1. Introdução
Uma obra tão densa quanto a de Jorge de Sena, que engloba não apenas uma vasta produção, mas uma verticalidade que não se contenta em (im)por-se limites, apresenta-se como um convite para as discussões acerca da chamada arte contemporânea, sobretudo a partir de um momento que não só a técnica e sua reprodutividade deram outra dimensão à arte, mas, e talvez aqui resida a maior força de se estudar a obra seniana, a técnica, boa ou má, chegou ao alcance de boa parte da população, de modo que publicar ou expor um trabalho passou a uma tarefa que seja uma quase autogerência. Para não ir tao longe, basta pensar na veiculação de textos através da internet.
Um dos problemas que poderiam ser aqui tratados seria o da legitimação da arte, em que indagações como quem legitima uma obra e a partir de qual critério se legitima uma obra deveriam ser detidamente trabalhadas. Este trabalho, porém, preocupar-se-á mais com um outro problema, é dizer, o da tradição. Isso não significa que a legitimação seja deixada totalmente à parte, mesmo porque, sendo o objeto o mesmo, as diversas questões que sobre ele são postas acabam por, de algum modo, tocar-se, sejam esses toques um movimento de aproximação ou repulsa.
A princípio, tratar de uma das formas de arte pareceria o mais conveniente por conta da extensão deste trabalho, já que cada manifestação artística possui os seus parâmetros estruturais [1] e históricos. No entanto, ao abordar a obra seniana, uma ou outra visita fora da literatura será necessária. Sena, como se sabe, entendeu-se bem com a poesia, com a prosa e com o teatro, além de uma obra crítica que inclui estudos sobre literatura em geral, diversas literaturas nacionais e demais artes. Em toda sua obra são encontradas inúmeras referências diretas ou indiretas à música e às artes plásticas. Foi, ademais, tradutor, tendo publicado o volume Poesia de 26 séculos, no qual ousou trazer à língua portuguesa poemas que vêm desde 700 a.C., como Arquíloco, a 1900, com Nietzsche. Cabe, ainda, recordar que este volume faz parte de um trabalho mais amplo proposto por Jorge de Sena, que inclui um segundo volume com a poesia do Século XX.
No prefácio do citado volume, Sena faz duas defesas que guiarão as indagações feitas por este trabalho, a saber: “a ideia de um ‘progresso’ em arte, que o século passado nos legou, como de um progresso da consciência, é inteiramente falsa” [2], e, “arcaizar os antigos é tão injusto para com eles, como só modernizá-los é irresponsável” [3]. Não restam dúvidas que Sena está a tratar da tradição e de como o artista atual – para evitar o termo contemporâneo – lida com ela. Ademais, não esquecer um poema central, “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”, para este peso da tradição, que o poeta, no caso de Sena, e o artista, de um modo geral, têm de carregar, seja como apropriação, seja como negação.
2. Poesia de 26 séculos
Tanto o prefácio quanto a nota de abertura deste volume foram escritos por Sena nos Estados Unidos, embora já na sua fase pós-exílio. Fatualmente, o prefácio pode ser lido apenas como uma apresentação do volume, e não um ensaio que trate das implicações de tal trabalho. Não por acaso, Sena intitula de “Introdução à primeira parte”, na qual ele indica ao leitor aquilo que está por vir. Como é também comum em Sena, naquilo que realizou na sua própria obra poética, ele pretende dar ao leitor certa instrumentalização para a leitura da obra. Esta espécie de advertência, que pede a atenção do leitor, pode ser acusada de 1) duvidar da capacidade do leitor e 2) causar uma limitação de sentido na obra. O leitor mais atento, porém, verá nesta advertência uma certa extensão da obra.
Os prefácios e introduções escritos por Sena podem ser lidos como uma defesa política de sua obra. É justamente esta defesa que se encontra na introdução do citado volume, em que Sena não está só a pedir uma atenção do leitor para os vinte e seis séculos que encontrará pela frente, mas uma postulação que implica a sua própria obra poética. Tendo em vista o imenso conhecimento de Sena sobre literatura, como pode ser constatado no seu trabalho crítico, a escolha dos poemas para esta antologia não deve ser dissociada da sua própria obra poética. Antes de ser um trabalho cuja erudição possa ser observado objetivamente, o volume Poesia 26 séculos apresenta uma afinidade do tradutor-poeta para com seus traduzidos. Isso fica bastante evidente na introdução quando Sena afirma “que este vasto livro significa sobretudo a minha voracidade poética, que sempre me levou a tentar transpor para o português algo do que, em poesia, me interessou e admiro” [4].
