III O Ensino
O poema ensina a cair: sentado
“Pode/ pode sentar-se senhora// Eu não sou senhora eu não sou menina/ (…) sento-me que de pé sou um balão vazio// (…) Sento-me/ senhor professor doutor// Eu não sou senhor professor doutor/ minha não-senhora minha não-menina/ e se estou de pé é ilusão de óptica/ eu estou sentado todos nós sentados/ isto é não rígidos não equilibrados”. Estes versos, fora de série, de “Exame”, de Luiza Neto Jorge, explicam à perfeição aquele acima, em epígrafe, de um poema de Jorge de Sena intitulado Vilancete sobre o poema “Ensina a cair” (Luisa Neto Jorge), publicado postumamente em Sequências, 1980. Curioso notar, na linha de consideração acerca da ambiguidade no título do poema sobre a cadeira amarela de Van Gogh, que o poema de Sena para bem citar o título de Luiza devia ser Vilancete sobre “O poema ensina a cair” (Luiza Neto Jorge), ou seja, as aspas deviam estar a partir de poema, indicando não um a mais, mas sim aquele de Luiza chamado “O poema ensina a cair”. Estas considerações, ao invés de corrigirem bobamente a intertextualidade, chamam a atenção para o efeito de reconhecimento na interlocução, i.e., ao tomar o poema de Luiza como mote para o seu vilancete, Sena seleciona o termo que lhe interessa ser glosado: “ensina”. Caso fossem analisados, os poemas teriam muito a ensinar sobre a mordacidade dos poetas, das suas vivências com cátedras e catedráticos e outras catedrais. O motivo de interesse agora, contudo, é insistir que nos diálogos entre professor/aluna e poema/vilancete assiste-se, mais uma vez, à encenação da experiência dum sujeito em luta por uma estatura justa num mundo de representações, o que, noutras palavras, implica dizer em busca de reconhecimento. Parodiando o professor, que se diz sentado como todos nós estamos, embora pareça de pé, poderia propor que estar sentado é o mesmo que estar de pé, pois o que importa é o sentido que se dá ao processo da metamorfose dos corpos como, por exemplo, a não-cadeira de Van Gogh e a não-senhora/não menina de Luiza Neto Jorge, através da teoria do assento na poesia de Sena. Poemas da grandeza de “Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, “Em Creta, com o Minotauro”, “Camões dirige-se aos seus contemporâneos” e outras cadeiras cativas são quase previsíveis no assentamento dessas discussões. Como o épico vai dar em todos os caminhos, dirigimo-nos ao seu encontro em “Camões na Ilha de Moçambique”. A partir da dedicatória a amigos “que me passearam a Ilha de Moçambique”(CDC, PIII), o poema mostra a sua vocação ambulatória na viagem de conhecimento, linguística e propositalmente redonda, ao redor do “passeio descampado ao vento e ao sol”, devido, por um lado, à estrutura organicamente viva e, portanto, mutável da língua, expressa, por exemplo, no tempo dum verbo (e afins) que se quer recorrente (“Camões aqui passou”; “Quando passados nele os Orientes”; “aqui passaram todos”; “Tudo passou aqui”) e, por outro lado, devido às revoluções intestinas num organismo vivo como o corpo humano ( “e versos de soneto perpassam/junto de um cheiro a merda lá na sombra”). Numa palavra, o que espanta é a exacerbação duma coisa que na Cadeira Amarela, “(tabaco ou não?)”, era restos cotidianos do hábito de fumar. “Mas”, agora, nessa peregrinatio ad loca infecta, “num recanto em cócoras marinhas,/ soltando às ninfas que lambiam rochas/ o quanto a fome e a glória da epopeia/ em ti se digeriam. Pendendo para as pedras/ teu membro se lembrava e estremecia/ de recordar na brisa as croias mais as damas”, o maior Poeta da Língua Portuguesa, senhores professores doutores, agacha-se e caga e, em se cagando, excita-se! Num poema de forte memória retro-afetiva como este, o que aos poucos vai-se tornando digno de registro é o sentido de versos que sugerem a existência de multiculturalismo na ilha africana no tempo dos colonizadores: “brancos, negros, indianos, e cristãos,/ e muçulmanos, brâmanes, e ateus./ Europa e África, o Brasil e as Índias./ cruzou-se tudo aqui(…)”. Toda encruzilhada, já o sabemos, é fatal para a interpretação do sujeito na cultura. Na Ilha de Moçambique, numa viagem sintomaticamente descrita como circular, a imagem do Camões que o poeta conduz (ou será por ela conduzida?) chega àquele corte que divide o caminho em dois e o prosseguimento da viagem será uma opção pelo presente como regresso a um passado mitificado e “ancorado” ou como hipótese de ingresso num futuro trabalhado todos os dias. Numa encruzilhada, portanto, o que está em jogo é o tempo; não a ação do tempo, mas sim uma ação sobre (com/contra) o tempo. Real ou imaginário, esse tempo? O do Camões seniano, “em cócoras”, surpreende o nosso primeiro olhar ao ser visto numa imagem, mesmo que realmente desarranjada, desconcertante, pois imobilizada tanto no aspecto cultural como no multicultural, já que o colonialismo mantém a todos na mesma “merda”: “Jazem aqui em lápides perdidas/ os nomes todos dessa gente que,/ como hoje os negros, se chegava às rochas, baixava as calças e largava ao mar/ a mal-cheirosa escória de estar vivo. Não é de bronze, louros na cabeça,/ nem ao escrever parnasos, que te vejo aqui./ Mas num recanto…” Re-canto, sim, de impressão à Cesário Verde, aliás, onde Sena vê a parte alta de Camões – os “louros na cabeça” – nas partes baixas dos negros… E a figura do poeta alevantado das rochas depois de obrar, com a mão no sexo, à portuguesa distraído, como se fosse a espada ou a pena da mão de construir pátria, fita o mar e sonha que a Ilha já não mais dividisse, fosse toda ela de Amores, Única, o Paraíso. Em síntese, o breve engano de sonhar um mundo concertado, logo suspenso, todavia, por quem agora ao mestre “zarolho” (ainda Cesário) ensina “de ver que eram tão poucos os melhores,/ enquanto a caca ia-se na brisa esbelta,/igual ao que se esquece e se lançou de nós.” (Grifo meu). Comparem-se rapidamente estes versos finais do poema àqueles também conclusivos de A Cadeira Amarela, de Van Gogh: “Ao fim de tudo, são só cadeiras o que fica, e um modesto vício/ pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?” (Grifo meu). Por que nesses versos de poemas distintos mantém-se pertinente a idéia de que para Jorge de Sena a poesia, sendo um objeto de cultura, é também um organismo vivo e, por isso, toda a matéria por ele produzida é digna de reconhecimento? Grosseiramente, o que há de comum entre a caca e a tinta, as matérias que, em movimento, exteriorizam as produções de Camões e de Van Gogh? Como o chão da casa onde mora, a cadeira é natureza construída. E, já que, pergunta-se, “são só cadeiras o que fica”, o poeta para Jorge de Sena seja, em síntese, um criador de cadeiras reconhecidamente humi
