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A Cadeira de Van Gogh com Cachimbo. National Gallery, Londres.

Uma Cadeira para Assistir ao Século XX: reflexões sobre a Poesia de Jorge de Sena (Parte 1)

Para D. Mécia de Sena, este texto que
em Santa Barbara nos assistia

SENA, O MITO, A PENA

Tenho três enunciados para começar estas reflexões sobre a Poesia de Jorge de Sena.

1. Jorge de Sena é fiel e, por isso, descrente.

2. Jorge de Sena é um texto e, por isso, decifrável.

3. Jorge de Sena é um enigma. É preciso mitificá-lo?

Quem se pergunta, como eu me pergunto (amparando-me desde o início em versos do poeta), confessa claramente a vontade de ultrapassar a distância que existe entre o passado de leitor atento da poesia portuguesa contemporânea – sem ser um especialista na obra do Autor de Fidelidade – e este presente em que através dos seus poemas procura desenvolver algumas hipóteses de leitura acerca da recepção do texto literário. Já que o primeiro enunciado implicaria considerações de ordem teológica, que desconheço, acerca do religioso na poesia do Autor e que o segundo se completa no enunciado seguinte, impulsionando dúvidas sobre o literário que me despertam o desejo de conhecimento, fico com a terceira opção formulada, adiantando que, neste final de milênio, a resposta ao enigma Jorge de Sena pode estar na mitologia em declínio, embora resistente, do gênio da raça, o fundador do imaginário cultural dum povo em determinada época da sua história. Evidentemente, no caso de Sena, trata-se do povo português e do Modernismo. Esses brasões da nacionalidade são reconhecidos pelo gozo que proporcionam aos seus defensores ou pelo mal estar que causam aos que não lhes conhecem a obra, sobretudo os que lêem com certa frequência ou os que se dizem informados sobre literatura em geral. Não identificar esses vultos sequer pelo nome vai do desconhecimento cúmplice numa roda de amigos à mistura de vaidade ofendida e ignorância comprometedora num contato com gente fina e, às vezes, culta. Nem tão grande, porém, é o sol, se posto em exame o vexame. A intelligentsia circula livros entre si e os divulga como de valor universal, o que pode significar um não saber arrogante pelo que esteja em língua pátria e uma prisão servil pelo impresso no estrangeiro, sem falar no desdém por tudo que não caiba no seu modelo de campo estético, quase sempre o que consome o grande público dirigido e/ou digerido pelos meios de comunicação, agentes da leitura como passatempo ligeiro ou alienante. Dentro do âmbito acadêmico em que me situo essa discussão tem interesses próprios, visto que pode resultar em matéria para formulação de questões acerca do estatuto social da leitura e estender, o que a mim interessa particularmente, o debate até o ponto em que a idéia da alta literatura tem receptividade no cotidiano do leitor comum e as prováveis e imprevisíveis transformações daí advindas. Caindo no gosto popular, como é usufruído por ele o texto dum autor mitificado como grande? Derrubando uma rígida estética do bom gosto, como é lido pela elite um texto julgado menor? Tais perguntas não são alheias aos múltiplos misteres de quem, “aos cinquenta anos”, pergunta-se a si mesmo: “Sou de Europa ou de América? De Portugal ou Brasil?” O crítico português e o professor universitário brasileiro e americano Jorge de Sena tem sólida bio-bibliografia sobre o assunto. Pode falar de cátedra e cadeira. O poeta de língua portuguesa é matéria de eleição para os fundamentos de reflexões que espero pertinentes a respeito da criação e recepção dos seus textos. Poeta das Metamorfoses e da Arte de Música, Sena viu e ouviu o nosso tempo como ninguém ouviu e viu o espaço em que ainda vivemos. Sem ser tenebroso, é no mínimo paradoxal o véu de invisibilidade que cobre a produção de quem se distingue no panorama da poesia do Modernismo português pela extrema visibilidade com que concebe a literatura como uma forma dinâmica de apreender o mundo, aliando-a às manifestações semióticas que contam as transformações que se vão operando na história das concepções de tempo e espaço: