A Inglaterra e os Estados Unidos fizeram parte do percurso vivencial de Jorge de Sena: o primeiro, visitado diversas vezes, originou poemas, cartas e um livro intitulado Inglaterra Revisitada, para além de traduções e diversos ensaios sobre autores ingleses e norte-americanos; no segundo, viveu durante treze anos, entre 1965 e a data da sua morte (1978) – primeiro em Madison, onde leccionou na Universidade de Winsconsin, da qual se demitiu em 1970, e depois em Santa Bárbara, tendo exercido funções na Universidade da Califórnia como catedrático efectivo de literatura portuguesa e brasileira e de Literatura Comparada do departamento de Espanhol e Português.
Deste modo, atendendo à ordem cronológica, acompanharemos as viagens de Jorge de Sena, para analisarmos as imagens configuradas pelo seu olhar de visitante face a Inglaterra, partindo das impressões registadas em Inglaterra Revisitada, nomeadamente, nas “Cartas de Londres”. Seguidamente, sempre numa perspectiva comparativista, interpretaremos a representação dos Estados Unidos, fruto da sua vivência de imigrante, que emerge de “Os Estados Unidos” (parte integrante de Peregrinatio ad Loca Infecta) e “América, América I love you” presente em Sequências. Além disso, outra obra contemplada no nosso corpus de estudo é Sobre o romance, ingleses, norte-americanos e outros.
1. Andanças por Inglaterra…
Apesar de nunca ter vivido em Inglaterra, como chegou a desejar, o autor passou neste país alguns períodos de tempo, inspiradores de Inglaterra Revisitada, organizada postumamente por D. Mécia de Sena, que reúne as seis “Cartas de Londres” e duas palestras. As primeiras foram escritas entre 17 de Outubro e 28 de Novembro de 1952, tendo sido ouvidas, pela primeira vez, num programa de rádio da BBC, intitulado “Programa de Língua Portuguesa”. As palestras, datadas de 22 de Maio de 1953 e de 15 de Janeiro de 1958, constituíram resumos das duas viagens e estadas feitas por Sena em 1952 e 1957, tendo-se realizado ambas no Instituto Britânico do Porto.
A primeira visita a Inglaterra realizou-se em 1952, no âmbito de um estágio que o escritor completava como engenheiro civil na Blackwood Lodge, enquanto que a segunda ocorreu em 1957.
Nesta sequência, embora atentemos particularmente nestas primeiras incursões, tendo em conta o corpus seleccionado, importa referir que o autor visitou diversas vezes este país, estando documentadas pelos menos mais seis visitas, realizadas em: 1968 (empreendeu uma viagem de quatro meses na qual percorreu doze países europeus e setenta cidades, muitas delas inglesas); posteriormente, regressou em 1971, 1972, 1973, 1974, e, por fim, em 1977, um ano antes de falecer.
Deste modo, vamos debruçar-nos sobre as primeiras impressões colhidas de Inglaterra, país cuja cultura lhe era tão particularmente querida, patentes nas já mencionadas “Cartas de Londres”.
Então, na primeira, revela-nos o facto de esta visita a Inglaterra ser há muito um objectivo a alcançar, um dos grandes sonhos da sua vida, pois, como refere:
Anos a fio, como tantos outros sonham com a “capital do espírito” ou “cidade das luzes”, eu sonhei com esta cidade sombria e dourada, severa e pomposa, negra e vermelha, em que viveram tantos homens que admiro, e tantos personagens de romance que amo, viveram para mim ainda mais do que aqueles. (Sena 1986a:27).
A Inglaterra, ao contrário dos Estados Unidos foi abordada através de um olhar acidental de visitante: “Porque a verdade é esta: eu não ando a ver a Inglaterra com os olhares optimistas, desprendidos, superiores dos turistas, que sentem na algibeira o restolhar dos seus travellers-checks.” (1986a:27).
Deste modo, a visão do autor perante este país estrangeiro não se limita a uma sucessão de comentários subjectivos, ou de impressões exóticas, reflectindo a sua condição ontológica como exilado na própria pátria, antes de ter efectivamente partido para o exílio.