lde… Há nesse Camões, pobre, de calças arriadas, uma atitude exibicionista, ou um jeito chão de se comportar em poesia? Sobre o voyuerismo do Autor, algo a declarar? Nuns poemas atrás lidos, braços e pernas e costas de pessoas e de cadeiras chegavam a confundir-se eroticamente. Um repertório de corpos sentados, de pé, ajoelhados, levou a perguntar se nessa representação o sujeito seria capaz de decifrar o enigma da sua própria idade. Não é demais lembrar que o móvel deste ensaio é uma cadeira criada da angústia para assistir à noite. E desse Camões “em cócoras” o que se cria? Em Camões na Ilha de Moçambique, o que parece incomodar mas, na verdade, não incomoda é o excesso de realismo sarcástico, anedótico, sobre um corpo pungente e escandalosamente nu, porque nada de valor próprio de seu o obriga, o veste, o abriga. Em Camões na Ilha de Moçambique, o que incomoda é o fato de vê-lo sentado em coisa alguma, dobrado em si mesmo, sem cadeira, “idéias” – e já Camões dirige-se as seus contemporâneos -, “palavras, imagens, metáforas, temas, motivos, símbolos”, pois roubaram-lhe tudo, sobretudo o presente como hipótese de reconhecê-lo de outra forma, num dia 20 de julho de 1972. O que ofende é a estatura anti-épica do herói nacional como se numa fase infantil atrasada a ter prazer com a caca que dedica às ninfas. O que desassossega mesmo para valer, em suma, é a coragem ou a capacidade de saber formular a questão fundamental do texto: vista assim, através da imagem do cantor da “experiência de um povo e de uma língua”, a dissolver-se num mar de excrementos, a derreter-se, “não nos altos céus, mas na caca quotidiana” da sua vivência miserável na Ilha de Moçambique, qual a idade da cultura portuguesa no final do século XX? Deliberamente, para saber formular a pergunta, misturo ao que digo versos de Noções de linguística, E, PIII (logo acima entre aspas), poema em que ouvindo os “filhos a falar inglês entre eles” o poeta considera a vida como um processo de decomposição para além, claro está, dos limites racionais desse lugar-comum, visto que na interlocução que promovo entre a educação dos filhos e a evacuação de Camões há a lição – e como dói – do berço, do “ninho meu paterno”, desde sempre à beira do abismo, antes colonial e, agora, global. No quadro desse que poderia ser considerado drama familiar de personagens mal-aparentados entre Sena e a cultura portuguesa, pois são por demais evidentes as marcas do constrangimento das relações tensas entre a casa e o país – quero dizer, e uma certa idéia de Portugal -, desdobram-se flagrantes de interesse para uma visão mais problematizante da cena. Por exemplo, no que tange à memória familiar como fundamento da visão de Camões de cócoras, como bicho, como negro, vejam-se poemas onde a senhora e o escravo não trocam os assentos: Foi há cem anos em Angola,CS,PIII (“Minha vó,/ sentada na varanda, conversava/ com o chefe cachimbando acocorado.”) e Na igreja dos jesuítas em Luanda,CS, PIII (“Conversa a negra no recanto em sombra/ (…)/ No chão sentada e velha, se abre os braços”). Com a curiosidade já aguçada, leiam-se os versos extremamente importantes de In memoriam de Antero de Quental, pois na exposição à primeira vista menos dessacralizadora acerca do destino cultural do poeta oitocentista em comparação com o do épico renascentista o que está escrito com letras e cores fortes, carregadas de sarcasmo, reverbera, em última instância, a acérrima impressão vinda da audição dos filhos e da visão do bardo “acerca do merdoso mistério do chamado universo.”: “Desta altura vejo o amor, dizia ele,/não foi de mais o desengano e a dor,/ e deu um tiro na cabeça (ou no/ peito, tanto faz), sentado no jardim,/ de modo que, nas fotografias piedosas no local,/ se vê, na parede do convento, o signo/ da Esperança. Isto chama-se ancorar,/ entre hortênsias e malmequeres de jardim provinciano,/para o sentimentalismo da posteridade ansiosa/ de profundidade filosófica na experiência dos poetas,/ se lidos como alívio dos borborigmas morais.” Contrastando com a origem da imagem de Camões “em cócoras” vista através do imaginário e de acordo com uma prática social comum, a imagem de Antero “sentado no jardim” é vista através da reprodução das fotografias do local do seu suicídio. Indo de encontro ao que se “passeou”, ou se passou, na Ilha de Moçambique, agora, no jardim, um Antero sentado para a posteridade entre a ausência do seu corpo morto e a presença “do signo da Esperança” cravada na parede do convento. Assim, estratégica e pervertidamente, nascem os mitos, entre a história dos fatos e as ficções do imaginário. Agachado, Camões perverte como se fizesse um gesto obsceno para quem o vê. Sentado, embora ausente na fotografia, Antero parece zarolhar, digo, piscar um olho para a câmara que o vê. Dois destinos trágicos: um sentado como homem, posando para a História; o outro, feito um animal, quase no chão a contrapelo da História. Camões incomoda, Antero, porém, não comove. É isto exatamente o que os aproxima na diversidade. No fundo, a ausência de Antero na foto, substituído por um emblema de esperança “ancorado” fora do lugar , redobra a presença desse Camões anti-épico ausente no imaginário mítico português. Se centenas de anos os separam, um instrumento poderoso os une: a máquina de santificar poetas, de reproduzir deuses, num flash, a máquina de fazer mitos. No século do progresso a coisa é literal, está “nas