Observar alguns destes poemas pode trazer-nos possibilidades de resposta ao tema que trata da contemporaneidade na arte.
3. Fora do tempo, o tempo
No poema “A sua mulher”, de Décimo Magno Ausónio, do século IV, o tempo, mais que o amor, parece ser o tema primeiro.
Amor, vivamos como sempre, não esqueçamos
os doces nomes ditos na primeira noite,
e nunca venha o dia que nos veja velhos:
eu sempre o jovem teu, e tu a minha noiva.
Que mais do que Nestor provecto eu seja em anos,
e tu na idade venças a senil Sibila.
De tão extrema velhice ignoraremos tudo:
menos as ciências dela no escapar do tempo.
Há, porém, neste poema, o jogo que põe o confronto com o passado, o futuro e o desejo de eternidade. Sem analisar verso por verso, basta-nos observar o final do primeiro e do último versos. “Não esqueçamos” carrega o passado, já que apenas ele pode ser evitado de ser esquecido; carrega o futuro, porque não esquecer (o passado) implica uma continuidade. E carregar passado e futuro, concomitantemente, é a tentativa de “escapar do tempo”. Esta espécie de pedido de eternidade, que o poeta não faz a nenhum deus, mas a sua mulher, caberia apenas ao amor?
Antes que se possa afirmar ou negar a pergunta anterior, é necessário voltar ao tema da afinidade, que faz com que o poeta selecione o passado. Suas escolhas (re)definem a sua própria maneira de se posicionar diante da arte. Seu comportamento perante a tradição fá-lo moldar a sua obra, e, com ela, o seu contributo no olhar que a contemporaneidade, ou seja, que o seu tempo, lançará ao passado. Assim, instaura-se uma pequena tautologia, que afirmaria que todo poeta é contemporâneo do seu tempo. A aparente obviedade daria lugar a pensar uma arte contemporânea não a partir de um determinado ponto histórico absoluto, mas a partir de qual poeta se está a tratar.
O duro embate entre tradição e contemporaneidade passa, então, a ser disputado sobre dois pilares. Em um, a tradição se encontra mais poderosa e lança às gerações seguintes toda sua força. Dela, não estará livre nenhum artista que a suceda, como se a tradição fosse uma marca a ser carregada para o sempre. Em outro, a contemporaneidade detém o poder de escolha, de modo que é ela quem controla as forças lançadas pela tradição. Em “Idee zu einer allgemeinen Geschichte”, Kant identificou essa transferência pelo viés das gerações seguintes. Embora seu Schwerpunkt estivesse na questão política, a ideia em geral não terá de ser vista dissociada da arte. Já neste trabalho, foi ressaltado anteriormente a postura política de Jorge de Sena para com a sua – e qualquer – arte.
“Ohne Zweifel werden sie [as geracoes mais jovens] die [Last von Geschichte] der ältesten Zeit, von der ihnen die Urkunden längst erloschen sein dürften, nur aus dem Gesichtspunkte dessen, was sie interessiert, nämlich desjenigen, was Völker und Regierungen in weltbürgerlicher Absicht geleistet oder geschadet haben, schätzen” [5].[6]
Aqui, a segunda questão do prefácio de Sena é encontrada. A contemporaneidade, responsável por esta seleção, trará à luz aquilo que mais lhe seja pertinente, sem, no entanto, “arcaizar os antigos” ou “só modernizá-los”. Parece ser esta, também, uma resposta à primeira questão, pois se a contemporaneidade não arcaíza nem moderniza, ela, então, não supera a tradição, mas sim se põe ao lado, reivindica seu lugar na história da arte, anulando, decerto, qualquer ideia de progresso, ao menos enquanto este possa ser entendido como melhora.
4. Poetas imensos
A escolha, por mais que possa ser individual e baseada no critério de afinidade, respeita, em alguma medida, aquele peso lançado pelo passado, e que, ainda, perpassa por diversas épocas. Portanto, haverá na tradição, independentemente da escolha individual, poetas cuja sombra atravessará todas as épocas seguintes, de modo que calá-lo não será já uma questão de simples seleção, mas de negação do seu legado. Forma-se, assim, uma ideia de modelo a ser admirado e combatido.