Os percursos pela cidade permitem-lhe contemplar os aglomerados urbanos, reveladores de uma “igualdade na diferença”, devido à sua aparente homogeneidade. A paisagem e os outros aspectos observados são comparados com os existentes no país de origem, sendo a realidade estrangeira considerada superior à da pátria, numa atitude face ao outro, que espelha a genuína “filia”: “Em Londres, porém, a atmosfera, a sujidade, a luz, dão a tudo, do mais absurdo e imitativo momento à mais delicada obra-prima como a capela de Henrique VII, em Westminster Abbey, o mesmo ar de solene e sublime encanto.” (1986a: 28).
A descrição da cidade é emotiva, sendo delineada como bela, livre, civilizada, nobre. Das próprias ruas emerge a sensação de liberdade:” […] todas estas ruas, todas as praças são de uma liberdade urbanística bem representativa do coordenado individualismo que fez e faz a nobreza de Inglaterra […] e até a atmosfera enevoenta se torna encantadora” (Sena 1986a:29).
Em síntese, os assuntos tratados nesta carta são: o carácter inglês, o espírito da Inglaterra e diversas descrições de Londres que focam as ruas, monumentos, arquitectura, clima, trânsito, etc. Deste modo, a Inglaterra é um objecto transposto, teatralizado, que o autor expõe e interpreta para o ouvinte/leitor.
Por seu turno, na segunda carta, evidencia-se o facto de Portugal ser a personagem central.
Nesta esteira, para além das ruas de Londres, é descrito o carácter do povo inglês, sendo elogiado o seu civismo (“a simplicidade civilizada naturalíssima […] a sua boa educação, a dignidade e a delicadeza que os fazem agradecer constantemente tudo. (1986a: 30).
Notamos que esta Inglaterra mágica e feliz de Sena contrasta com a mal-amada, representada amargamente por Eça de Queirós nas suas Cartas de Inglaterra. Neste contexto, o autor aproxima-se mais do Diário da Minha Viagem a Inglaterra (1823-1824) de Almeida Garrett, publicadas pela Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1880 a 1896, que delineia este país estrangeiro como um espaço positivo, possibilitador da descoberta de novos horizontes. Aliás, é nesta segunda carta que refere: “Estou compreendendo perfeitamente aqueles sentimentos que Garrett ou Herculano acidentalmente descrevem, acerca de quão difícil é estar na Inglaterra: sentirmo-nos repartidos entre a gentleness desta gente […] e a cruciante saudade de um Portugal mais brusco e menos ordenado […]” (1986a:33). Deste modo, através da referência a estes escritores, Sena evoca e insere-se na tradição do passado nacional de exílio, que no seu caso pessoal, é ainda apenas pressentido, uma vez que se exilará alguns anos depois, em 1959.
Assim, o seu eixo referencial a partir do qual julga a realidade estrangeira é sempre o seu país de origem, visto que o escritor nunca se despoja da sua bagagem cultural e vivencial. Por conseguinte, as “Cartas de Londres”, tal como refere Paula Gândara (2000: 347) têm Portugal como personagem central, presentificado através do constante recurso ao espaço português e ao contraste que se estabelece entre os dois países. Nesta sequência, ele dirige-se a um público não especializado que nunca visitou Inglaterra, por isso descreve a Westminster Abbey nestes termos:
Porque, com todos os “memorial” e túmulos de homens ilustres, a grande Abadia e Santo Eduardo, o Confessor, parece… Arranjemos um símile compreensível para portugueses: Westminster Abbey parece o Mosteiro da Batalha com o Cemitério dos Prazeres lá dentro.” (1986a:34-35).
Desta maneira, ele pretende captar a atenção do povo português, que é o destinatário colectivo, social, destas cartas, englobá-lo, envolvê-lo no discurso. Por conseguinte, faz ressaltar a dialéctica da proximidade e da distância implicada na forma epistolar.” – lá, além…”, tal como assinala Paula Gândara (2000: 346-347), cruzando a distância e instaurando o significado de uma realidade longínqua, ao afirmar: “É que Londres, uma cidade imensa, que com os seus arrebaldes, congrega quase tanta população como o Portugal continental.” (Sena 1986a:45).
