Cada um faz a homenagem que pode: As Quibíricas e a sátira burlesca da epopéia camoniana

quybyrycasEm crônica de agosto de 1972, Jorge de Sena afirmava ser “o pintor António Quadros, que é também o poeta João Grabato Dias, uma das mais notáveis revelações dos últimos anos” (Rever Portugal, p. 209). É de sua autoria o poema épico que Sena viria a prefaciar, nesse mesmo ano, e que já aqui transcrevemos. Desta feita, no intuito de estimular nossos leitores a conhecerem obra tão singular, aqui trazemos o breve ensaio de Luciene Pavanelo, que adverte: “Desconhecido do público leitor e pouco abordado pela crítica literária, o poema épico As Quibíricas traz importantes reflexões sobre a história de Portugal, marcada pelo mito sebástico e o desejo de expansão da Fé e do Império. Antes de serem mera paródia de Os Lusíadas, As Quibíricas procuram ser um grito de alerta: publicado na ditadura salazarista, o poema adquire relevância na medida em que problematiza os alicerces da cultura portuguesa, num momento conturbado de sua história. Apesar de a ditadura ter sido enterrada junto com o sonho colonialista, a história não deve ser apagada: resgatar essa reflexão é o que almejamos neste trabalho”.

 

Cada um faz a homenagem que pode: As Quibíricas e a sátira burlesca da epopéia camoniana

 

A História de Portugal é um dos temas mais profícuos do cânone literário português, majoritariamente representado por Os Lusíadas. O célebre poema épico, largamente estudado ao longo dos seus quatrocentos anos, já foi lido de maneira reducionista e anacrônica, principalmente durante a ditadura salazarista, cuja propaganda política aproveitou-se do seu “filão imperial e cruzadístico”, segundo Luís de Sousa Rebelo (1987, p. 22), para endossar a campanha colonialista na África.
Em meio a esse cenário, Os Lusíadas careciam de uma nova leitura, que salientasse a faceta explicitada na voz do Velho do Restelo: o lado funesto da aventura expansionista portuguesa, aliás, bem conhecido de Camões (cf. BOSI, 1993, p. 387). Mais do que isso, em vez de ser utilizado para engrandecer a “gloriosa lusitanidade”, nas palavras paródicas de Jorge de Sena (1991, p. 15), o poema deveria ser visto também como “uma profunda reflexão crítica sobre [a História de Portugal] e os destinos da grei” (REBELO, 1987, p. 22), uma vez que se transformou, “como Oliveira Martins o qualificará cerca de 300 anos depois, em um dos epitáfios do Portugal que sucumbe em Alcácer Quibir” (OLIVEIRA, 1998, p. 47).

As Quibíricas – “poema ético em oitavas, que corre como sendo de Luís Vaz de Camões, em suspeitíssima atribuição de Frei Ioannes Garabatus, impressas em Moçambique”[1], em 1972, “sob pressão do ambiente político da sociedade lourenço-marquina de então” (1991, p. 11) – propõem-se a fazer essa nova leitura. Publicado na ocasião das comemorações do quarto centenário de Os Lusíadas – durante os últimos anos do regime salazarista e das guerras de independência das colônias africanas, entre elas Moçambique –, o poema é uma homenagem de António Quadros, às avessas, como sugere no paratexto que sucede a folha de rosto: “Cada um faz a homenagem que pode” (1991, p. 7).

O prefácio de Jorge de Sena – que, por sua vez, mereceria um estudo à parte, tamanha a sua riqueza em (falsos) detalhes e na crítica irônica que faz ao discurso nacionalista e aos próprios críticos literários –, o posfácio do suposto parente do autor, as páginas que antecedem os Cantos – que trazem falsos fac-símiles com seus esquemas –, a forma e a linguagem do poema, além da voz do narrador de As Quibíricas procuram convencer o leitor de que estas foram escritas no século XVI, pelo próprio Camões. Este haveria dado a Frei Ioannes Garabatus uma continuação de Os Lusíadas, poema que, segundo a ironia de Sena, seria um prólogo de quanto veio depois, ou seja, da decadência portuguesa que tem início em Alcácer-Quibir e culmina no Salazarismo:

Com efeito, Os Lusíadas, com as suas 1102 estâncias, eram e são – como não dizê-lo? – um prólogo. Sem dúvida brilhante, grandioso, ilustre, imorredouro, celebrável com as maiores honras e clamores devotos mas prólogo de quanto veio depois: Alcácer-Quibir, o respeitável Cardeal D. Henrique (essa tão incompreendida e trágica figura simbólica das hesitações do patriotismo dos governantes mais responsáveis), os sessenta anos de união hispânica (cativeiro de Babilônia, segundo as analogias bíblicas, mas, como elas, não aludindo às tendas de secos e molhados adentro do império espanhol, rendosamente exploradas pela aristocracia patriótica), uma guerra de independência que preciso foi animar com sermões, discursos, demonstrações copiosas dos direitos brigantinos, alguns cadafalsos e até atentados à mão armada, para não citarmos impostos forçosamente cobrados, etc., uma virtuosa rainha, celebrada epicedicamente pelo Padre António Vieira e que foi casada com dois reis sucessivos e irmãos, as minas do Brasil e o convento de Mafra, o terramoto de 1755 (essa glória que ninguém pode disputar em magnitude a Portugal), as invasões francesas, a ocupação inglesa, as guerras civis, a Regeneração tão decantada pelos homens ditos de 70, pouco lidos em Camões segundo as melhores informações, a queda da Monarquia, o tem-te-não-caias da República, e o meio século ulterior que colocou Portugal enfim na vanguarda das nações não apenas ocidentais mas de outros pontos cardeais e colaterais geralmente incluídos na Rosa dos Ventos. (SENA, 1991, p. 17-18).

 

Assim sendo, As Quibíricas colocariam em relevo a fala amarga do Velho do Restelo – “Eis-me nos restos, velho, e em restelo” (GARABATUS, 1991, p. 41) –, aqui expandida de voz dissonante a prevalecente. Seu objetivo seria refletir sobre o passado – o reinado de D. Sebastião e sua sanha imperialista – com o intuito de conscientizar o leitor futuro – aqui entendido como o leitor do século XX, que vive a política colonialista de Salazar: “Destemperei outrora a lira asinha / cantando o luso surdo e endurecido. / Mas hoje cantarei o error do Homem. / Que os futuros, do error a lição tomem” (1991, p. 47).

Logo em seu início, As Quibíricas procuram salientar a sua diferença com relação a Os Lusíadas, questionando a invocação aos deuses, uma vez que é o Homem o único responsável pelas suas ações e seu destino: “Invoco pois os fados. Por galante. / pois sei que só de mim evoco e fruo / o pesado prazer de ser constante / ao prazeiroso peso do que suo. / Invoco-me” (1991, p. 43). Mais adiante, o poeta critica o que supostamente fizera em Os Lusíadas: “Bem outrora o cantei, por enganado / no entendimento com o nome Glória. / E porque às musas dava destacado / lugar na alvorada da memória / uma piquena rima era mandado / mais alto do que o fio de uma história. / Disso me penitenço, hoje que vi / quão piqueno é o verso sendo assi” (1991, p. 74).

Dessa forma, o falso Camões defende As Quibíricas como um canto em busca da verdade: “Mas hoje o ponto extremo onde me vejo / por idade chegado, me aclara / o entendimento. E uns restos do desejo / que outrora tive de cantar em rara / obra de engénio e valho (…) / me faz achar no Vero outro Bonito” (1991, p. 103). Com isso, arrepende-se de ter apoiado outrora as Armas e os barões assinalados: “não oporei mais que ódio redobrado / à causa de matar (…) / que no entendimento onde hoje pauso / entendo já o vão que é ir à liça / buscar glória em termos ominosos / na fraca glória de romper os ossos” (1991, p. 313).

Ao cantar a trajetória de D. Sebastião desde o seu nascimento até a sua morte em Alcácer-Quibir, o poema procura desvelar o mito sebástico presente, como sabemos, desde a União Ibérica até o século XX na memória portuguesa, que recorre ao mito sempre que passa por algum período conturbado, quando se acredita que D. Sebastião, o Encoberto, surgiria em meio à névoa para salvar o país. Tal crença, segundo o poeta, contribui para que o povo português não enxergue a realidade: “a névoa nos obriga / à pertinácia que nos nega o morto / paralelo podríssimo cadáver / onde não temos olhos nem há ver. / É que o ver, tanto custa, que a recusa / nasce justificando-se no cego / obedecer aos mêdos em que abusa / parecer a autoridade que lhe nego” (1991, p. 344). É objetivo do poema, porém, buscar a verdade desvelando o que está por trás da aparência: “E mais vejo na névoa o que ela oculta / assomando aos rasgões da Clareza / num esforçar que é do vento e que resulta / num ventar para o centro da inteireza” (1991, p. 343).