fotografias”. Compare-se este caso de visão por meio da fotografia com poemas de Metamorfoses, como “O dançarino de Brunei” e o sobre o Sputnik I. Qual a diferença entre eles e esse sobre Antero? Numa visão rápida, chega a ser desconfortável o elogio do ritmo no dançarino oriental e a crítica ao elogio da rima no poeta português, em que mãos e rabos se metem em grossa discussão de estética cultural: “É de Bornéu e um povo primitivo/ esta figura. Uma elegância tal/ são séculos de humana perfeição/ que gente gera num saber da vida./ Quando será que de ocidente a morte/ virá matar-nos, antes que matemos/ com deuses feitos homens os humanos deuses/ que já tão poucos sobrevivem límpidos/ como este corpo se dançando em si/ ( e as mãos paradas segurando os ares)?”; “Em soneto, com os tercetos rimados ccd eed,/ tudo isto é muito belo, permite longos vomitórios prosaicos/ de – oh que alegria – profissionais unamunos do sentimento trágico/ da vida. E não houve senão senhoras dignas/ que tivessem parido esta gente toda nas alturas/ do gloria in excelsis de onde se vê o amor/ que, parece, não adianta muito. Amor de quê? Aí é que a porca torce o rabo./ O dela e
o dos outros”. O que não há no Antero de Sena é o mesmo que não há no seu Camões: respeito pelo mito, ou melhor, por versões mitificadoras do sujeito e dos seus trabalhos na História. Como disse no início do ensaio, há na poesia de Jorge de Sena a perseguição de ver reconhecido o mundo em que assiste, por meio dos seus veículos intersemióticos, às metamorfoses do tempo e do espaço. Ao que devo, agora, acrescentar consideração de fundamental importância: embora o veja nos museus, mercados e galerias de arte, mesmo que seja reproduzido nas fotos de arte, nas telas e nos cartazes dos cinemas, nos palcos e nos letreiros dos teatros, o objeto artístico ou da cultura material que o leitor-assistente, em Sena, elege como matéria de poema é apreendido na mais profunda intimidade, cultivado por uma fina e firme compreensão da superioridade do espírito e do intelecto humanos. (O que não evita, como se verá, contradições e discussões no futuro diante do gosto do outro e da sua sexualidade). Esta é razão pela qual tanto no poema sobre Antero como no sobre Camões, malgrado a diferença, se veja a mesma nudez quase pornográfica de coisa exposta, literalmente exposta, em praça pública. Se o poema ensina de verdade a cair sentado na realidade, desse Camões descadeirado em Moçambique em termos mais acerbamente parodísticos diria com uma pincelada à Almada (e toque de Zeca Afonso ao fundo): roubaram-lhe deus, roubaram-lhe o diabo, tudo, até a cadeira, e hoje o que, em seu nome, se dão são Cátedras Camões, ó, “cabra/cabrada/cabrões”. Logo, segundo o ensinamento das Noções de linguística, o importante não é estar sentado ou de cócoras “na caca quotidiana de outras” matérias. “E consta que já outros [poemas] foram escritos com outros materiais excretos.” Este assentamento merece continuação. Debrucemo-nos sobre ele, não sem antes dizer que, ao fim e ao cabo, essa excursão na Ilha de Moçambique são excursos do Poeta, do mais camoniano dos poetas portugueses.
IV O Declínio
Sobre esta praia me inclino
Ao leitor, que vai percorrer esta quarta e última estação da minha peregrinatio ad loca poetica seniana, um aviso: não há de ser falsa a impressão de que o que escrevo acerca de “Sobre esta praia…” (1977) deixa-se mover pelo conceito nietzscheano do “eterno retorno”, naquilo que o define: a permanente alternância de contrários. No processo de representação desdobrada em que outra vez me envolvo, é importante notar no subtítulo do livro, “Oito meditações à beira do Pacífico”, o tempo e o espaço de uma biografia. Poucas biografias poéticas na Literatura Portuguesa serão iguais a esta. Na primeira parte do ensaio, A Criação, considero que versos de “Andante” publicados em 1942 terão uma espantosa (con)sequência em versos de “Sobre esta praia…” 35 anos depois. Há entre eles o retorno de corpos que se reconhecem na relação erótica que mantêm com a água como imagem primitiva do conhecimento da diferença entre os sexos. Poemas dos primeiros livros levam à consideração de que nos jogos de sentido entre o crescimento dos corpos humanos e o movimento das coisas naturais estão a raiz da primeira hipótese de reflexão fecunda neste ensaio: segundo uma interpretação de fundo edipiano, reconhecer na postura dos corpos a idade do humano é ter a hipótese da palavra da vida. Esta consideração culmina numa pergunta que quer exprimir a mais insistente vontade de interpretação neste trabalho de leitura: ter olhos para reconhecer na postura dos corpos dos outros as metamorfoses do tempo dá ao sujeito o poder de decifrar o enigma da sua própria idade? É tempo de este ensaio parar e pensar na lógica das suas próprias repetições. Caso houvesse simultaneidade na leitura, seriam lidos aqui a um só tempo versos antigos de “Andante”, “Circunstancial”, “Nocturnos” e os por citar das “Meditações” do livro de 1977, e este ensaio dar-se-ia por satisfeito. Seguindo a sucessão temporal, contudo, recordem-se do primeiro livro passagem já conhecida de Andande: “Soube-me sempre a destino a minha vida.// Ternamente,/ as crianças vêem-se iluminadas dos dois lados,/ e o que é liso acabou.