música, escultura, pintura, fotografia, rádio, cinema, televisão. É bem provável que nenhum outro poeta português no seu tempo (Herberto Helder implica outras considerações) tenha como ele percebido que o veículo com que se fixava o testemunho social, com que se criavam mitos em imagens eternas, ia a passos largos, no século XX, mudando-se da pintura e da escultura para os chamados meios de comunicação de massa, a mídia eletrônica. De passarem aves, aviões e outras máquinas, cativa, por meio da percepção sintonizada às formas musicais e aos objetos estéticos, a escrita de Jorge de Sena desenvolve um mecanismo que por dentro a intensifica pois, mais do que reiterar um jogo permanente de contrários nas criações artísticas, esse mecanismo registra, em termos lévi-straussianos, uma representação desdobrada nas oposições complementares, pondo à vista a passagem duplamente contínua e descontínua entre o regresso aos meios de expressão do passado e o progresso que se desdobra nos traços de uma incansável e disciplinada maneira de ver e de ouvir o presente. Não é propriamente a preservação de um gosto clássico. Mais acertadamente, é a construção de um jeito clássico de se dizer moderno e independente numa sociedade que sabe massificada e dependente de modas e de mitos passageiros. Para o autor de Sequências, em arte, experimentalismo das formas e experiência de vida dão voz à resposta pessoal que hoje o identifica: a poética do testemunho própria de uma consciência participante, contrária ao confessional, à culpa, ao auto-flagelo de uma subjetividade dividida, mas, como veremos, com um muito seu e profundo sentido de “humildade”. Liberta de rótulos sociais e culturais, um dos aspectos mais exigentes da poética de Sena é a busca de equilíbrio entre uma poesia narrativa e uma poesia de rigorosas articulações formais, onde o animatógrafo estético do século XX está em cena. Num diálogo contemporâneo ao pensamento de Benjamin, Sena nos informa e nos põe em forma (sobre) o crepúsculo dos deuses. Haveria entre os sentidos dessa mensagem os termos que definissem o enigma que adivinho em sua obra e, assim, como hipótese de trabalho, o enuncio? Jorge de Sena não figura como mito no imaginário cultural português. Será preciso mitificá-lo…? Decifrá-lo, sim, com toda a certeza.
Seria insensato pensar que um livro como Metamorfoses é comparável a Os Lusíadas e a Mensagem? Se interpretado como a vontade de observar o passado como, por exemplo, um itinerário inesgotável de formas de criação; de coisas e casos da vida na aventura da experiência moderna; de outras provocações e, logo, novos trabalhos para o olhar; de diferentes raízes culturais em desenvolvimento; em suma, se interpretada a vontade de ver no passado um processo revolucionário de investigação para o presente, onde o sentido do nacional reside na interação de estruturas dinâmicas, tal comparação (“sábios na escritura!”) ao invés de descabida seria até aconselhável, pois levaria a compreender com mais atualidade aqueles exemplares da mitologia literária portuguesa. A meu ver, a lição a descobrir é a de que a história contemporânea de uma sociedade secular também pode ser contada sem o regresso (“pulha ou pilha”) às grandes personalidades ou aos mitos. Sena vale a pena, se a leitura não é pequena. Essa leitura, sem diminuição de grandezas, pode levar a uma apaixonantemente nova idéia de progresso em que a interdisciplinariedade é a matéria a estudar. Neste texto, vou-me aproximar dessa hipótese de interpretação perseguindo a economia semântica de um verso que aponta para um modo de o sujeito estar convivente com um objeto todo seu, útil, doméstico, e, daí, ver como uma imagem, ao ir-se humanamente desdobrando, materializa um certo princípio do assentamento – uma teoria do assento – do existir entre a vida cotidiana e a arte como a apreensão de que da familiaridade das coisas ao campo estético o que regressa é a consciência de que a linguagem – mesmo quando incompreendida – é o artefato mais duro e durável no intercâmbio dos bens afetivos e da cultura material.

I A Criação

Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite.