O procedimento utilizado para desvelar o mito sebástico e conscientizar o leitor do erro que foi o sonho imperialista, que fez perder um rei e seu reino – erro que na época da publicação do poema ainda era cometido, através da política colonialista de Salazar –, é rebaixar o herói da epopéia, D. Sebastião, e aqueles que o cercam, bem como a falsa idéia de grandeza da nação, através do burlesco. Segundo Gérard Genette (1982), o gênero burlesco modifica o estilo sem modificar a matéria[2]: o “desacordo” ou discordância estilística se constrói precisamente entre a permanência da nobreza das situações sociais (reis, príncipes, heróis, etc.) e a vulgaridade da narrativa, dos discursos dispostos e dos detalhes temáticos inseridos na obra, uns nos outros[3].

O momento em que é aclamado rei, aos três anos de idade, nada tem de grandioso: pelo contrário, mostra que D. Sebastião, “O Desejado”, era apenas mais uma criança, nada tendo de especial: “Vêde que cousa estranha ser-se rei / sem que se entenda em si nada de mais / que o cheirar, que o olhar, sem maior hei / que aquele que comanda gestos tais” (1991, p. 50). Essa idéia é reforçada pela descrição física do rei adulto: “Meã estatura e carne reforçada / o olho azul, sardado o rosto alvo / a barba entre loira e arruivada / cabelo um tanto ralo mas não calvo / a beiça desdenhosa e derrubada / e um ombro mais subido (isto ressalvo / porque descido o outro se compensa / na outra mão a achada diferença)” (1991, p. 178). A descrição burlesca do paço, freqüentado por “velhos relhos (…) / com licranços de pedra no espinhaço / e a voz coaxada de sapudas rãs. / Passeando as dores reumáticas e o aço / das inúteis espadas, com o afã / de quem se quer provar que é vivo e útil / no espelho do mexer de modo fútil” (1991, p. 50), é, por sua vez, uma imagem da decadência de Portugal.

O desinteresse do rei pelo casamento – que impediu o trono português de ter um herdeiro, resultando na União Ibérica, período no qual o trono foi ocupado por Castela – é ridicularizado pelo poeta: “Quem milhor está jogando é o nosso rey / desinteressado de mulher, que o sei” (1991, p. 172). Este também apresenta uma descrição burlesca de suas noivas prometidas: “Da Baviera apontam o maná / de Maximiliana e ele ordena / que não lhe falem mais dessa potreia / de nojosa doente pobre e feia” (1991, p. 173). O casamento arranjado, por sua vez, tradição das monarquias européias, é alvo de crítica: “nos grandes por servir fito secreto / irmãs e filhas são como objecto. / (…) São as vassalagens / manobra do Poder. Àquele outro / que mo desminta aqui, rio na cara / que da mulher tenho outra ideia clara” (1991, p. 173-174).

A religiosidade e a sede de glória de D. Sebastião – “por demais rebelde e excessivo / em devoção e cousas de glória” (1991, p. 163) –, que alimentam desde a sua infância o sonho de promover a Guerra Santa subjugando os mouros, são sugeridas pelo poeta como sendo loucura: “No dedicácio dum missal que dá / à Companhia, escreve em bom desenho: / – Rogai Padres ao Deos que tudo dá / me refaça mui casto e ajude o empenho / que zeloso mantenho em ir alhá / dilatar sua fé por vale e brenho. / Serão isto palavras de menino / ou raíz de enganoso desatino?” (1991, p. 161).

Mais tarde, devido ao seu caráter orgulhoso e tirânico, não aceitando críticas nem conselhos – “Não lhe venham com falas de mulheres / que Êle é já homem!” (1991, p. 208) –, leva Portugal à aventura ultramarina, apesar da falta de recursos do país, com “A Armada que não tem, pois o erário / ryal anda esgotado de sequim / e o que lá há não dava o mais sumário / para envelar um pobre bergantim…” (1991, p. 181). O poderio marítimo português é aqui rebaixado de forma burlesca na imagem das naus carcomidas: “Algumas chegam, creio, mas tão fracas / e rangidas do abuso do mar grosso / que toda a resistência está nas cracas / que revestem o casco delicoso / (…) / façam-se já as barcas em Lisboa / com casquinhas de ameijoa ou mexilhôa” (1991, p. 101).