// As crianças nascem com uma coragem que perdem./ As mães provocam-nas em si com uma coragem de carne./ E os homens levam-nas consigo sem as conhecer.” Em Sena há um saber/sabor à beira mar assentado que imaginária e simbolicamente irá ensinando ao seu corpo de poeta errante à declaração de que entre o conhecimento e o não conhecimento da diferença dos sexos é que há de dramaticamente inscrever-se o reconhecimento ou não da sua própria linguagem, da sua escrita: “Sobre esta praia me inclino./ Praias sei:/ Me deitei nelas, fitei nelas, amei nelas/com os olhos pelo menos os deitados corpos/ nos côncavos da areia ou dentre as pedras/desnudos em mostrar-se ou consentir-se/ ou tombar-me intentos como o fogo/ do sol em dardos que se chocam brilham/ em lâminas faíscas de aço róseo e duro./ Do Atlântico ondas rebentam plácidas/ e o delas ruído às vezes tempestade/ que em negras sombras recurvava as águas/ me ouviram não dizer nem conversar/ mais do que os gestos de tocar e ter/ na tépida memória as flutuantes curvas/ de ancas e torsos, negridão de pelos,/ olhos cemicerrados, boca entreaberta,/pernas e braços se alongando em dedos./ Aqui é um outro oceano./ Um outro tempo.” (Grifos meus). Tão longa quanto necessária, a citação do movimento inicial da “I Meditação” desvela o que interessa à leitura: trata-se de um poema sobre uns poemas antigos. Inclinando-se sobre o presente, o poeta volta-se logo na direção do passado para dele retornar ao ponto de partida com um assentamento sobre a mudança no tempo e nas pessoas ou, mais precisamente, com uma visão perturbada e perturbadora de “deitados corpos” . Numa palavra: do Sena Pacífico que retorna ao Sena Atlântico insiste a memória de uma experiência erótica do masculino com o feminino, em que pelo menos na passividade do sujeito como observador (voyeur) ou na mais do que atividade amorosa não se confundiam o que se identifica como o próprio de homem e de mulher, o princípio diferenciador de cada sexo ou, como se lê na “VII Meditação”, “o hábito de ser-se”. Desde o tempo de “Andante”, “As crianças vêem-se dos dois lados,/e o que era liso acabou”. Mas Andante é também o tempo, e atenção!, da revelação de que os homens levam as crianças consigo sem as conhecer. No Sena Atlântico de volta ao Sena Pacífico assistem-se às que talvez sejam em toda a sua obra poética as mais deslumbradas e deslumbrantes impressões sobre outros corpos, um corpo que faltava à lógica deste ensaio: “Miro dois vultos na silente praia/ pousada rente à escarpa recortada abrupta/ que só trechos de areia lhes consente:/dois corpos lado a lado como espadas frias./ (…)/ é um outro oceano, um outro tempo em outro/diverso em gente organizado mundo./ Ambíguos corpos, sexos vacilantes”. A meu ver, sem nenhum estranhamento nesses vultos deitados, construídos com um verbo de sopro camoniano, mas já na forja do sentimento trágico nietzscheano em que trágica é a contradição entre a “vontade de potência” voltada para o futuro e o “eterno retorno” que transforma o futuro em repetições, a meu ver, repito, há os sinais de fogo de tudo o que em Sena mais se odeia: a reificação das relações humanas quando subjugadas à mitificação e à deificação que fazem do amor um ato de destruição, um culto da morte. E eu, que me sei leitor peregrino nessa praia, recolho, paciente e entusiasticamente, versos de poemas passados para que se juntem aos que aqui se lêem em busca de compreensão. “Soube-me sempre a destino a minha vida”, “Praias sei”, “Conheço o sal”. Uma sabedoria, se não feliz, pelo menos segura num tempo em que a praia atlântica era a metáfora perfeita do lugar-em-casa onde no outro se reconhecia a própria identidade de ser amante e sujeito de escrita ou, para dizer com Maria Gabriela Llansol, se reconhecia a “causa amante”: Vês, meu amor, aqui me sento à beira/ da tua voz de oceano onde sussurra o vento…/E o seu sussurro silva em tua voz.// Que esparso continente nessa praia imensa!/ (…) Ó meu amor, eu estou aqui, não vês?/ Sussurra um pouco mais para que as rochas cantem.(“Vês, meu amor…”,VP); Estendo as mãos/eternamente as minhas mãos/ e toco a realidade sem acreditar nela.//Há casos de que as mãos não perdem a luminosidade.// De mim converso as mãos erguidas em redor do teu rosto,/ e do teu rosto a praia extensa que o vento alisou para sempre.// Não há pegadas senão o ruído das ondas. (Exame, CT, PI); Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro/ e principio a escrever como se escrever fosse respirar/ o amor que não se esvai enquanto os corp
os sabem/ de um caminho sem nada para o regresso da vida. (Os trabalhos e os dias, CT, PI); Sentemo-nos nas coisas como o peixe dourado/pousa tão delicadamente no aquário.//(…) ele apenas pousa por não ser de abismo/ e, se vivesse no mar, viria até à praia,/a uma praia dentro de recifes onde o mar quebrasse/ e na orla fosse límpido o descer da areia.// Estou a vê-lo encantado com a areia no ventre/ e um murmúrio indistinto junto dos opérculos.//Se te inclinares sobre o meu ombro, vê-lo-ás também. (“Sentemo-nos nas coisas…”, VP). Imagens de um amor feliz a dar, a pedir, a beber água, não há dúvida (versos de Eugénio de Andrade, à porta, querem assento, não os deixo entrar), ou talvez dissesse imagens de um amor com sabor só de experiências feito. O medo, porém, existe: Não é de um medo enorme que ressurge a vida? (Andante, P, PI). O Poema sobre um poema antigo, de raízes mítico-culturais, desde sempre sabe-o: “Soube-me sempre a destino a minha vida”./E soube – é um gosto que não tens pensando,/ um gosto que virá dos teus dois seios,/ se do teu ventre nascer a tempestade/ e a paz e o tempo e um novo olhar no mundo./ Comigo, não. Tudo acontece ou passa;/ (…) Vem, meu amor, vem, que a felicidade,/ não a procuro, que a também roubava/como se teu não fosse! É este o mundo!/ Não olhes, meu amor, deixa-o ficar/ rindo sozinho de não ser guiado!…/ Não olhes para trás! Não olhes, que te perco! (PF, PI). Talvez esses versos já se persigam demais – são as pedras do caminho numa leitura peregrina -, mesmo assim gostaria de, antes de voltar à praia pacífica (!), fazer consideração fundamental para repensar reflexões anteriores a respeito do sentido de reconhecimento na poética seniana, a partir de um poema de título tão importante como “Metamorfose”, de Coroa da Terra. É um texto que ao concluir desejando “que a solidão possa tornar-se humana” diz outra coisa importante, como da dificuldade de saber-se no intervalo, o vão que separa o sonho alto, expresso numa torre como forma ideal de vida na intimidade, da “margem que as pessoas passam”; “se”, diz o poeta, “eu a soubesse ter…” e, agora digo eu, alcançaria o assento etéreo, um modo de estar para além do limite exterior das coisas, o que talvez seja, diria Casais Monteiro, um vôo sem pássaro dentro ou, em termos rosianos, a terceira margem do rio: “uma