Na “terceira Carta de Londres” são focados os museus londrinos (sendo criticados os seus horários caóticos) e questões da actualidade de teor político. Ao referir ainda a influência da imprensa no seu olhar de estrangeiro (1986:40), cumpre a missão de um correspondente jornalístico, incluindo-se, nesta carta, nesse protótipo. O autor apresenta igualmente os assuntos que constituem as parangonas dos diversos jornais ingleses, dando a sua opinião pessoal, enquanto filtra a informação e generaliza. Neste contexto, as notícias referidas são três: as perturbações no Quénia, a proibição da transmissão da coroação de “mais uma rainha Isabel” e a discussão acerca de deverem ou não ser chicoteados os culpados de assalto à mão armada. Verificamos que estas preocupações sociais do quotidiano inglês são meras futilidades, revelando que, no fundo, a Inglaterra não tem problemas com que se preocupar. Enfatiza-se, então a ideia de um paraíso, país idílico e ordeiro, que contrasta com Portugal.
Seguidamente, o narrador detém-se no Museu Britânico. Primeiro, expõe a utilitariedade dos museus, apresentando depois o objectivo da sua existência, através de uma referência a Shaw que deve remeter para a aparente valorização do lugar, num tom irónico. Por fim, aquele espaço ganha contornos anímicos, como se ocorresse um diálogo gerador de emoções:
[…] pasmei diante dos frisos emétopes do Parténon […] estremeci, docemente, [….] perante a Deméter de Cnico […] encantou-(me) a nobre majestade da estátua de Mausolo […]. Mas talvez nem toda a gente tenha a sinceridade de ficar frio, desiludido e indiferente perante a escultura egípcia. (1986a:42)
Para Sena é difícil a comunicação com a monumentalidade das estátuas egípcias, pois esta estatuária alinhada e catalogada, desenraizada, perde a sua humanidade. Assim, nesta visita, plena de reflexões, ele valoriza as grandes e belas coisas do mundo, opostas às “pouco ou nenhuma coisas de que são feitas as nossas arrelias quotidianas, a ponto de quase parecer que disso a própria vida é feita”.
Relativamente a obras de arte patentes no Museu Britânico, Sena não deixa de mostrar o seu deslumbramento perante o Artemidoro, ao qual dedicou posteriormente vários poemas, como é corroborado nesta passagem:
Eu, por anos que viva, nunca esquecerei o olhar de Artemidoro, jovem egípcio já do período helenístico, em cuja melancolia e serena expressão se funde todo o mundo antigo que o Mediterrâneo banhou. Um fervor discreto, como o de uma pequena lâmpada. (1986a:42).
Aliás, o poema “Artemidoro” presente em Metamorfoses, foi originado pela visita de Sena ao Museu Britânico, durante a sua primeira estada em Inglaterra,
Por seu turno, a quarta carta faz uma viagem pelos espectáculos e espectadores de Londres, salientando a sua quantidade e qualidade, assim como o interesse dos ingleses pela cultura, ao contrário do que sucede em Portugal. De entre todos, enfatiza a qualidade e a beleza da ópera americana Porgy and Bess.
Além disso, acentuam-se outras características deste povo, algumas estereotipadas, como é o caso da pontualidade e da discrição. A estes aspectos, acrescem o sentimentalismo e o sentido de humor eivado de uma certa ternura. (1986a:49).
Na quinta carta, o autor antecipa já a saudade que vai sentir de Londres, focando os mil quilómetros percorridos em Inglaterra, de automóvel, desde Northampton a Sunderland e até às margens do mar da Irlanda.
Seguidamente, o visitante tece uma série de considerações acerca dos monumentos e paisagens de Inglaterra, da fusão entre a natureza, as marcas da história, da civilização e da cultura e a diversidade das paisagens. Imagina, além disso, um “quadro-síntese, representativo dos elementos mais significativos do país visitado, tecido da seguinte forma:
[….] se quisesse representar a Inglaterra, deveríamos compor o seguinte quadro: umas colinas entre agrestes e verdejantes, ao fundo: a meio uma torre gótica, rodeada de chaminés fumegantes, e à frente, num prado de apetitosa relva, vacas pastando, um comboio passando. […] e um bando de gansos [….] condenados à pureza do Natal e à industrialização do foie gras. (1986a:82).
Neste caso, podemos constatar o tom irónico patente na expressão referente à “industrialização do foie gras”, vinculada à “pureza” natalícia.