Pode-se dizer que Sena assistiu ao século XX de cadeira.
Em “Nocturnos”, quinto poema de Perseguição (1942), primeito livro do Autor, lê-se o verso que serve de epígrafe a esta parte do ensaio. É um verso-meio-refrão, pois abre a segunda sequência do poema, constituída de mais uma estrofe de cinco versos, e é o único verso da VII e última, a encerrar o poema de modo significantemente reiterativo, já que contrasta com as anteriores cuja seção menos extensa, a VI, é uma quadra. É um verso inteligente, (co)movente, que há de revelar-se sobretudo uma chave para o futuro, aquela que me leva agora a propor a existência de uma teoria do assento na poesia de Jorge de Sena. O que faz essa hipótese confortável é o fato de um verso, desde o início da obra, apontar para o testemunho de um modo pessoal de estar, o que não será o sinal de uma postura corporal ou de um posicionamento social excêntricos na adversidade, mas sim o assentamento do que hoje é típico nos poemas senianos: a poesia como ofício dialogante cujo propósito é o de inscrever o sujeito e a sua linguagem como corpos domésticos, historicizados pelas sucessivas transformações materializadas nas criações que tornam visíveis e, portanto, legíveis, o que talvez ainda se dissesse de mais abstrato ou de mais íntimo no humano como, no poema em observação, a angústia sentada numa cadeira criada para assistir à noite do espetáculo do mundo, num cenário neo-barroco ou, considerando a data de publicação do poema, neo-realista de contrastes. Relidos agora, num quadrado bem feito, três dos quatro poemas que antecedem “Nocturnos” já “desenhavam” a figura do poeta sentado ou o quadro da cadeira na poesia de Jorge de Sena. Antes de me deter no poema de abertura de Perseguição, “Arrecadação”, contorno versos de “Deserto” e de “Circunstancial”, onde se lêem respectivamente: “Recusarei aos velhos a braseira -/ foi conquistada muito para nada;// Juntemo-nos à volta da cadeira/ que, nessa beira, nos ficou pregada.” (P, PI) Interessante notar, aqui, a oposição: a proposição rebelde de que cesse um discurso que mantém os velhos sentados num lugar conservador e a invocação para que se reúnam em torno da cadeira, um novo valor em que se assenta o presente; “Nas dobras melancólicas da Terra,/ sentaram-se as crianças derradeiras.// Sentem… Sonham… A pele nasceu com elas!”(P, PI) Agora, o futuro da imagem do desejo a ser perseguido, quer nessas “crianças derradeiras” a tentarem cumprir o seu papel de renovo, quer na variação semântica entre “sentaram-se” e “sentem”, onde se reitera que o devir das formas em poesia reside em insistentes jogos de sentido entre o sensório e o sensível, nos quais se sensualizam o concreto e o abstrato. Falemos de “Arrecadação”. No poema, à roda do fogo, de acordo com a tradição, ouvem-se vozes ou, mais corretamente, pedaços de diálogos, interseccionados por pausas – são muitos os travessões, as reticências -, a conversarem sobre o movimento dos astros no firmamento. Na verdade – e é isto que já põe a poética de Sena em sintonia com o motivo da revolução das formas e dos sistemas por meio da poesia -, são os astros e as estrelas que são conversados, ou seja, que conversam de se dizerem reconhecidos nos discursos das ciências que empurram o mundo para a frente: falam dum homem que um dia lhes descobriu a “idade” e, sobretudo, dum Poeta ter escrito que