada «revolta dos barcos». Uma avaria mecânica força a paragem do navio no porto de Las Palmas, ocorrência logo transformada pelo comandante português e pelas autoridades espanholas numa afirmação pública da solidariedade entre os dois regimes. Os oficiais e os cadetes são convidados para um almoço num «parador» no alto da serra. Durante o almoço, um padre explica que um prédio grande que viam à distância era a leprosaria onde, juntamente com os leprosos do corpo, estavam também agora os leprosos da alma. E esclarece que os leprosos da alma eram os comunistas, termo genérico para os oponentes derrotados de Franco.
Nessa noite, os cadetes, como típicos marinheiros em porto, vão visitar os prostíbulos locais. O narrador e dois companheiros recusam o primeiro de que tinham o endereço porque o encontraram cheio de ofensiva estridência falangista. Acham prudente abandonar o segundo quando são acusados publicamente de serem «leprosos da alma» por um colega que suspeitavam de informador policial. E instalam-se finalmente num terceiro bordel, para onde os guiou um rapazito que os encontrara vagueando pelas ruas, completamente perdidos. Dois dos cadetes passam lá a noite, o narrador na companhia da irmã mais velha do rapazito que os guiara, uma prostituta ainda adolescente, mais ou menos da sua idade. A juventude em que ele e ela se vêem reflectidos um no outro consegue transformar o profissionalismo artificial do seu encontro na comunhão da descoberta mútua de um desejo reciprocado. Com infantil franqueza, a rapariga conta a sua história: fora violada por um grupo de falangistas no que parecera ter sido o único dia de guerra civil na ilha; o avô republicano fora morto pelos mesmos homens que a violaram e atirado para uma carroça já cheia de cadáveres; os pais — como o narrador logo pressente, numa vertigem de repulsa e de pavor por aquele jovem corpo talvez contaminado e que talvez já tivesse contaminado o seu —, os pais estavam aprisionados na leprosaria onde ela, sempre que podia, se bem que à distância regulamentar, os ia ver. Os dois jovens fazem de novo amor, com desesperada violência e uma crescente compaixão amorosa pela sua partilhada profanação. O erotismo transfigurador deste breve encontro é dramaticamente justaposto com a brutalidade vingativa do episódio final da novela: à partida do navio, na manhã seguinte, o cadete que ficara com o narrador no bordel e a quem ele tinha contado a história da rapariga ataca o colega que suspeitavam de informador e submete-o a uma grotesca violação sexual.
Ao nível da realidade imaginada, o centro semântico da novela é a própria ilha. Como a ilha mágica de Os Lusíadas, é uma Ilha do Amor. Mas Grã-Canária está contaminada pela pestilência de uma ordem social iníqua e situa-se num mundo às avessas em urgente necessidade de regeneração. O comentário que o próprio Jorge de Sena faz, na sua obra crítica, sobre o significado regenerador do episódio da Ilha do Amor n'Os Lusíadas — outra história de marinheiros e de «ninfas» — torna claro que ele é o seu referente implícito, a relação intertextual por sua vez iluminando o plano imaginativo definido pelo realismo factual de «Grã-Canária». Recorde-se que, n'Os Lusíadas, quando Vénus decide preparar uma ilha mágica para receber os marinheiros regressados da aventura, vai pedir a ajuda de Cupido e o encontra a organizar um vasto exército para uma expedição «contra o mundo rebelde» que tinha caído em «erros grandes […] amando cousas que nos foram dadas não para ser amadas, mas usadas» (IX.25). Os erros especificamente condenados por Cupido incluem o desprezo do «bem público» por parte dos governantes e a ganância de todos aqueles que, devendo «à pobreza amor divino, e ao povo caridade, amam somente mandos e riqueza» e que, «simulando justiça e integridade, da feia tirania e de aspereza fazem direito e vã severidade» (IX.27,28). Por justaposição semântica, a ilha de Vénus torna-se no equivalente simbólico da cruzada de Cupido.
Jorge de Sena faz o seguinte comentário sobre esta passagem: «No plano mítico […] a criação, para os nautas, da Ilha dos Amores cor-responde a um momento decisivo na História: a guerra que Amor ia mover ao desconcerto do mundo e cujos prenúncios se manifestam nos "tiros desordenados" dos Cupidos "mal destros". A Ilha é, assim, o restabelecimento da Harmonia, de modo que a consagração e a transformação mítica dos Heróis, que na Ilha e pela Ilha se opera, são, também e sobretudo, a recolocação do Amor, do verdadeiro Amor, como centro da Harmonia do Mundo. A Ilha é uma catarse total, não apenas de todos os recalcamentos, mas das misérias no tempo de Camões e fora dele» (A Estrutura de Os Lusíadas, Lisboa 1970, p. 67). Este comentário poderia igualmente ser aplicado à função da ilha em «Grã-Canária». Acentue-se, no entanto, que a ilha de Jorge de Sena não é simplesmente uma glosa moderna da ilha de Camões, como esta também o não fora de outras ilhas mágicas que na literatura a precederam. Ambos os poetas diversamente contribuíram para a renovada vitalidade de um antigo topos. W. H. Auden analisou o simbolismo do oásis e da ilha afortunada no seu livro sobre a iconografia do mar, The Enchafed Flood, onde escreveu: «A ideia essencial associada à imagem da ilha-jardim não é nem a justiça nem a castidade, mas a inocência; é o paraíso terrestre, onde não há conflito entre desejo natural e dever moral […]». E, mais adiante, acrescenta: «Esta imagem [i. e. a imagem do jardim/oásis ou da ilha afortunada] por sua vez tem duas possibilidades: ou é o verdadeiro paraíso terrestre (sendo nesse caso o lugar onde o herói fatigado temporariamente se retempera na experiência antecipada dos prémios futuros, quando não o próprio objectivo final, o lugar onde a sociedade amada e bem-aventurada o recebe na sua companhia privilegiada) ou é um jardim enfeitiçado, uma ilusão causada pela magia negra para desviar o herói da sua demanda e que, desfeito o encantamento, se revela um deserto de rochas desoladas, um lugar de horror como a ilha de Calipso, o jardim de Klingsor ou a ilha de Vénus» (minha tradução).