luz desce o rio/ gente passa e não sabe/ que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem/ as nuvens não passem/ tão alta tão alta”. Neste ponto quem consultar a biografia do homem Jorge de Sena encontrará contra esse sonho episódios duma verdadeira história trágico-marítima. Avancemos, contudo, na biografia poética, reconhecendo que estes últimos versos nos deixam numa encruzilhada. Sem oportunismos psicanalíticos, regresso a Sena nas praias de Santa Barbara (Hollywood logo ali ao pé) movido pelo desejo de reinterpretar o que ele fita nelas: “Aqui é um outro oceano./ Um outro tempo./ Miro dois vultos na silente praia/ pousada rente à escarpa recortada abrupta/(…)/ dois corpos lado a lado como espadas frias./(…)/Ambíguos corpos, sexos vacilantes.” Guiado pela visão de Sena nas praias do Pacífico, deixo-me passear de volta a “Camões na Ilha de Moçambique”: “Depois, aliviado, tu subias/ aos baluartes e fitando as águas/ sonhavas de outra Ilha, a Ilha única,/ enquanto a mão se te pousava lusa,/ em franca distracção, no que te era a pátria/ por ser a ponta da semente dela.” Se os reinterpreto lado a lado, o olhar de um poeta que interpreta o do outro e ao próprio olhar interpreta, é porque entre o que se vê há uma repetição significante: Camões agora é visto inteiro, levantado das rochas, fitando a praia, entre a “vontade de potência”, no sexo que acaricia como espada que procria, e o “eterno retorno” no desejo da unidade utópica; já os “dois vultos” fitos de cima são imobilizados por tudo o que em Camões é inteireza e desejo de mudança, quer pela unidade na ambiguidade (“cadáver”), quer pelos corpos assexuados “como espadas frias”. Na poética seniana, reflexões acerca do ponto de vista exigem permanente olho vivo. Neste passo da leitura, uma informação é fundamental no desenvolvimento da comparação entre os dois poemas. Tanto Camões em Moçambique quanto Sena no Pacífico têm a mesma perspectiva erótica do objeto em que eles literalmente quase se deitam a meditar: “Sobre esta praia me inclino./ Praias sei:/ Me deitei nelas”; “Pendendo para as pedras/ teu membro se lembrava e estremecia”. No fundo, o que está em questão é a sexualidade (e não tematizações específicas sobre a homossexualidade ou a bissexualidade) como matéria de meditação entre o conhecimento da vivência pessoal e a observação da experiência do outro. E, como sabemos, em Sena a questão é de reconhecimento. Por mais que tenha observado a representação desdobrada como reveladora de oposições complementares, nesta altura da análise talvez uma nova hipótese de leitura se enuncie no que respeita à dificuldade, há pouco referida, de o poeta reconhecer-se no intervalo. As tensões entre opostos em Sena inteligentemente discutidas ao longo da obra têm aqui, “à beira do Pacífico”, a força de um enigma que transgride a angústia que está na origem de uma cadeira para assistir à noite. Noite antiga assistida como hipótese de salvação para um sentimento de amor idêntico num mundo de mudanças certas sustentado pela confiança no poder de criação da palavra poética que, entretanto, anos mais tarde, em praias de assombro, de frente para o “diverso em gente organizado mundo” (I) tem medo da queda. Natural e lentamente, no que acabo de dizer, a citação do II fragmento de “Nocturnos” vem chegando ao fim: “Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite.//E a noite que é como alguém que desce,/ cheio de confiança,/os degraus de uma escada própria interminável/ – os degraus serão sempre os mesmos,/nunca haverá outros degraus no fundo.” As evidências do rigor estrutural na poética de Sena impressionam. Por isso, não vou me deter no esclarecimento do que claro está: a interlocução contrastante entre o II fragmento dum poema antigo e os versos de abertura das “Meditações”, mostrando as mudanças que o tempo faz, “no fundo”. No Pacífico, Jorge de Sena enfrenta o seu Adamastor. (“Quem és tu? Que esse estupendo/ Corpo, certo, me tem maravilhado!”, Lus.,V,49). Este enunciado com certeza provoca discussões e mantém mais viva a interlocução entre os poemas. A máquina de ler rimas e sobretudo a de fazer mitos, sarcasticamente demolidas no “In Memoriam de Antero de Quental” (cujos primeiros versos atingem agora uma tragicidade quase insuportável: “Desta
altura vejo o amor, dizia ele,/ não foi de mais o desencanto e a dor,/ e deu depois um tiro na cabeça”), de repente se erguem com o poder das coisas extraordinárias: “Se aqui nasceram deuses, nada resta deles/ senão a luz mortal de corpos como máquinas/ de um sexo que se odeia no prazer que tenha/ e mais é de ódio ao ver-se desejado”. Não a dúvida sobre a permanência ou não de deuses no presente, mas sim a curiosidade de saber se naqueles vultos crepusculares ao sol, agora três (sem a volúpia da mulher, do marido e do amante que “se balouçam nessa vertigem”, no poema de Metamorfoses sobre o quadro de Fragonard), é possível identificar um outro e antiquíssimo conceito de um amor mais concertado, uma outra e mais ardente noção de metamorfose é o que leva o poeta a perguntar-se a si mesmo à beira do Pacífico: “São, como deuses, animais sem cio?/Ou são, como animais, humanos que se aceitam?/Ela é de quem? De um deles só, dos dois?/ Um deles será dela mas também do outro?/ Será cada um dos três dos outros dois?/ Ambos os machos serão fêmeas do outro?