A loucura de D. Sebastião é acentuada pelo gosto de exumar os corpos de seus antepassados, hábito ridicularizado pelo poeta, que dá voz a um dos cadáveres: “O primeiro é Afonso (o Segundo!) / Os brancos ossos falam mudamente: / pois que? trazeis-me aqui de novo ao mundo / quando me estava descansadamente / esperando o dia de vestir jucundo / traje de carnes que esta ossada aquente? (…) / Cerrai-me a lousa. Que outro mal vos fiz?” (1991, p. 191). Tal episódio ocorre em meio à Peste que assola Lisboa, momento no qual o rei “foge à sua gente” (1991, p. 195) e vai para o campo, “sempre no folgo de um ou outro modo / como se o Reyno não estivesse enfermo / antes se celebrasse Ryal bôdo” (1991, p. 194). A descrição explícita e repugnante da Peste tem o intuito de chocar o leitor e rebaixar a figura de D. Sebastião, que permanece indiferente ao sofrimento de seu povo, como anteriormente citamos:

 

E o ar são cheiros pútridos e lentos

que se enrolam viscosos na narina

donde pingam humores fedores nojentos

amalgamando ranhos e verrina.

(…)

 

A terra já não pode com os mortos

nem os vivos já podem enterrá-los.

São as casas sepulcros onde absortos

os vivos estão já mortos sem notá-lo

e plantam-se os mortos nos hortos

aos montes como enxertos de cavalo. (1991, p. 187).

 

As cenas de batalha também são descritas de forma crua e não-idealista. Numa delas, o narrador inicia o relato através do burlesco, rebaixando o cotidiano dos soldados, que nada tem de heróico e elevado – eles comem, dormem, defecam e urinam, como qualquer ser humano normal: “Come-se entre dois tiros não sabendo / se o ingesto, gostoso ou mal cozido / chegará em seu tempo abaixo, ou sendo / esterrumpado a meio do descido / por projectado aço em golpe horrendo / não saia destemperado e desabrido. / (…) / E já defeca sem pudor a velha (…) / O arcabuzeiro mija grosso a espaços” (1991, p. 59). Logo depois, temos a descrição da batalha, cujo tom jocoso contrasta com a crueldade da morte dos soldados: “quem no auge da lida se depare / ferido por mortalha de morteiro / quando a sangueira – a quem melhor repare – / são as entranhas de outro companheiro; / …quem da própria cabeça se separe / e esta lhe ria ainda o riso inteiro” (1991, p. 64). Após chocar o leitor, o narrador conclui que a guerra é ruim para ambos os lados, não havendo diferença entre os cristãos e os mouros quanto ao seu sofrimento:

 

Ainda que por cada Luso morto

haja dous centos no contar imigo

a vingança não paga neste horto

o que do horto alheio traz consigo.

E quanto mouro, em Fez, enterra absorto

na mesma perdição, filho ou amigo?

Pois por qualquer lugar onde homem chora

nem fé nem cor de pele isto minora. (1991, p. 65).

 

O poema reforça sua posição contrária à guerra dirigindo sua crítica principalmente à expansão da Fé – “Tudo em nome da cruz como se a cruz / fora de pau de brandir e não de luz” (1991, p. 81) –, utilizada como pretexto para a expansão do Império, também criticada: “Só o luso não vê que isto assim é. / Olhando o mundo como quinta sua / supõe-se dominando essa mercê / que lhe caiu do céu em meio à rua” (1991, p. 87). Ao referir-se às navegações feitas com o intuito de difundir a Guerra Santa, o poeta procura explicitar a relação desta com a violência e a morte: “velas / onde a cruz se desenha como arauto / do sangue que vertido foi por elas. / (…) / E os artilheiros escorvam os canhões / enquanto os frades rezam contrições” (1991, p. 109-110). E conclui: “Oh! que cegueira a desta fé imposta / pelo gume das armas e com fôgo” (1991, p. 221).