Em função deste esquema é de notar que Camões identifica o verdadeiro paraíso terrestre com o erotismo tradicionalmente negativo da ilha de Vénus, a qual n'Os Lusíadas simboliza a força positiva necessária para restaurar a ordem num mundo perverso; e que Sena relaciona a imagem da ilha com a ideia da justiça, significando na transformação do erotismo em amor a redenção dos valores que na ilha haviam sido profanados. Mas enquanto o significado social da camoniana «ilha angélica pintada» depende da sua referenciação mítica, só sendo possível aplicar o que lá se passa a um momento histórico específico como discurso de segundas intenções, a referenciação mítica de «Grã-Canária» deriva, pelo contrário, do pormenorizado realismo concreto de uma narrativa historicamente circunstanciada.
Por exemplo, a entrada matutina do navio português no porto de Las Palmas é tratada como uma ocorrência factual e não como a metafórica «alba» anunciadora do amor em que se torna no contexto da significação totalizante da novela. O mesmo acontece em relação aos outros factos fundamentais que a novela regista e que correspondem aos passos fundamentais de um percurso iniciático: a revelação no alto do monte tem a sua base realística no choque moral e espiritual provocado pela visão de uma leprosaria que efectivamente lá estava e o entendimento do uso político a que efectivamente tinha sido posta. E há mais exemplos: a viagem nocturna em busca de três direcções, das quais só a última é a adequada; o labirinto das ruas estreitas da cidade antiga, onde os três cadetes se perdem; o jovem guia, simultaneamente mensageiro espiritual e «cupido mal destro», que os convence a desistir da última direcção que tinham na lista e que, afinal, era a mesma para onde insistiu em levá-los, apropriadamente na «Calle de las Duenas»; o casamento, como um dos companheiros ironicamente chamou ao encontro do jovem herói com a prostituta adolescente, cujo nome verdadeiro, de virginais associações cristãs, era Assunción, mas que era profissionalmente conhecida por Flora, o nome pagão da licenciosa deusa da Primavera e das flores, ou da renovação cíclica da Natureza, mais poderosa do que Vénus no mito primitivo a que está associada. Nenhum destes momentos arquetipais, situações, encontros, acidentes, números ou nomes emblemáticos são sequer sugeridos pelo autor como os reconhecíveis passos ou sinais simbólicos dessa peregrinação iniciática que o realismo factual da narrativa serve para significar e acentuar. E se o leitor também não pode deixar de relacionar a ilha tiranizada com o microcosmo social do barco, e ambos — quanto mais não fosse pela referência à «revolta dos barcos» — com as equivalentes situações políticas de Espanha e Portugal nesse tempo, ao fazê-lo, embora correctamente, está a seguir o seu próprio entendimento. O autor dá os factos que o leitor poderá entender, como disse Camões em relação aos seus versos, «conforme o amor tiver».
Nem é o leitor convidado a partilhar a intimidade psicológica dos protagonistas da aventura. Sena recusa qualquer espécie de linguagem metafórica, incluindo a do psicologismo. A sua novela é um espelho liso que só reflecte superfícies. Esta opção estilística torna particularmente significativa, por analogia, a sequência em que a rapariga procura inscrever na memória o acaso daquele encontro regenerador observando com minúcia, centímetro a centímetro, a pele do seu jovem amante. E ele, o narrador ostensivo de uma novela escrita num futuro já muito distante, simplesmente reproduz, com minúcia física reciprocada, a memória de como também a viu e de como a viu a vê-lo a si.
Em «Grã-Canária» há só uma metáfora explícita: a que o padre usa para justificar o encarceramento dos republicanos na leprosaria como consequência logicamente correcta da proposição metafórica de que o comunismo é a lepra da alma. Este silogismo é revelado como monstruoso pela oposta sintaxe designativa da narrativa. Porque não é com ideologia que o autor opõe ideologia. É estilisticamente que Jorge de Sena torna claro que a sintaxe do padre — a inversão da ordem de precedência normal entre o factual e o metafórico, o físico e o metafísico, o particular e o geral — é uma perversão lógica cujas consequências são tornadas exemplares no mundo às avessas da sua Ilha do Amor. Ou, como diz no prefácio, «o mal só nasce e só existe de haver uma ideia de bem que, quando imposta, martiriza e mutila o esplendor de existir-se». E isto mesmo que o estilo da novela denuncia e corrige.
E assim como as associações simbólicas e míticas dos estádios da experiência iniciática do narrador de «Grã-Canária» — «a recolocação do amor como centro da harmonia do mundo» — só podem ser entendidas pelo leitor em termos do registo factual dos incidentes externos dessa experiência, assim também a moral abstracta da novela só emerge dos pormenores concretos fornecidos pela narrativa factual. «Verdadeiro poeta» na definição de Marianne Moore, Jorge de Sena é aqui «um literalista da imaginação». Confronta o leitor com «sapos reais em jardins imaginários» e assim realiza essa transformação qualitativa do literal que resulta da justaposição significativa de elementos concretos na realidade imaginada.