/ Ou só um deles? Qual dos dois? O que sentado se recosta? O que deitado aceita contra o seu o corpo recostado? (II) Nem uma outra leitura mais peregrina do que a minha terá a resposta para essas perguntas! Aqui, todavia, de direito considero: sendo a cadeira, de acordo com a teoria do assento defendida, a metáfora estruturante da poesia de Jorge de Sena, sendo a imagem do homem sentado uma forma de reconhecimento, sendo o reconhecimento não um termo conciliador entre conhecimento e não-conhecimento, mas sim a consequência de um trabalho de transformação do cotidiano num objeto artístico e material novo, levando tudo isso em consideração, em suma, levanto a última hipótese de leitura deste ensaio: o que hoje se impõe ao Poeta Jorge de Sena nas praias de Santa Barbara, à beira de “ambíguos corpos, sexos vacilantes”, é a transgressão ou uma nova versão da sentença outrora escrita porque inscrita à beira do corpo – mulher ou objeto – amado: Cria-se do desespero uma cadeira para assistir à noite? Como criá-la? Se esses versos vão sendo escritos à beira de um choque cultural? Ou melhor: à beira de um impacto contracultural. Porque no fundo esses vultos sexualmente indefinidos (“entre uma escarpa que os esconde e o mar”, II), sem a metamorfose dos objetos estéticos e das formas musicais (“Não há metamorfose neste mundo / que mesmo ardendo ao sol se esconde no/ mostrar-se inteiro(…)/ Longe de todos e si mesmo”, VII) ou sem a post-metamorfose dos deuses pagãos ( “ó forma variável e perfeita/ do que há e que não há! ó cariátide!/ Pilar do mundo!”) expostos à cadeira criada para assistir ao século XX nas salas de cultura, demandam outro reconhecimento. De perguntas em série acima, duas rebatem com força no corpo deste ensaio: “Qual dos dois?/ O que sentado se recosta? O que deitado aceita contra o seu o corpo recostado?”. Recorde-se dúvida anterior na cadeira nobre deste ensaio: “(tabaco ou não?)”. Recorde-se a resposta em que digo ser mais importante do que uma duvidosa afirmação verdadeira a hipótese de ali, num resto de “vício” cotidiano, estar a alegoria do que em Sena é representação justa da estatura do homem. Mesmo passagem na qual testemunhava a descoberta de que a cadeira com braços, pernas e costas metaforizava o corpo humano não encontra agora assento nesse corpo sentado que a um corpo deitado se recosta como se cadeira fosse. Por que – com sentido contrário à humildade humana reconhecida na obra de arte soberba: “quadro esplêndido”, “magnífica pintura” – não é no entanto uma cadeira aquilo, não é, não foi, nem mais será cadeira? O que se vê quando se lê um corpo deitado na poesia de Jorge de Sena? Se houver a raiz do desespero, ela pode estar num dos versos fundacionais de Andante – os homens levam as crianças consigo sem as conhecer. Verso em que talvez a angústia fosse exteriorização da fuga de um imaginário sem linguagem porque colado à “carne” das mães e o desespero, a meditação consciente de que o simbólico edipianamente representado no corpo dos homens seja, no fim do caminho, uma linguagem do não-conhecimento. (Agora versos de Carlos de Oliveira é que me pedem cadeira…) Luís de Camões, Antero de Quental, Jorge de Sena, três poetas atlânticos, senhores doutras Ilhas e doutros Amores, próximos na adversidade e na diversidade, devolvem-nos a pergunta: Qual a idade da cultura portuguesa no final do século XX? Com que idade, ou até que idade, um poeta de gênio nos ensina a responder a esta pergunta? Num poema datado de dezembro 4, 1975 (posterior às Meditações, escritas entre setembro e dezembro de 72), Paris, um verão, VP, do qual já foram aqui transcritos os versos em que se reconhecendo no seu homônimo rio o poeta regressa a si mesmo conhecendo-se mais, os versos finais, oportunamente lembrados, repetem o reingresso na perplexidade ou declínio de não se saber reconhecido ao ver na sexualidade dos jovens – entre eles “gente dúbia” e “hippies também” – um modo cada vez mais aberto de exibir uma estranha forma de amar – anônima no recato e pública no ato: “Perto de mim, desnuda-se um casal/de jovens que se alonga nos degraus./ E comem-se com os olhos – é possível/ que tenham feito amor, mas não se viram nunca/ assim ao sol os dois, junto do rio,/ e à volta a grã-cidade em que ambos vivem/ e gente que perpassa e nos seus passos crava/ uns olhos de desejo, inveja ou raiva,/ ou só saudade de ter sido jovem/ num tempo em que tais coisas não havia/ como estar quase nu com tudo à volta./ E os corpos mais se gozam de se verem vistos.” If you’re going to San Francisco, be sure to wear some flowers in your hair, you gonna meet some gentle people there, all across the nation, such a strange vibration, there’s a whole generation with a new explanation, pleople in motion… Os versos do hino hippie dos anos 60 vêm-me à memória cantando tudo o que eles, em nome da contracultura, pretendiam dizer sobre sexo livre, liberdade para as minorias raciais e sexuais, paz e amor. É nessa mesma California in motion que o poeta se confessa, dois anos antes das Meditações, “um ser perplexo”, indiferente ao desafio de se impor uma nova linguagem, de criar da perplexidade um terceiro termo entre a angústia e o desespero para assistir à noite do século XX. O poeta está perplexo, mas ele não está morto. Logo, há a esperança de um manifesto de cultura, ou talvez de um suplemento, um novo Exorcismos, amém, porque, numa palavra, o que está em jogo mais uma vez é uma ação contra o tempo e a favor do reconhecimento de tudo o que no humano é enérgico, orgânico, vivo, não como um simples instrumento de deleite estético, mas sim à semelhança de um dionísio ressurgindo, apolíneo, da sua própria perplexidade. Sim, uma outra cadeira, “uma cadeira humilde a ser essa humildad
e/que lhe rói de dentro o dentro que não há/ senão no nome próprio em que as crianças têm/ uma fé sem limites por que vão crescendo/ à beira da loucura”… “a liberdade inteira no silêncio inteiro/ de humildes assistirmos ao que somos.” (O fim que não acaba, P-S, PI). Que estes versos imediatamente a seguir, portanto, não nos desanimem: “Aos cinquenta anos sou um ser perplexo,/ (…)/ Eu não descendo dos deuses. O corpo dói-me,/ que envelhece. O espírito dói-me de um cansaço físico./As belezas de alma, seja de quem forem, deixaram de interessar-me./ Resta a poesia que me enoja nos outros/ a não ser antigos, limpos agora do esterco/ de terem vivido” (“Aos cinquenta anos…”, 40S). “E a miséria é isso: não imaginar/o nome que transforma a ideia em coisa,/ a coisa que transforma o ser em vida,/a vida que transforma a língua em algo mais/ que o falar por falar.”(A miséria das palavras, PLI, PIII). Será esta a miséria de que aqui se fala?
SENA, O CORVO, A RENA
Lusitanamente falando, algumas ditaduras caem de podre da cadeira.