Finalmente, na sexta, o autor salienta a grandiosidade de Inglaterra como nação e o facto de Londres ser a maior cidade do mundo. Sublinha, nesta sequência, a importância de uma estada no estrangeiro para nos conhecermos a nós próprios, ou seja, o facto de a alteridade, o reconhecimento de um “outro”distinto de nós a nível da cultura e da língua, conduzir a um conhecimento aprofundado da nossa identidade.
É ainda nesta última carta que encontramos uma maior reflexão e meditação acerca das características do povo inglês, enfatizando-se a sua dimensão humana. Neste caso, é referido o seu carácter reservado, pois são considerados “um povo extremamente bisbilhoteiro, que se educou numa dieta de discrição.” (1986a:58).
Além disso, Sena apresenta uma síntese dos aspectos focados nas cartas onde pretendeu revelar o encantamento que lhe ia na alma. Justifica, no entanto, a sua admiração: “Poderá parecer ridículo a muita gente este embevecimento, que julgo que não é cego, pois que é exactamente igual ao dos nossos compatriotas ou outros estrangeiros que aqui vivem, com os quais tenho trocado impressões.” (1986:59).
Assim, estas cartas transcendem largamente as temáticas que poderiam interessar a um turista vulgar, revelando o encantamento do autor face ao povo, à cultura e às paisagens inglesas que procura conhecer profundamente, numa tentativa de lhe apreender a essência.
Com efeito, sendo fruto da distância, que procuram aniquilar, estes textos projectam uma Inglaterra que se deseja desdobrada na terra natal. Porém, este ensejo converte a missão do visitante numa utopia “porque tal irradiação não é, na sua essência, mais do que um desejo profundo do autor”. (Gândara 2000:347). Nelas, Jorge de Sena testemunha uma Inglaterra única perante um Portugal do seu descontentamento, do qual não se consegue distanciar, já que a presença do país de origem é uma constante.
Na verdade, não é um turista que delineia estas imagens multiformes, por vezes até incompletas, mas sim um artista, que abarca o maior número de assuntos, capta a multiplicidade das imagens com que se vai confrontando, revela-nos a sua essência, cruzando sempre a realidade exterior da Inglaterra contemplada, com a interior como experiência do autor viajante.
Contudo, cinco anos depois, em 1957, quando regressa a Inglaterra e elabora a palestra intitulada precisamente “Inglaterra Revistada”, Sena assume-se com uma postura menos lírica e mais cautelosa, menos cândida e espontânea, afirma: “Como vedes, eu vinha muito lírico, escrevera coisas muito bonitas, que não vos li sem certo constrangimento agora, e à maneira de quem põe um cilício para se castigar.” (1986a: 66).
Após a reavaliação, atenua-se o encantamento e o entusiasmo pela Inglaterra gloriosa do primeiro encontro: “Regressado da Inglaterra que amo como Inglaterra e como Europa, não ambiciono afinal mais que comunicar-vos uma angustiosa sensação de vazio.” (1986a:72).
A principal justificação para este facto poderá ser a seguinte: quando visitou Inglaterra pela primeira vez o autor não conhecia ainda outros países da Europa, nem sequer Espanha. (1986a:63), por isso não tinha outra base de comparação a não ser Portugal, daí a primeira impressão paradisíaca. Afirma o autor, neste âmbito:
Há cinco anos eu não me livrara de uma certa fascinação” (1986a:64). Cinco anos depois a Inglaterra “morria”, abandonando a sua respeitabilidade exterior, a sua grandiosidade imperial caindo numa “certa dissolução de costumes, um decair das prosápias racistas e puritanas. (1986a:68).
Por conseguinte, a melhor das civilizações converte-se apenas no país da seriedade, da dignidade e da simplicidade (1986a:74)
Esta palestra intitulada “Inglaterra Revisitada” tem um carácter dominantemente informativo e cultural, assumindo-se como um percurso pelos autores ingleses do passado e do presente, considerados mais significativos para Jorge de Sena, que sublinha a importância que a “bagagem cultural” assume para a compreensão de um país. No entanto, adverte igualmente para os cuidados a ter relativamente ao conhecimento dos países através da literatura, visto que ela também pode ser “má conselheira” ao veicular uma realidade distinta da vivida pelos povos.