eles, os astros, andam “no infinito…” Ao jeito antigo, já de tradição benjaminiana, os astros conversam sentados “à lareira e ajeitando a manta nos joelhos aprendem a aquecer-se e riem, riem mansamente…”(P, PI) À maneira clássica, os leitores de Jorge de Sena, como que assentes diante do memorial do humanismo renascentista português, assistem de novo, ao ler a conversação entre astros e estrelas, a um concílio dos deuses mais antigo, em que um contra e todos a favor movem a máquina do mundo do céu para uma terra que tem um mar onde tudo valia a pena. Sena, exilado dos ou nos mais diversos sistemas ao longo da vida, ia, ironicamente, a cada livro escrito, aprendendo o regime do star system… “Soube-me sempre a destino a minha vida./ todo o sal secou no fundo do mar”. Nesse início de viagem poética, Andante é já o poema do testemunho de quem conhece o sal de saber-se português na pele à custa da aliança entre o céu e o mar ou, o que dá no mesmo, do assentamento do céu contra a terra – “Todos nós vimos/ o enrugar-se o céu para assentar na terra.// Viemos e crescemos/ julgando que era extenso um abandono impassível.”; Andante, contudo, é também já o poema de quem, sabendo-se e sentindo-se errante entre caminhos pelo desejo surpreendido na “pele” das crianças (sensibilíssimo tato, apurando-se até o magnífico “Conheço o sal da tua pele seca”), reconhece-se sujeito de um destino mais vasto com um enigma de sabor edipiano: “quando olho, surpreso, a sabedoria dos gestos/com que as crianças começam a sentir-se reais.//As crianças nascem com uma coragem que perdem./As mães provocam-nas em si com uma coragem de carne./ E os homens levam-nas consigo sem as conhecer.” No processo de conhecimento de Jorge de Sena este poema, em que “as crianças começam a sentir-se reais” ( reais de realidade ou duma trágica realeza?) e “vêem-se iluminadas dos dois lados”, terá uma espantosa (con)sequência em “um outro oceano”, em “um outro tempo”, na série Sobre Esta Praia…. Importante adiantar ainda que nesses primeiros poemas há sinais do enigma: ter olhos para reconhecer na postura dos corpos a idade do humano é o mesmo que ter a palavra para a vida. Por ora, note-se que três poemas anteriores a “Andante” mantêm o cuidado na distribuição das cadeiras. Versos de “Cântico” acrescentam um terceiro termo – “consente”- à dualidade “sentaram-se/ sentem”: “consente o braço pousado nas costas da cadeira de palhinha”; “porque” – e estes versos de “Comunhão” parecem uma partilha dos anteriores – “as minhas mãos tremem sozinhas no esforço de parar, /…/ livres de não rodear/ um corpo que não sentem senão lá em cima,/ lá para dentro de quantos ombros se encostem no vazio das cadeiras juntas…”. Mas é no desdobramento da oposição entre a imagem da angústia, digo, da agonia que se vê “dentro de casa” no poema “Cubículo” (“Gente pára curiosa/ ante uma cadeira onde agoniza alguém”) e a da “Felicidade” que dá título a outro poema e nome a um menino voltado para fora, “inconsolável”, diante do mistério das correspondências ( “A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela.// E, como menino que era, achava um grande mistério no seu próprio nome.”) que se há de assistir ao instante da Criaçã
o numa bela variante do verso-quase-refrão: a cadeira que se criou da angústia para assistir à noite senta-se à mesa da Poesia. Bem-vindos à Coroa da Terra!