A fim de rebaixar o clero, responsável pela difusão da guerra, o narrador recorre a descrições burlescas, desde o mestre e confessor de D. Sebastião – “essa mólhada / de osso desconjuntado e disperso / que é o seu confessor: a face é estrada / posta ao serviço do feio mais perverso / que conceber se possa, é coxo, é gago / (…) / Zarolho é” (1991, p. 163) –, até os missionários responsáveis pela catequese dos gentios: “um gordo frade com dois dentes / onde o milagre é inda que lhe pendam… / Com frades gordos nunca argumentes / ainda que por gordos muito ofendam. / Não lhes vás pois agora perguntar / se entendem chino ou falam malabar” (1991, p. 81). A catequese, aliás, é também ridicularizada pelo narrador: “Crendo dizer irmãos, de ordinário / não sabem da palavra os dois sentidos / e dizem insolência por doçura / causando riso a todos, ou secura” (1991, p. 81).

Além da Guerra Santa, o poema dirige a sua crítica à Inquisição, inserindo uma longa digressão no meio do Canto VII, no qual o narrador apresenta um Auto, cuja linguagem cômica contrasta com a seriedade da matéria: “Mais de trezentos são os condenados / além dos que com culpa completa / irão ao fogo para ser assados / em nome da justiça mais correcta / que avaliou em tanto os seus pecados” (1991, p. 226). Tais “pecados”, por sua vez, são ínfimos, comparados com a crueldade da punição: “A quem comeu da carne resangrada / por sexta feira santa, leva cem / açoutes com a vara abençoada / e benzida por Roma. Vinte, a quem / sexta feira comum não fez agoada / e ainda cincoenta a todo o alguém / que a Hóstia com o dente nú tocou / e duzentas a quem a vomitou” (1991, p. 227). A descrição dos açoites é apresentada explicitamente, com o intuito de chocar o leitor e conscientizá-lo da barbárie que a cegueira e a tirania da fé são capazes:

 

O sangue rompe e corre brandamente

para de pronto se apegar aos couros

e espilrar em chuviscos de contente

sobre os setins perlados e nos ouros

do recamado traje da alta gente.

Sentem-se estes honrados nos desdouros

por ser sinal de grande protecção     

este sangue que busca o ser cristão. (1991, p. 228).

 

Achegai-vos atão a esta dona

esta que mais desperta as atenções

piadosas (e outras, pois que abona

em formosas e firmes carnações.)

Não se vêem as costas que é a zona

mais pastada dos chumbos e unhões

puntarilhando aos couros por milhor

abrir a carne ao sangue redemptor. (1991, p. 229).

 

O rei, o clero, a nobreza, o exército e o povo são caracterizados como atores do Auto e também seus autores, uma vez que a Inquisição – e também a Guerra Santa – só existe porque há aqueles que a apóiam: “Estão os Autores. Quero dizer, actores / que a grande farsa interpretada assim / acrescenta-me graça nos humores” (1991, p. 225). A passagem contrasta o sofrimento dos condenados com a reação dos espectadores, em especial do povo: “O prazer dos que assistem é ruidoso / de modo a não ouvir-se algum lamento. / Não por expresso propósito: o gôzo / compraz-se no alheio sofrimento / sem que se tenha aí por ominoso / tão doentio e vil comportamento” (1991, p. 228).

A crueza da descrição, condizente com a crueldade dos atos, intensifica-se no momento em que o poema descreve a cena da morte na fogueira: “E as carnes vazam unto, desnudados / coirachos já sem forma pessoal / ainda que na humana desenhados. / Quando os ventres abrandam na brutal / tensão do fôgo, os fígados bolsados / de mistura co’a fécula fecal / criam no ar a quinta dimensão / de um fedor sem cortez comparação” (1991, p. 235). Em seguida, o narrador compara os corpos humanos na fogueira da Inquisição a um churrasco, atingindo o ápice do horror: “Só mais uma perninha de judeu. / (…) / Quereis da mama? Vejo bem gulosas / essas pôdres pupilas sem arrimo. / (…) / E esta particular e reconchuda / orelha? (…) / Um olho? O coração? Da ilharga, pois / da ilharga que é mais branda e leva osso / para afinar o dente” (1991, p. 236-237). A sugestão de canibalismo feita ao leitor é apresentada para chocá-lo e conscientizá-lo: “Já vos servi o prato que devia / que o meu ofício é ser-vos servidor. / (…) / Ainda que torpe, o vômito presente / vos traz um pouco à condição de gente…” (1991, p. 237).