Em suma, embora o fascínio inicial perante a Inglaterra delineada como “um país das maravilhas” se atenue aquando da revisita ocorrida cinco anos depois, a sua imagem é bastante positiva, continuando a evidenciar-se a sua notória superioridade relativamente a Portugal.
De um modo geral, a Inglaterra é configurada como o espaço da liberdade, da harmonia, da unidade, da igualdade, da dignidade e dos direitos humanos, habitado por um povo discreto, pontual, amante da cultura, uma civilização superior, um “lugar mágico”, cuja imensidão contrasta com a pequenez, a opressão, o culto das aparências, da mediocridade, desprezo pela cultura patentes em Portugal.
2. Os Estados Unidos: o último destino de exílio
A decisão de partir para os Estados Unidos surge após o golpe de Estado de 1964 que instaurou a ditadura militar no Brasil. Refere o autor, numa carta dirigida a Guilherme Castilho, datada de 17 de Julho de 1965: “Não sei se vocês sabem que, convidado, como catedrático visitante, pela Universidade do Wisconsin, marcho para os Estados Unidos, no dia 27 de Agosto, para reger lá as cadeiras de Literatura Portuguesa e de Literatura Brasileira. (1981:111).
Assim, os primeiros poemas sobre a América, num total de dezasseis, surgem na secção “Estados Unidos da América” de Peregrinatio ad Loca Infecta.
O primeiro destes textos testemunhais, escrito na América a 4/12/1965, assume um teor autobiográfico. Intitula-se “Do trópico de Capricórnio aos grandes Lagos”, constitui uma meditação sobre o envelhecimento (“Envelhecia/ num Verão chuvoso ou num Inverno claro/ em que de noutras árvores a folhagem viva/apenas de ser verde persistia”) (1978: 85) de onde emerge, paralelamente, o contraste entre a paisagem outonal da América do Norte e a brasileira.
A mesma temática é veiculada, seguidamente, pelo “frígido vento”, assumindo, neste caso, o envelhecimento um teor erótico.
A sua primeira primavera passada nos Estados Unidos inspira-lhe o texto “Primavera no Wisconsin”, escrito em 1966, no qual encontramos uma descrição paisagística, humanizada e comparada a um corpo: “Na limpidez tranquila da manhã diáfana/ em que as despidas árvores imóveis/são como nervos ou expectantes veias.” (1978: 89).
Em Wisconsin escreve ainda “ A Casa em frente ou melancolias de um voyeur”, que segundo Cota Fagundes, é o mais significativo, “pois aponta para um tipo de temática testemunhal que vai informar muitos dos […] poemas de experiências americanas de “América, América, I love you”- postura de voyeur, comum em Jorge de Sena (2000: 211).
Seguidamente, importa focar a já referida colectânea, intitulada “América, América I love you” formada por 28 poemas, que constitui a sexta parte de Sequências, publicada postumamente em 1980.
O primeiro texto, consagrado ainda ao Brasil, terá sido escrito em 1961, e o segundo, intitulado “Ray Charles” em Março de 1964, ainda no exílio brasileiro. Os restantes 26, sobre os “Estados Unidos” datam, na sua maioria de 1969, e outros de 1970. Não são, por isso, textos de recém-chegado, tendo sido produzidos quatro ou cinco anos depois de Sena chegar aos Estados Unidos.
Segundo Francisco Cota Fagundes, estes textos parecem “sugerir um frenesim, um como que desejo de reviver poeticamente o primeiro encontro cultural do poeta com o novo país – marcados por uma certa ingenuidade que não é comum no modo como Sena via os países e as gentes” (2000: 211).
Na verdade, cada um desses textos assume um pendor de condensação narrativa, deixando transparecer um tom satírico. Muitos deles satirizam as tradições culturais americanas de herança anglo-saxónica, espelhadas em comportamentos sexuais incongruentes, atribuíveis a um falso puritanismo. É o caso dos títulos: “culto da virgindade”, “marido e mulher” (em que o marido é “condenado a dois anos de tratamento num instituto psiquiátrico/ por atentar, vicioso,/ contra a virtude da esposa”, Sena 1980:99). Outro exemplo bem concreto deste tom satírico, narrado como uma “short story” é o poema intitulado “pavloviana ou os reflexos condicionados”:
Parqueavam o carro à porta dela,/ e durante mais de uma hora,/ rolavam-se e rebolavam-se lá dentro. // Depois, saciados, fechavam o carro/ e entravam em casa (para lavar-se e dormir).// (Na verdade, a casa não era dela, / mas de ambos: Moravam lá, / até eram casados). (Sena 1980: 97).