 

II A Apreendizagem

Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.

Em epígrafe a esta seção, o primeiro e o último versos de “Os trabalhos e Os Dias”, em Coroa da Terra, 1946. Este é um poema cujas linhas devem ser seguidas respeitando-se os sinais já desenhados neste percurso à procura de um sentido para a poética de Jorge de Sena. Afinal – e confesso nunca ter pensado nela nesses termos, se uma cadeira tem costas, braços e pernas, é como se um corpo sentado concretamente numa cadeira fosse, metaforicamente, um corpo sentado em si mesmo. Uma imagem simbólica, que intensifica o papel da representação desdobrada nas oposições complementares dos poemas, parece ter a força das revelações: a cadeira cai em si, logo, a escrita principia. O poeta sentado à mesa a escrever é a consciência em progresso da hipótese amorosa, intelectual, temporal, social, mágica, de que “à medida que” escreve “o mundo inteiro”, os objetos da cultura material e estética que o formam, tudo enfim, cabem no microcosmo de um poema. Visto que a cadeira tem um corpo e um corpo tem cadeiras (o Jorge, brasileiro, de Sena, o sabe), ao objetivo deste ensaio não podem passar despercebidas imagens da escrita do poema como um trabalho de apreendizagem da memória ancestral da construção do mundo: “e desenhei uma rena para a caçar melhor/ e falo da verdade, essa iguaria rara:”. Associar o passado recente da escrita à prática milenária da pintura rupestre corresponde, em última instância, nos poemas de Jorge de Sena, a traçar uma linha dupla – progressiva e regressiva – entre o gosto estético ( “essa iguaria rara”) e o instinto ético (“Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.”), numa palavra, entre a arte e a vida cotidiana. Por isso, ao leitor-espectador não deve ter escapado que, “para quem viu a treva nos intervalos das coisas”, entre a cadeira criada à imagem da angústia e esta, imagem da própria criação em processo de escrita, outros corpos no seu hão de estar inscritos. Uns, solitária (“e tu, nos meus joelhos, assistindo à festa!”), outros, solidariamente, assistidos (“Tanta gente ajoelhando à passagem do tempo/ e tão poucos lutando para lhe abrir caminho!”). Para quem não estiver a fim de perder o seu lugar no avanço da teoria do assento, a atenção a três versos de poemas próximos aos até aqui lidos é importante: “E eu, aqui, de pé, com a morte plantada”, “ergo-me aflito da miséria do mundo”, “e ajoelho triunfante perante coisa alguma”. De uns versos a outros, os termos do enigma regressam em forma de pergunta: ter olhos para reconhecer na postura submissa dos corpos dos outros as metamorfoses do tempo dá ao sujeito o poder de decifrar o enigma da sua própria idade? Versos de “Descerrar” (CT, PI) que repetem, reflexivamente, o terceiro termo já apontado em “Cântico” podem sugerir pistas para respostas: “Cansado, consentir-me-ei./ Nesse dia próximo ou distante,/ quando me sentar, pegará uma das mãos na outra mão/ (…) estarei sorrindo/ ao terminar dizendo que o destino existe…/…/ E então, hei-de ter piedade de mim próprio.”(Grifo meu ). Em face da profissão de fé dum poeta, posso dizer que se vê em exposição um retrato de corpo inteiro do próprio homem: sentado, de pé, ajoelhado e… Reparem na figura nos últimos versos. É a representação do sujeito a assistir-se a si próprio, num quadro tão sentido que o movimento, belíssimo, de uma das mãos pousada na outra, sem deixar de significar a morte, não quer sumariamente dizer que quando duas mãos se encontram é o fim. Pode ser o ensaio do vôo erótico suspenso, arrepiando-se nos versos de Bulício (CT, PI): “Oh olhos verdes cantantes!/ pode um homem morrer sem fechar uns olhos/ pousar as mãos nos braços da cadeira/ acariciar os braços da cadeira”. Pode ser o princípio das metamorfoses na viagem amorosa, uma vontade de transmigrar da inútil paisagem vista no poema, significativamente intitulado, Pintura (CT,PI): “Um casal suspenso desta mão que se estende/ sobre o lago inútil onde me transformo/ na vibração de brisa do reflexo amando…” De passarem aves a fixarem-se renas, na poética das transformações em Sena, as relações de troca entre os objetos materiais e estéticos produzem poemas sobre a “Gazela da Ibéria” (M, PII), sobre “A Morta de Rembrandt” (M, PII), e sobre uma Cadeira em que nessas andanças do poético confortavelmente, espero, me restauro…
Como diria O’Neill, – É A CADEIRA