Isto não são histórias. “Nos primeiros dias de Setembro de 1968, Salazar caíu de uma cadeira, batendo com a cabeça no chão.”. A queda do ditador António de Oliveira Salazar da sua cadeira de balouço faz com que esse móvel doméstica e poeticamente seniano entre para a História de Portugal do século XX. Decadentismo ou Hiper-realismo? O paradoxo das Metamorfoses (cf. O balouço de Fragonard). O indesejado das gentes, o que não cabe em Arte, salta da vida para a morte – ou da realidade para o mito? – na cadeira do tombo que se não sabia a e há tanto desejada. O acidente, que depois de dois anos de paralisia leva o todo poderoso Sr. Prof. Dr. Primeiro Ministro à morte, foi parodiado em prosa e verso. A pequena casa portuguesa – de acordo com a retórica do fascismo, imagem ideal (ou irrealista, segundo Eduardo Lourenço) de um país feliz de viver imobilizado no seu sonho imperial saudosista, à margem duma Europa obrigada questionar o seu passado colonialista -, como se desfamiliarizando os seus objetos, ataca mortalmente o seu dono. O que, noutras palavras, significa a urgência de voltar a olhar com mais atenção o que julgamos domesticado, ou ainda, implica uma nova interpretação da casa no imaginário português. (Mas isso é uma outra história…). Uma pesquisa ao anedotário da queda à época do acontecimento há de mostrar as versões parodísticas do mito da casa no “Estado Novo”, circulando na voz do povo e dos seus poetas, à boca pequena, é claro, pois o sucessor do ex-seminarista de Santa Comba Dão já tinha sido marcialmente assentado no trono. Nesse permanente cruzamento entre a versão oficial e a que se põe à margem dos fatos históricos, a literatura encontra a fonte inesgotável dos recursos expressivos: a oralidade. Nestas considerações o importante é o interesse de fazer notar o que julgo uma versão complementar da anterior: a literatura transformando-se ela mesma em fonte de oralidade, uma corrente de sabedoria popular. Origem de outros mitos – quando associada ao lugar ou senso comum, naturalizando, assim, o cultural em juízos pré-concebidos – a oralidade oriunda do literário é fundamental para o aprofundamento do terceiro enunciado deste ensaio: Jorge de Sena é um enigma. Não figura como mito no imaginário cultural português. Será preciso mitificá-lo? Muitas são as passagens em que nestas reflexões resisti à tentação de sugerir comparações entre a poesia de Sena e a de outros poetas portugueses como, por exemplo, Eugénio de Andrade e Carlos de Oliveira. Por outro lado, me deixei levar pela irresistível interlocução que me obrigavam a fazer entre o que lia e o que escrevia dois mitos da cultura em língua portuguesa. Neste ponto do trabalho, não restam dúvidas de que me refiro a Luís de Camões e Fernando Pessoa. Posso começar por recordar uma sentença de gosto talvez duvidoso, calcada em verso popularíssimo de Mensagem – Sena vale a pena, se a leitura não é pequena. O fantasma verbal pessoano pode ser entrevisto ainda na sugestão da imagem da noite seniana como “antiquíssima e identica”, segundo o seu estilo pessoal. Do verbo épico camoniano, ao sabor da memória, recupero “sábios na escritura!” Por mais que tenha prazer com jogos de palavras, neste ensaio eu não estou brincando infantilmente com versos alheios. Camões e Pessoa são aqui lembrados em prosseguimento à hipótese de Metamorfoses (1963) redefinir, alargando portanto, a comparação aceita como coerente entre Os Lusíadas (1572) e Mensagem (1934). Nos textos camoniano e pessoano o que os aproxima simultaneamente os separa: a interpretação da História de Portugal. Em Camões, no relato de Vasco da Gama ao rei de Melinde desde a história primitiva de Luso e Viriato (139 a.C.) até ao reinado de D. Manuel I (séculos XV e XVI), cujo apogeu é o episódio da Máquina do Mundo na Ilha dos Amores, há uma visão contínua da História. Em Pessoa, o relato da História dividido entre uma descrição mítica da Europa e a exortação para que Portugal ressurja do “nevoeiro” paralisante é de fato uma interpretação que moderniza a precedente, visto que os acontecimentos são selecionados de acordo com o projeto nacionalista e cosmopolita do Autor. Ora, em síntese não redutora, Metamorfoses é o relato sincrônico de uma experiência visual, nacionalista e cosmopolita, que começa numa primitiva “Gazela da Ibéria”, esculpida “no séc. 7 ou 8 a.C.”, e vai terminar numa reflexão sobre “A Morte, O Espaço, A Eternidade”, ilustrada por uma foto da espaçonave Sputnik I, uma das máquinas do mundo da nossa contemporaneidade. Esse conjunto de vinte poemas pode ser o terceiro termo entre o passado antigo e o passado recente. A mim não me cabe agora um trabalho exaustivo de comparação entre os textos. A interlocução possível entre esses poemas é um modo de externar a vontade de saber o lugar da obra seniana no imaginário cultural português. Versos de Camões e de Pessoa hoje circulam como aforismos. Talvez haja verso de Sena a andar meio anônimo entre as gentes. Não é este, contudo, o x do problema. Estas observações em torno do aforismo têm como motivação última responder à pergunta acerca da relação entre Sena e os mitos culturais. Sena não é mito e, a meu ver, não deverá vir a sê-lo. O seu comportamento ruidosa, alegre e sabiamente demolidor o afasta desse elenco decadente. Como se lê no poema “Assim falou Zaratustra, de Richard Strauss”, Arte de Música, em que o poeta se delicia com a história da caixa de peróxido do Sr. Milhões que “tinha era algodão”: “Dêem-me de vez em quando este algodão magnífico,/ em que os heróis, as Salomés, as Electras, o Don Juan, o D. Quixote,/ e mesmo o Zaratustra, essa cambada gloriosa,/ deixa de ser mito para transformar-se/ na ruidosa alegria de compor-se e de ouvir-se música.” Como insisto desde o início deste ensaio, porém, a raiz do enigma assenta-se noutro solo. O desconhecimento que – à exceção de alguns meios universitários, entre os quais é justo reconhecer o trabalho na UFRJ da Profa. Gilda Santos e seus orientandos – , ainda afeta a obra de Sena assemelha-se a um crime de lesa-razão, visto haver nos seus livros o bem sucedido projeto literário de assistir ao século XX. Estudos de caráter comparativista podem aproximá-lo, inteligentemente, de autores considerados imprescindíveis. Camões e Pessoa, por exemplo. Não que Sena, para ser grande, tenha a necessidade de ser assistido por eles. De acordo com pressupostos da estética da recepção, associados a princípios da intertextualidade, pode ocorrer o contrário, aliás. Uma leitura comparativista, como a que sugiro entre Metamorfoses, Os Lusíadas e Mensagem, pode vir a resultar numa interpretação mais inovadora da epop&eacut