Além disso, são satirizados outros costumes, como é o caso do patológico amor dos animais ou as excentricidades mórbidas que resultam num ódio cruel a esses mesmos animais – presente, por exemplo, em “o velho que não gostava de gatos” (1980:116).
Outro aspecto focado é o incongruente e hipócrita espírito de igualdade, evidenciado no tratamento familiar, mas que não impossibilita que o indivíduo que assim nos trata, terminado o negócio, sem se despedir, parta e vá “tratar e ser tratado pelo nome próprio, / durante um ou dois anos, outros amigos de infância.” (1980: 105).
Contudo, são certas práticas do capitalismo americano o alvo mais atingido pela crítica acutilante, contemplando diversas variações: o denominado “junk mail”, ou seja, (correspondência-lixo) que vem, apesar de tudo, alegrar o coração dos solitários, já que “qualquer americano sentiria que o mundo o abandonara, / se o correio lhe não trouxesse essa meia hora/ de saber-se destacado em listas de moradas/ (que as entidades aliás, permutam entre si).” (1980:110); as práticas gananciosas dos agentes e das funerárias (ex: “um enterro”); a cultura do compra-e-joga fora, do “descartável”, pois, tal como se afirma em “obsolescência, “Nada é feito para durar […]” (1980:104).
Por fim, são também duramente criticadas as desumanas exigências das instituições médicas e das companhias de seguros, em detrimento dos interesses e necessidades dos hospitalizados, presentes em “doença urgente”. Aliás, a desconfiança do autor perante o sistema de saúde norte-americano encontra-se documentado numa carta escrita de Santa Bárbara a José Augusto França, datada de 22 de Novembro de 1972, na qual refere:
Fui de corrida a um médico (só tenho usado, desde 1970, médicos em Paris – assim mesmo, e excelente que ele é – ou em Lisboa, pelo meu horror da medicina americana, que ou te trata como uma mina de ouro, com todos os requintes da ciência e delongas que dão tempo para morreres primeiro, ou te receita alguma coisa um pouco mais forte que aspirina… e continuas na mesma de igual modo).” (2007:331).
Assim, os referidos poemas de “América, América, I love you”, apresentam pequenas histórias que criticam de forma irónica e satírica o quotidiano, por vezes. absurdo dos Estados Unidos, focando temas como o sexo, a doença ou os costumes.
Neste contexto, Jorge de Sena, através de uma óptica etnocêntrica, recorrendo a observações, nem sempre provavelmente observadas, veicula uma imagem estereotipada deste seu segundo país de acolhimento, sobre o qual deixa transparecer alguns juízos de valor. Deste modo, critica a hipocrisia subjacente ao capitalismo, ao suposto espírito e tolerância democráticos revelando uma imagem cáustica e estereotipada do país.
Nesta esteira, Onésimo de Almeida considera de notória pobreza e de uma flagrante fragilidade imaginativa esta colectânea de poemas, que terá sido fruto “do choque inicial dos primeiros contactos com os Estados Unidos”, por conseguinte, “neles quase nem se manifesta o brilho do olhar com que Sena iluminava o mundo de que falam os seus versos” (1987:11).
Esses textos terão sido, então, a consequência de uma impressão ainda pouco esclarecida, duma reacção etnocêntrica ao diferente, pois “Complexa na aparente transparência, a sociedade dos Estados Unidos provoca imediatamente reacções fortes (pró ou contra) em quem com ela entra em contacto. E Jorge de Sena apercebeu-se dessa realidade”. (Almeida 1987:11).
Por conseguinte, segundo o autor supramencionado, Sena teve consciência de que a imagem da sociedade americana presente nestes poemas não terá sido a mais fiel, daí a obra só haver sido publicada postumamente, visto que o poeta se terá deixado perturbar por “características culturais de superfície que, integradas no seu contexto, se revelam muito mais complexas do que pareciam à primeira vista.” (1987:11).