Desde o primeiro livro, anunciada como objeto extraordinário de poesia, a cadeira, que descubro como metáfora estruturante na arquitetura poética de Jorge de Sena, confirma a idéia de que na obra de um grande escritor há uma estrutura artística rigorosamente tensa e coerente, porque inalienável das suas imagens primárias . “Ah !” – exclama o poeta em “O fim que não acaba”, de Pedra Filosofal (1950) – “como da música se abrem ténues mas/firmes sequências do que vai sendo o mesmo/ que outrora ouvi na mesma vida ansiosa,”; exclama, repetindo-se a si próprio, entre aspas, nessa mesma Pedra Filosofal, ao inscrever verso de “Andante”, em o “Poema sobre um poema antigo”: “Soube-me sempre a destino a minha vida”. Nesta cadeia, em que é um elo nada episódico (segundo ainda o poeta e, repetindo-lhe as palavras, não sei se persigo o poeta ou o crítico de poesia exemplar), será a cadeira “imagem/ de uma ideia, cor de uma lembrança,/ perfume de um desejo, forma de um conceito?” Na figura privilegiada, insisto, como representação do desdobramento de oposições complementares entre os objetos da cultura material e da cultura estética, em Lisboa, no dia 21 de Maio de 59, imprimem-se um nome e uma assinatura de ouro: “A Cadeira Amarela, de Van Gogh”, de Jorge de Sena. A ambiguidade de autoria no título do poema, assim enunciado, já estava refletida na série de perguntas que constitui quase toda a última estrofe do poema sobre o cavaleiro desconhecido, igualmente publicado em Metamorfoses (1963) . Antes das tintas que rosto tinhas? Agora, qual o teu nome? (Pergunto-me eu nessa passagem difícil do ensaio). Na poética de Sena, tanto o artefato cultural quanto a chamada obra de arte, na medida em que resultam da interação entre o olho e a mão, são, reconhecidamente, objeto de poesia. Visto que o trabalho de criação consiste em transformar a matéria-prima num produto, sólido, útil e único, como uma cadeira, por exemplo, tanto o artesão quanto o pintor e o poeta devem ser reconhecidos – e mais uma vez aproximo o pensamento neo-platônico de Sena das idéias de Benjamin acerca do narrador – entre os mestres e os sábios. Magistralmente, de o “Retrato de um Desconhecido”, de autor desconhecido, de Jorge de Sena, à “Cadeira Amarela, de Van Gogh”, de Jorge de Sena, o que a mimese seniana ensina aos seus leitores-espectadores (ou deles exige) é a sabedoria de ver nos títulos desses poemas não a questão do conhecimento ou desconhecimento da autoria, mas sim a autoria como questão de reconhecimento. No fato de ser ou não reconhecido, como destino, estão o bem e o mal derramados. Reconhecimento, aliás, é o título de um dos poemas de Coroa da Terra: “Quero esperar e olhar para que nasça um destino.// Quero que este destino vença o que a humanidade não vence,/ que esteja para a vida como uma criança em frente de outra/- enquanto as duas mães conversam,/ cada criança repara que há outra criança no mundo.” Num jovem cavaleiro de nome duplamente vazio e numa cadeira de autoria duplamente conhecida, com nome e sobrenome, moram o sentido duma velha angústia a assistir à noite. “Quem era? Qual o nome?” Com tintas à Wilde e à Sá-Carneiro (em que escorrem traços sebásticos), dando voz a um auditório de perguntas, do “Mestre” pintor que não reconhecendo o modelo se desconhece, do modelo que não reconhecido pelo “Mestre” não se sabe quem foi nem quem é, está montada a exposição do desconcerto seniano. Quem será pergunto-me eu? Na tradição camoniana de um verso tão terrível como “a mãe ao próprio filho não conheça”, apresentam-se figuras de um quadro poético com contornos biográficos em que mãe-pátria, filhos-expatriados, e irmãos-de-profissão, todos desnaturados, poderiam ver-se confundidos entre “a personagem” do modelo e personalidades espectrais desse auto de (re)conhecimento. “Mas tudo conjectura apenas”, visto que, neste ensaio, os poemas de vínculo mais marcadamente pessoal interessam quando importantes para a coerência dos princípios básicos do texto. Falo aqui de reconhecimento no sentido em que uma memória afetiva ou uma lembrança amorosa reconhecem a pessoa querida ou a coisa amada “pousando um longo olhar de eternidade/ que logo vai aos fumos da memória”. Falo aqui de reconhecimento no sentido em que se manifesta a humildade na grandeza de se ter apreço pelas obras dos grandes Mestres, “gastando-te com elas, nelas vendo-/ -te como em espelho que te sobrevive”. Porque “as coisas não se vêem por metade”, em versos de “O fim” que não acaba, está escrito que devemos perseguir “a liberdade inteira no silêncio inteiro/ de humildes assistirmos ao que somos.”