Para o caso seniano, Camões e Pessoa ocuparam o papel de modelos [7], o que demonstra como o autor, ainda que muito preparado, não se livrou de uma tradição que, enquanto poeta português, lhe foi submetida.
No que diz respeito ao autor d’Os Lusíadas, Sena não nega sua admiração e é mesmo um dos maiores estudiosos de Camões de que se tem notícia. Em relação ao seu quase contemporâneo (Pessoa morre pouco depois de Sena completar 16 anos), Jorge de Sena não demonstra o mesmo apreço, ainda que não consiga se libertar, na sua obra, do autor da poética do fingimento. Segundo Luis Maffei, “uma das maneiras de Sena contornar Pessoa reside na constante procura que o autor de Exorcismos empreendeu em direção a Camões” [8]. Ao fazer este empreendimento, Sena não apenas se curva diante do vate, como obriga a que todos os demais, entre eles Pessoa, também se curvem. O mais radical movimento feito por Sena é o poema “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”.
Há, neste poema, um eu lírico que supera uma simples condição de alter ego de Jorge de Sena, a notar-se já a partir do título, na terceira pessoa. Pode-se dizer que é justamente Sena quem dá a fala, na sua própria obra, a Camões, e vê-se obrigado a ouvir do mestre as maiores advertências.
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados. [9]
Existe no poema um peso da tradição que chega a colocar a citada afirmação do Sena crítico, para quem não há progresso em arte, num questionamento inverso, se, ao assumir Camões como detentor da primazia, não estariam os outros poetas a ser tão-somente um simulacro, apontando um regresso na arte.
Não ficam dúvidas de que Sena negaria esta afirmativa, e que trataria a tradição e a relação de progresso de outro modo, ainda que ele próprio – ou Camões? – tenha, em alguma medida, feito surgir um breve paradoxo, desfeito em versos mais adiante.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríes feito. [10]
Nesta passagem, que vai do décimo segundo ao vigésimo versos, dos vinte e quatro pelos quais o poema é composto, Camões, irado pelas pilhagens dos seus contemporâneos – não podemos deixar o título de lado – parece lançar uma maldição sarcástica aos ouvintes da sua imprecação – tampouco podemos deixar de lado a forte tradição oral da poesia, sobretudo em tempos mais próximos ao de Camões –, de modo a intimidá-los, a retirar-lhes o poder para uma produção poética própria, liberta da mera copiagem.
O grande poeta, no entanto, não se sentirá melindrado por esta terrível ameaça, e, respeitoso para com seu mestre, saberá demonstrar-lhe as suas marcas individuais. Não é preciso, portanto, que o poeta, grande que é, dirija-se aos seus contemporâneos de forma tão incisiva. E se Camões se dirigia aos menores, estes decerto sequer precisavam de ouvi-lo para seguir ou não as suas pilhagens mal feitas e inacabadas.
Se esta leitura é válida, Sena traz à luz três questões muito presentes: reconhece a grandeza de Camões, ao mesmo tempo que sabe que ele próprio é grande poeta; reconhece a grandeza de Pessoa, que indubitavelmente é um dos contemporâneos camonianos que souberam deixar sua própria marca; anula uma parte de sua atividade crítica, voltada a reclamar do tratamento que lhe era dado em Portugal pelos poetas medíocres.
Se os grandes poetas são leitores de outros grandes poetas, Sena há de assumir a grandeza de Pessoa, mesmo que no movimento de negação, em suas leituras deste poeta. E, ao propor a ideia de um não progresso em arte, aceitar que todos foram – e são – grandes em todos os tempos, pois “if you compare several representative passages of the greatest poetry you see how great is the variety of types of combination“ [11].
O poema aqui trabalhado se encontra no volume Metamorfoses, de 1963, onde “o sujeito poético apresenta-se primeiro como espectador e logo como intérprete de várias produções estéticas“ [12], por conta das gravuras que acompanham o livro, reprodução de obras de arte, como quadros e esculturas. Mesmo nas edições em que as gravuras não possam ser vistas, a ideia da dualidade espectador-intérprete permanece, só que intrínseca ao poema.