Porém, não podemos esquecer que o escritor chegou aos Estados Unidos já com uma bagagem cultural fornecida pela literatura norte-americana, carregando já os estereótipos fornecidos por autores como Hemingway, Caldwell ou Faulkner, que pretendia, de certo modo, verificar in praesentia, ou seja ao “vivo e a cores”,visto que, como refere George Monteiro:
Os Estados Unidos eram outra questão. Apesar de partilharem a língua britânica, para Sena, a América não era nenhum lugar mágico. Ele não a achou de imediato rica no seu passado e forte em cultura. Na verdade, ele não esperava encontrar nos Estados Unidos mais do que a evidência do materialismo e da vulgaridade para que escritores como Hemingway, Erskine, Caldwell, Scott Fitzgerald e Sinclair Lewis, na sua leitura deles o haviam preparado.” (1988:16).
Em síntese, dos Estados Unidos é-nos fornecida uma imagem estereotipada, baseada numa sátira aos costumes norte-americanos muito evidente em “América, América I love you”, onde se condena o falso puritanismo, o sistema capitalista americano, o sistema de saúde, a hipocrisia, etc.
Por outro lado, a importância que a Literatura Inglesa e Norte-americana assumem para Jorge de Sena encontra-se documentada noutras obras, como é o caso de A Literatura Inglesa (publicada no Brasil em 1963, reúne vinte e cinco estudos da cultura e literatura inglesas); Sobre o Romance (Ingleses, Norte-Americanos e Outros) que reúne ensaios, artigos e prefácios publicados pelo autor entre 1954 e 1961, onde são contemplados: Laurence Sterne Peacok, Henry James; D.H. Lawrence, George Orwell, Norman Douglas, Graham Greene, Samuel Beckett, Faulkner, Caldwell e Hemingway.
Neste contexto, o autor considera como expoentes máximos da Literatura Norte-Americana os três últimos autores supramencionados, reconhecendo a dificuldade em “ser-se escritor” nos Estados Unidos, precisamente devido às características sociais já anteriormente apontadas e alvo de crítica pelo escritor. Afirma então:
Ser-se um grande escritor norte-americano nunca foi e não é uma coisa fácil. […] Naquele puritanismo hipócrita e pedante, onde o triunfo económico – reservado a uns raros eleitos – é o sinal distintivo de uma alma que merece salvar-se, a perdição sob qualquer forma foi sempre, e será por largo tempo ainda, a única forma coerente de criar-se algo que não valha apenas pelos dólares de alma que custou. (1986b: 187-188).
Neste cenário, segundo Sena, Hemingway descobre uma fraternidade que se afasta e recusa a “sociedade higienizada até na ciência de pecar” (1986:188), enquanto Faulkner é considerado “o intérprete mais profundo e trágico” da situação cultural específica do sul dos Estados Unidos (1986b:199).
Em suma, são muito distintas as imagens dos dois países expressas através da voz seniana. Não obstante, podemos referir que, comunicando ao “outro” a sua perspectiva perante o estrangeiro, o autor estabelece uma ponte, com o intuito de unir através dos traços de humanidade de que todos somos feitos, quer sejam eles positivos ou negativos. É nesse processo de alteridade, de descoberta do “outro”, que o “eu” vai definindo as linhas da sua própria identidade pessoal e nacional.
Se a Inglaterra é o país mágico, contemplado de forma entusiasta, objecto de uma mitificação pessoal, os Estados Unidos são uma realidade distinta, complexa, configurada de forma estereotipada, visto que o autor revela alguma dificuldade em abarcá-la na sua profundidade, em integrar-se nela, assumindo, por isso, uma postura crítica. Isto porque estas imagens são configuradas também a partir das expectativas e das representações formadas através das leituras feitas. Segundo afirma o autor: “Conhecendo-se bem a literatura e a história de um país tem-se dele o mínimo de experiência ou de convívio que preconizei como indispensável.” (1986a: 64).
Como se sabe, Sena foi um escritor e leitor ávido, extremamente erudito. Portanto, muitas das suas viagens e das imagens construídas dos países visitados, germinaram a partir do “silêncio dos livros” (referido por George Steiner), que despertou e predispôs para a descoberta do outro, da realidade estrangeira, delineando as coordenadas de uma cartografia do olhar.
Bibliografia
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