(P-S, PI) Em busca de um significado para a humildade na poesia de Sena, como quem visita um museu de poemas, vejam-se algums versos-guia nessa excursão retro-progressiva: “Consente o braço pousado nas costas da cadeira de palhinha.”(Cântico, P, PI); “Nunca entendi tão perfeitamente as coisas como desde que os homens se deixaram sê-las.”(Os soldados de chumbo e a eternidade, P-S, PI); “Sentemo-nos nas coisas como o peixe dourado/ pousa tão delicadamente no aquário.”( “Sentemo-nos nas coisas…”, VP); “Vês, meu amor, aqui me sento à beira/ da tua voz de oceano onde sussura o vento…/ E o seu sussurro silva em tua voz.”( “Vês, meu amor…”, VP); “(…) Me sento à beira-rio. Sentei-me, antes direi, à beira-rio./ Um rio estranho, porque é meu homónimo,/ e que de tanto vê-lo (e conhecê-lo antigo/ antes de havê-lo visto), não devia sê-lo.” (Paris, um verão, 40S).De um verso a outro, no regresso à surpresa de ser reconhecendo-se, chega-se à “Cadeira amarela de Van Gogh” de Jorge de Sena, forma apurada em que, não sem surpresa, descubro, repetindo palavras do Autor, a representação da “imagem de uma ideia”, da “forma de um conceito”(cf. nota 13) de ser humilde. Sejamos, nós, os humildes e, por isso, discretos . Na primeira estrofe, a descrição de três lugares: o chão onde se acha “uma cadeira rústica, rusticamente empalhada, e amarela”; a cadeira desdobradamente descrita e o que nela, já se vê perguntando, assentado “(tabaco ou não?)”; a assinatura, segundo objeto de interesse ao olhar curiosamente atento, “num caixote baixo”, desenha “o seu nome de corvo”, o primeiro, “Vincent” de batismo, que pode não acompanhar o seu dono ao mercado das artes, um nome de valor doméstico, portanto, pouco conhecido talvez, desses que movem o Poeta. Em termos barrocos, diríamos ter esta estrofe, no “torneado” dos jogos sintático-semânticos, o rigor das grandes formulações contrastivas em que “se avolumam” e se disseminam cores, formas e volumes. A segunda estrofe, ao contrário da anterior, que se distingue pelo predom&iacute
;nio do tempo no presente, regressa nos versos iniciais, de maneira recolectiva, a bichos, pessoas, coisas e cenários de fora, numa palavra, à matéria-prima nobre dos primeiros quadros, para anunciar, como se anuncia a boa nova da chegada de alguém há muito desejado e vindo na “palha de um assento”, a “humildade” que “faltava” nas telas do pintor (e nos poemas do poeta…): uma cadeira amarela. Por isso, no objeto de dúvida, “(tabaco ou não?)”, que esse supostamente pequeno utensílio doméstico mostra, ao invés duma significação possivelmente verdadeira, está a alegoria da outra coisa, aquela que na poética de Sena, há muitos trabalhos e muitos dias, vem-se levantando como a representação justa da estatura do homem, “como sinal de que o pouco já contenta quem deseja tudo.” Pelo paralelismo de conteúdos, leio as terceira e quarta estrofes em conjunto, a partir dos seus primeiros versos: “Não é no entanto uma cadeira aquilo”; “Não é, não foi, nem mais será cadeira”. Um móvel de uso diário com tais dimensões alcança, de acordo com a teoria do assento que penso existir na poesia de Sena, um grau de reconhecimento para além da sua identidade de coisa, conhecidamente, doméstica. Ou seja: ninguém, num mundo civilizado, não conhece ou desconhece uma cadeira, porque uma cadeira é uma coisa conhecível ou irreconhecível como tal. Nem todos, porém, transformam a cadeira num móvel de passagem para o reconhecimento que, como já atrás defini, não é o terceiro termo conciliador na oposição entre conhecimento e desconhecimento, pois tem o significado próprio de fazer com que um binarismo de oposições se reconheça inoperante diante do uso dos seus termos numa relação situacional nova: não é uma cadeira aquilo nem mais será cadeira… “onde a loucura foi piedade em excesso / por conta dos humanos que lá fora passam,/ lá fora riem”… Por obra de uma cadeira, atribuindo a si e ao outro, quer pelo excesso, quer pela escassez (“Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito”), propriedades antagônicas em direções interseccionantes, não como sintoma de excentricidade de um virtuose, mas como testemunho de um profissional consciente, o sujeito espera pelo seu reconhecimento… E esse sujeito – que antes já desenhara “uma rena para a caçar melhor”, em face do riso alheio, – reconhece, na cadeira em que Vincent assina “o seu nome de corvo”, a representação do seu trabalho de transformar a cadeira em matéria de vida e arte, isto é: “apenas o retrato concentrado e claro/ de ter lá estado e ter lá sido