O poema se encerra com a Batalha de Alcácer-Quibir, ponto final da sanha imperialista portuguesa, na qual D. Sebastião tem um momento de epifania e esquece-se de dar a ordem de atacar: “Fita absorto em frente sem ver nada / (…) / Tanta espera de vida na apontada / manobra de sofrir e aqui chegar. / E eis tudo é ausência e assumpção” (1991, p. 330). Ao fim da batalha, o exército português é dizimado: “Eis o milhor de quinze mil vontades / feitas polpa que o tempo já macera / filtrando para o chão viscosidades / que o chão aceita como quem o espera. / Eis o acabado filtro das vaidades / que inda ontem rinhavam como féra / insaciada e pronta a todo o extremo / sugado agora pelo chão moreno” (1991, p. 346). E o poeta conclui, criticando a guerra: “Se a vida é vã porquê mais vã fazê-la / confiscando-lhe a calma (…) / Não é sangrando o semelhante / que a volverás de vã em interessante” (1991, p. 348).

O corpo de D. Sebastião é preparado para o enterro por “um moço guarda-roupa” que “o serve por derradeira vez”, sem nenhuma pompa: “Sobre palhada esteira deitam breve / o patético inchado e cru despojo. / (…) / Contendo o nojo / (…) / Posto de rojo / (…) / umas ceroulas / que desprezadas andam polo chão / e ninguém quer, por vélhas e rompidas / assube polas coxas que aqui estão / amostrando as ocultas e nojidas / partes por onde impera a corrupção” (1991, p. 352). Em seguida, há a descrição do local onde D. Sebastião está enterrado, que não difere de nenhuma outra sepultura comum, e que comprova que ele de fato morreu e não retornará para salvar o país: “Em duas andas baixa a um curral / onde fresca morada aberta em dura / terra batida a casco de animal / lhe espera a pose altiva de insegura. / Aqui jaz quem foi Rey de Portugal: / primeira penitença que assegura / a quem tão pouco crê, que o Céu aprova / mais a intenção do que nefanda prova” (1991, p. 353). Dessa forma, a morte do rei é associada à morte de Portugal: “E Portugal / rouqueja: – A não ser tal, qual esperança / nos restará senão morrer e mal?” (1991, p. 339).

Através da denúncia do horror – e do error, uma vez que levou o país à completa decadência – por trás da expansão da Fé e do Império, o poema “ético” realiza seu intento de defender a paz – “Às causas de matar oponho a quente / amplidão desta palavra paz” (1991, p. 245) –, palavra definida por ele como “uma ausência / desse abjecto objecto que é a guerra” (1991, p. 246). Para isso, recorre à sátira e ao burlesco, cujo riso provocado não tem a função apenas de deleitar, mas consiste numa arma para combater os horrores e errores do mundo: “Sabeis agora porque tanto rio. / (…) / Rio-me, rides-vos vós, porque gelado / temos no ôco um centro de vazio / e a resistência a esse muito horror / nos forja a adaga deste rir mayor” (1991, p. 142).

Gilberto Mendonça Teles, em seu estudo sobre a influência de Camões na poesia brasileira, apresenta vários exemplos de paródias de Os Lusíadas: “uma história do humorismo e da sátira na poesia brasileira pode ser mais ou menos delineada através da influência camoniana que, dezoito anos depois da publicação de Os Lusíadas, já começava a gerar discursos paralelos, em forma de paródia” (TELES, 1979, p. 267). Para Luís de Sousa Rebelo, porém, o poema de António Quadros se distingue “das sátiras, imitações ou paródias que de Os Lusíadas se fizeram entre os séculos XVI e XIX, e até das que depois se lhes seguiram” (REBELO, 1987, p. 23), na medida em que As Quibíricas “não são uma paródia de Os Lusíadas, e quando o são é apenas de ocasionais passos do poema, mas, simultaneamente, um aprofundamento crítico do seu lado humanístico, o rompimento com a sua escrita e uma meditação do caráter ético e filosófico sobre um período de graves repercussões na vida nacional” (REBELO, 1987, p. 28).