5. Até que a morte nos separe
Ao observar-se a data no final do poema “Camões dirige-se aos seus contemporâneos“, lê-se 11-6-1961, data na qual, segundo consta, Camões já estava morto. Mas, se estava morto, como foi possível ser-lhe dado o direito de fala? Seria a poética do fingimento, do negado Pessoa, a entrar na obra seniana? [13]
O caso da morte, bem como o de dar voz aos mortos não é uma exceção na obra de Jorge de Sena. Na citada antologia, o tradutor Sena, que sequer dominava todas as línguas nas quais os poemas originais foram escritos, trouxe para o seu tempo, e, por que não dizer, para qualquer tempo posterior ao seu, muitas das vozes que atravessaram vinte e seis séculos de história. Trouxe-as em língua portuguesa, a sua, a de Pessoa e Camões.
Para além de um puro respeito para com a tradição, a tarefa que faz Sena, ao incluir os mortos no tempo dos vivos, é uma postura sua em relação à história da humanidade. A arte, profunda atividade humana, não pode ter seus objetos deitados fora após a morte de um indivíduo que a tenha feito. Se o indivíduo não consegue superar esta condição humana, dura e até mesquinha, da morte, aquilo que ele deixa no mundo, no caso, a obra de arte, passa a ser um bem para toda a humanidade.
No longo poema “A Morte, o Espaço, a Eternidade“, o eu lírico nos permite ler essa ideia acima tratada:
Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
(…)
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos. [14]
Poema também presente em Metamorfoses, “A Morte, o Espaço, a Eternidade“ vem acompanhado da imagem do Sputnik (Спутник, em russo), que, na leitura de Antonio M.A. Igrejas, “indica o presente e o potencial futuro tecnológico e civilizacional“ [15], pois
“a entrada no Espaço marca pela primeira vez a evasão à uma condição térrea e a entrada literal no universo de possibilidades civilizacionais, científicas e de combate à uma desnatural continuidade. Na sua selecção, o universo poético do livro isola eventos que imbui a obra de mortes ressuscitadas pela voz poética.”[16]
O critério seniano mostra-se tão forte, que nem o seu maravilhamento com o avanço tecnológico que transcorria no final dos anos 50, início dos 60, desviou-lhe o olhar para afirmar que “a ideia de progresso em arte é falsa“. Viu, assim como Kant com as descobertas de Copérnico, que a perspectiva do seu tempo se alterava, e devia mesmo ser alterada, sem que isso, no entanto, implicasse na anulação do passado. Nenhuma alteração significava ser melhor [17].
No seu humanismo-histórico, Sena abre este poema com um aparente inconformismo que logo se explicará como um processo que vai para além do indivíduo, para se tornar totalizante e incluir toda a humanidade. É pouco provável ler neste poema a morte como um fardo, do qual o indivíduo, condenado, não se pode desvencilhar. Isso não significa, porém, vê-la positivamente.
Em um dos nove fragmentos de Safo que Sena inclui na sua antologia aparece mais explicitamente essa ideia:
É um mal a morte,
E os deuses assim pensam:
Ou já estariam mortos,
Há muito, muito tempo… [18]
Também os poetas assim pensam, pode-se concluir, e se não podem livrar-se da morte física, contornam-na pela sua obra. Por isso, quando o eu-lírico seniano diz “Não foi para morrer que nós nascemos“[19], pode-se compreender esta frase por duas vias. A primeira se dirige a toda a humanidade, que, nos seus múltiplos desenvolvimentos, incluindo a arte, não se encerra num único tempo, não se restringe à experiência de vidas em particular. A segunda via seria a que toca exclusivamente aos poetas, de modo que apenas um ser poético poderia pronunciar esta frase, que, já aqui, converteu-se em verso.
O poeta vivo estará, então, em constante angústia. Não tanto por ser ele o próximo morto a ter voz em tempos futuros, mas porque, na sua inglória tarefa, encontrará interlocutores, os poetas mortos, por demais atentos, cujas respostas ele próprio terá de alcançar. Este esforço lançará o poeta a experiências de sofrimento e dor, matéria basilar da sua arte.
No poema “Artemidoro”, dividido em duas estrofes, o eu-lírico se dirige à múmia que se encontra no Museu Britânico, levantando questões como se fosse um visitante do museu, parado diante do agora convertido em objeto de arte. Numa reflexão serena, o eu-lírico discorre sobre diversos aspectos na longa primera estrofe, de sessenta versos, em que algumas de suas ideias nos chegam a lembrar Vieira.
A múmia que ficou de ti (só ressequida pele
rasgada aqui e ali, mostrando os ossos
por onde as sujas ligaduras se soltaram)
não se distingue de outras na fileira
envidraçada em que há decénios pó,
um fino pó, será de ti ou Londres. [20]
Na segunda estrofe, de apenas dez versos, o eu-lírico desespera-se pela forte imagem que vê diante de si, imagem aterrorizante que lhe impõe uma separação de séculos, ainda que a tão poucos metros de distância.