quem/ a conheceu de olhá-la como assentar-se/ no quarto exíguo que é só cor sem luz/ e um caixote ao canto, onde assinou Vincent.” A quinta, e última estrofe, de estrutura reiteradamente barroca recolhe e devolve os termos-chave do poema como se fossem pequenas cenas do quadro vistas pela perspectiva de um leitor-espectador por demais envolvido na trama das linhas que, bem sabe ele, não sei bem se as pinta, lê, ou escreve. Depois, uma série de perguntas, em que “perguntando-se a si próprio, por mais perto ter que estar de quem pergunta”, chamando a atenção para o que na obra de Camões lhe foi motivo de interesse, “o valor expressivo da interrogação”, o poeta fecha o poema como se regressasse àquele verso de Nocturnos onde, supostamente, (me) encerrava: “Que cadeira, mesmo, não-cadeira, é humildade?/ Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,/ são só cadeiras o que fica, e um modesto vício/ pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?” Sim! só cadeiras é o que fica, porque esta cadeira criada da angústia para assistir à noite lá estava escrita ( antiquíssima e idêntica, no seu estilo pessoal) há exatos 20 anos, à espera da leitura peregrina. Sim! Não é, não foi, nem mais será cadeira:/ Apenas o retrato concentrado e claro/ de ter lá sido quem/ a conheceu de olhá-la como de assentar-se/ no quarto exíguo que é só cor sem luz/ e um caixote ao canto, onde assinou… JORGE. Cadeira, datado de 18/10/39 (Post-Scriptum II, v.2, 1985) , é o poema em que descubro a cadeira inaugural da teoria do assento na poesia de Jorge de Sena. Como na obra-prima de Metamorfoses, são descritos o lugar onde está “a cadeira baixa,/ no chão do meu quarto”, o assento “deste em ripas,/ a almofada torna-se precisa” e os traços definidores de um sujeito que apreende o sentido do contraditório entre a matéria e o espírito das coisas, seja por meio da postura do corpo entre a forma e o peso dos objetos (“ E eu sento-me lá/ detrás do móvel/ joelhos subidos/ os braços entre o corpo e as pernas”), seja através do desconserto dos utensílios domésticos, pois a cadeira “era de dobrar e é/ mas nunca mais dobrou”; razão de ele sentar-se entre o móvel e o canto onde se encosta a cadeira. Inestimável, portanto, o valor dessa peça. Um verdadeiro achado, é ela, a um só tempo, a representação primitiva da cadeira-não-cadeira e da humildade (o tornar-se preciso o apoio de outros) no imaginário seniano. Em Cadeira ainda assentam-se a idéia de um egoismo necesssário para sobreviver num mundo onde os prêmios são mal distribuídos (“Se me tivesse sentado em peso,/ como numa cadeira qualquer,/ ela partia-se, chão,/ e talvez até me magoasse -/ logo me esquecia dos seus restos,/ era primeiro eu, segundo eu, terceiro eu.”) e, sobretudo, há em Cadeira, a assinatura de Jorge de Sena, os primeiros sinais de um nome singular na sua pluralidade, plural na sua singularidade: “e a minha cabeça desfia branca,/ aberta flutuante/ desfia, creio, ela própria/ e eu ouço nada, nada, não é de ouvir.” A encerrar o poema, o efeito de interlocução confirma o que se disse sobre o modo próprio seniano de perguntar-se para mais próximo estar de quem pergunta ou de si mesmo: “Agora, poema, vou sentar-me lá./ (não me sento todo…)/ Estás cansado… vem também./ Descemos ambos aqui.” Não é preciso olho muito vivo para ver o encontro no tempo da poesia entre os versos “de lá ter sido quem/ a conheceu de olhá-la como de assentar-se” e “Agora, poema, vou assentar-me lá.” Porque – como diz Holderlin, “o que fica os poetas fundam” – há vinte anos lá estão a certeza de que não se trata de uma “cadeira qualquer” e a dúvida, sobretudo a dúvida, “e o canto ficou ela seca,/pintada de escuro,/ almofada velha com um elefante/ ou uma girafa, não sei bem, e meninos em cima.” Elefante ou girafa ou corvo ou rena ? Nem um nem outros. Todos os quatro, em trânsito. “Se me remexo”, continua o poema, “a cadeira range/ e o fio recomeça igual nunca parou.” Em cadeira dobrada assentado o conceito de representação desdobrada, só nos cabe, portanto, a mim e à minha leitura peregrina seguir o fio interminável nesse labirinto &agra
ve; procura do Autor de “Em Creta, com o Minotauro”.

 

* Professor Titular de Literatura Portuguesa na Fac. Letras/UFRJ. Pesquisador 1A do CNPq. Ensaio publicado originalmente em SANTOS,Gilda, org. Jorge de Sena em Rotas Entrecruzadas. Lisboa: Cosmos, 1999, p.171-200, e reproduzido em SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Verso com verso. Coimbra: Angelus Novus, 2003, p.257-290