Assim sendo, acredito que As Quibíricas, antes de serem somente um poema “anti-épico por natureza na ordem dos gêneros” (REBELO, 1987, p. 23) – definição dada por Jorge de Sena[4] e posteriormente utilizada por Rebelo –, podem ser lidas como uma sátira burlesca da epopéia camoniana. Aproveitando-me dos conceitos de Linda Hutcheon (1985), afirmo que o poema possui uma faceta extramural (a sátira) e outra intramural (o burlesco): extramural porque social e moral na sua intenção aprimoradora de refrear pelo ridículo os vícios e enganos da humanidade, tendo em vista a sua correção[5], e intramural porque seu alvo é também outro texto, no caso Os Lusíadas e a matéria épica. O burlesco é utilizado aqui como um recurso da sátira, que, por sua vez, constituiria no principal objetivo do poema, que tenciona a algo fora do texto, mas que emprega o burlesco como um veículo para alcançar o seu fim satírico ou corretivo[6].

Ao buscar compreender no seu passado o que levou Portugal à decadência, desvelando o mito sebástico e o desejo de expansão da Fé e do Império, o poema procura alertar o leitor do século XX do rumo que o país estava tomando, imerso na ditadura salazarista e sua política colonialista. Através da invenção de uma continuação para Os Lusíadas, António Quadros problematiza os alicerces da cultura portuguesa, mostrando uma nova leitura tanto para a epopéia camoniana quanto para a História de Portugal, cujas grandezas acabam ocultando mazelas que ainda merecem reflexão. Apesar de a ditadura ter sido enterrada junto com o sonho colonialista, a história não deve ser apagada: resgatar essa reflexão é o que almejamos ao desvendar estas Quibíricas. Cada um faz a homenagem que pode.

 

Referências bibliográficas

BOSI, Alfredo. Vox populi vs. Epos colonial: um parêntese camoniano e Notas. In: ______. Dialética da Colonização. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 37-46 e 387.

GARABATUS, Frey Ioannes. As Quybyrycas. 2. ed. Porto: Edições Afrontamento, 1991.

GENETTE, Gérard. Palimpsestes, la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982.

HUTCHEON, Linda. A Theory of Parody, the teaching of twentieth-century art forms. New York/London: Methuen, 1985.

OLIVEIRA, Paulo Motta. Relações entre literatura e história em Os Lusíadas. Veredas. Porto, v. 1, 1998, p. 35-48.

REBELO, Luís de Sousa. As Quibíricas de Grabato Dias ou o discurso da ruptura. Colóquio Letras. Lisboa, n. 99, 1987, p. 21-28.

SENA, Jorge de. Um imenso inédito semi-camoneano, e o menos que adiante se verá. In: GARABATUS, Frey Ioannes. As Quybyrycas. 2. ed. Porto: Edições Afrontamento, 1991, p. 15-37.

TELES, Gilberto Mendonça. Camões e a poesia brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979.

 

Notas


[1] Decidimos manter a ortografia original em todas as passagens retiradas de As Quibíricas, uma vez que, por ser uma tentativa de reprodução da linguagem épica do século XVI, a forma de sua escrita também possui um valor semântico.

[2] Tradução nossa do original: “le travestissement burlesque modifie donc le style sans modifier le sujet” (GENETTE, 1982, p. 35).

 [3] Tradução nossa do original: “la ‘disconvenance’ ou discordance stylistique s’établissant précisément entre la noblesse conservée des situations sociales (rois, princes, héros, etc.) et la vulgarité du récit, des discours tenus et des détails thématiques mis en oeuvre dans l’un et les autres” (GENETTE, 1982, p. 193).

 [4] Jorge de Sena, porém, define As Quibíricas como uma anti-epopéia utilizando um discurso paródico, no qual ridiculariza, numa nota de rodapé, a tendência da crítica moderna de inserir o prefixo “anti-” a tudo: “Ver o prestimoso ensaio de Jean Carriel des Oursins, L’Anti-Tout comme clé des structures modernes, Paris, 1972, que insere a decisiva questão do anti-herói, como anti-romance, anti-teatro, etc., no mais amplo e fundamental contexto da ideação abstrata das estruturas insignificantes” (1991, p. 16).

 [5] Tradução nossa do original: “satire (…) is extramural (social, moral) in its ameliorative aim to hold up to ridicule the vices and follies of mankind, with an eye to their correction” (HUTCHEON, 1985, p. 43).

 [6] Nessa passagem, Linda Hutcheon refere-se ao conceito de sátira paródica, que aqui estendemos para a sátira burlesca. Tradução nossa do original: “there is parodic satire (a type of the genre satire) which aims at something outside the text, but which employs parody as a vehicle to achieve its satiric or corrective end” (HUTCHEON, 1985, p. 62).

 

 

* Luciene Marie Pavanelo é Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP- Universidade de São Paulo.