e;ia clássica e da sua correspondente modernista. Isto porque, e já o sabemos, o Poeta viu e ouviu intensa e intensivamente os meios que tornam visíveis e audíveis este século. Em Sena, por assinatura, o poema vai a concerto, frequenta museus, sem deixar de ir ao cinema, ao teatro, assistir televisão; é um poema culto e bem informado, cuja assinatura, em síntese, rima com a rena inscrita na primitiva representação do mundo e pousa-lhe na boca um riso de corvo, qual risco em tela amarela de um v de vôo, de Vincent. E aqui está um dado que sem ser original é decisivo para a compreensão do enigma seniano e do seu comportamento anti-mito: os poemas partem em geral de uma provocação exterior, têm quase sempre um interlocutor de fora, são poemas voltados para o circustante, expostos, literalmente dando-se a ver. Mas, indo de encontro ao que poderia supor uma leitura excessivamente preocupada em tudo ver aspectos biográficos de doutrinação ou marcas de um eu ressentido, Jorge de Sena nos seus grandes textos desaponta o interlocutor que espera do poema resposta para os seus dramas pessoais, desconcerta quem o lê como se buscasse a palavra certa para aquilo que sente mas não sabe dizer. Desamparando mais que todos o leitor que tem prazer em sentir que naquilo que ele lê mas não entende reside a essência da poesia, Jorge de Sena, com uma claridade muitas vezes ensurdecedora, deixa mudo o leitor recitador de versos inesquecíveis, e, por isso, como disse nas primeiras páginas, corre o risco de não ser reconhecido como autor fundamental pela intelligentsia mitificadora de alta literatura ou de ser reconhecido pelo lado nem sempre mais interessante de sua ambivalente identidade poética: o eu revoltado. Versos senianos inesquecíveis existem e não são poucos. Eu mesmo sou testemunha de que o verso “Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite” está desde agora e sempre integrado à minha vida de amante da poesia portuguesa. Sena é um poeta lido e reescrito por poetas. Por que, então, esse mal estar, a impressão de que a sua obra não tem o prestígio que de direito lhe é devida. Uma resposta possível tem de, com toda a certeza, considerar os dois mundos em tensão nos poemas. Um, em conflito com a nacionalidade portuguesa da qual o poeta se sente duplamente excluído, quer pela ausência efetiva da pátria, quer pelo boicote que diz ser vítima sua obra de escritor, crítico e professor universitário. O outro, igualmente em turbulência, é o mundo do auto-exílio no estrangeiro. Brasil e Estados Unidos lhe reconhecem o perfil indiscutível de scholar, alguns dos seus maiores poemas são aí escritos. Da experiência nesses países, porém, resultam, por um lado, textos tão sarcásticos como os da sequência América, América, I love you, onde encontro aquela que julgo ser a única imagem escarninha de cadeira no Autor (“Cadeira eléctrica […]/ Sentada na cadeira giratória – gratuitamente/ entregue também na primeira prestação – o cavalheiro pode/ aguardar confiantemente o efeito do Tricotex.”, S) e, por outro lado, textos em que um agudo sentimento de declínio físico é vivenciado como impasse no campo da criação, haja vista as Meditações à beira do Pacífico californiano. Oito poemas em que vultos estranhos, sombrios ao sol, imagens quase surreais do materialismo à americana, capitalizam de forma radical a diferença entre um novo comportamento sexual e uma postura de outros corpos em que, antiga e apaixonadamente observada, se via a idade da vida e do amor humanos. Vista retrospectivamente, a leitura da imagem da cadeira deu-nos a compreensão dum modo muito seniano de estar numa área intermediária da experiência entre o objeto subjetivamente percebido pela metade e o objeto poeticamente criado na sua totalidade: uma cadeira de dobrar, mesmo que não dobre nunca mais, é sempre uma cadeira de dobrar. A representação do objeto total alcança a sua forma absoluta na poetisação da Cadeira amarela de Van Gogh, em que o encontro entre a literatura e a pintura faz uma cadeira transcender à sua natureza de objeto cotidiano e atingir a idéia de cadeira em si. Dentro dos limites do poético há, em síntese, um desdobramento de força estruturante. Lembrando El desdichado de Nerval, o sujeito de uma cadeira solar criada para assistir à noite do espetáculo do mundo encontra o sol negro da melancolia em praias do Pacífico. Qual a sua idade? (“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”) Qual a idade da cultura portuguesa a que ele sempre pertenceu? (“E, afora este mudar-se cada dia,/ outra mudança faz de mór espanto:/ que não se muda já como soía.”) Antes de desenvolvê-la, sintetizo a minha resposta às perguntas, apresentando, de facto, a última hipótese de interpretação deste ensaio: por meio de um processo intratextual, há na poesia de Jorge de Sena uma progressiva reconstrução interna que configura a obra poética como um diálogo tenso entre a vivência pessoal e a experiência social. Em termos sociais, a idade do sujeito seniano soma anos de servidão entre um discurso rigoroso calculado na experiência da expansão marítima, cosmopolita, voltada para fora de casa, e um outro discurso para consumo doméstico, provinciano, calcado na retórica da vivência dos brandos costumes em sociedade e dos amores brevemente infelizes e/ou tragicamente felizes na intimidade. Sena não é um conservador. Nada tem que se lhe pareça. Alguns dos seus últimos poemas, porém, testemunham um desencanto do qual não se pode dissociar um passado de perdas que, não por acaso, vem do mar. É como se o mar desassistisse o seu amante; uma onda de contracultura, maravilha fatal na sua idade, na verdade o perturba, deixando-o perplexo. Alguns poemas são duros de ler. Faltam-lhes “a imagem de uma idéia”, “a forma de um conteúdo”. Uma cadeira. Mas uma cadeira que, agora, fosse ela a assisti-lo noite adentro, no inverno da sua desesperança. Em termos culturais, contudo, a idade do sujeito poético seniano tem a dimensão da mais alta poesia que desde sempre se escreveu. Tem a palavra-chave do enigma. Está de pé. Nós, os seus leitores, somos o século XX que lhe resta. E assistir-lhe à obra é a única maneira que temos de o assistir… “Em Creta, com o Minotauro” (PLI, PIII), quem sabe, onde, talvez, ele lá esteja a tomar, já em paz, o seu café
sem versos e sem vida
sem pátrias e sem espírito,
sem…
Sentado, Poeta, sentado, estou certo. Você bem o merece!
Rio de Janeiro,5/8/98
*Professor Titular de Literatura Portuguesa na Fac. Letras/UFRJ. Pesquisador 1A do CNPq. Ensaio publicado originalmente em SANTOS,Gilda, org. Jorge de Sena em Rotas Entrecruzadas. Lisboa: Cosmos, 1999, p.171-200, e reproduzido em SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Verso com verso. Coimbra: Angelus Novus, 2003, p.257-290