Artemidoro: escuta! No silêncio ouves
os “buses“ que passam, a gralhada que
em salas mais curiosas visitantes fazem.
Que mais escutará com esses olhos que ouvem
atentamente os breves estalidos que o eterno,
como o romper da aurora nas estátuas,
provoca em nós e em nossas coisas, fissurando
a pouco e pouco a carne, a pele, os ossos, tudo
o que de deuses palpita e ressucita em nós
e em que talvez, sereno mercador, nem mesmo acreditasses?
Nota-se, além da alteração do modo como o eu-lírico se dirige a “Artemidoro”, um movimento sincrético, estabelecido pela própria presença de uma múmia ao mesmo tempo que “buses” passam. Aqui, já se situa um poeta que fala desde um tempo moderno, quando as cidades, no caso as metrópoles, e todo seu desdobramento caótico, ocupam um lugar de destaque nas produções artísticas.
A identificação do tempo do poeta ajuda a evitar uma consideração por demais reducionista no entendimento do termo contemporâneo, que poderia propor, a partir da inclusão dos mortos no tempo dos vivos, um absurdo apagamento cronológico, como se todas as épocas coexistissem na mesma medida. Numa leve rotação, cabe dizer que não é o poeta morto que nos fala, mas nós que lhe damos uma voz – como Sena fez em “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”.
No retorno à citação a Kant acima feita, recorda-se o poder de seleção dos vivos, ainda que a estes, por razões óbvias, lhes seja imposto um limite, uma não liberdade de querer incluir aquilo que se queira. É este o movimento da tradição, no caso seniano representado por um Camões ameaçador.
6. Das outras artes
Não apenas poetas mortos perambulam pela contemporaneidade. Pintores, escultures, músicos, todos estão presentes, mesmo após a morte. No caso da música, poder-se-ia mesmo falar numa radicalização, já que, no caso de músicos que não gravaram as suas obras, geralmente por razões de (falta de) reprodutividade técnica, o que temos são textos mudos, cujas vozes saem de outras mãos e bocas. O intérprete, assim, passa a ser um mediador entre o compositor, morto, e o ouvinte.
O poeta, muitas vezes, também se interpõe entre o compositor, o pintor ou o escultor, e o leitor da obra. Não se torna, porém, um executante. Sua medida aqui é a da apropriação, ao incorporar na estrutura da obra poética uma linguagem que lhe é alheia.
Em Jorge de Sena, não são poucos os momentos em que há a aparição explícita de um artista de fora da poesia. Para ficar em dois exemplos, recupero os poemas “’A Morta’, de Rembrandt” e “Water Music, de Händel”. Nunca é exagerado lembrar que em ambos os poemas a experiência da visão e a experiência da audição, para além da experiência de ver e ouvir o próprio poema, não estão presentes. Se o leitor conhece a obra de Rembrandt, poderá evocá-la na sua memória. O mesmo com a música de Händel. Caso o leitor não conheça nenhuma das obras, ainda assim a sua experiência com o poema lhe permitirá ter as sensações que o poeta buscou transpor para sua linguagem.
Morta. Apenas morta. Nada mais que morta.
Não parece dormir. Nem se dirá
que sonha ou que repousa ou que da vida
levou consigo o mais que não viveu.
Parece que está morta e nada mais parece.
E tudo se compõe, dispõe e harmoniza
para que a morte seja apenas sua [21].
Os últimos dois versos da primeira estrofe parecem pintar o quadro desde o interior, ampliando sua capacidade poética, levando ao apreciador outras dimensões da obra de Rembrandt, mesmo aquelas já antes percebidas, mas ainda não carregadas à linguagem verbal.
Esta passagem de uma linguagem a outra é, mais que uma simples tradução, uma força de diálogos entre artes, em que não deve haver prejuízo nem para uma nem para outra forma. Não é, assim, um quadro explicado pelo poema. Tampouco um texto crítico em forma de versos. Permanecem as independências, o que não significa manter-se um isolamento.
Um encontro de formas e estruturas, que a partir deste e de demais poemas de Jorge de Sena poderiam oferecer um debate mais amplo, ocupa uma posição relevante nas questões de arte contemporânea. Não apenas pelas referidas acima, naquilo que se pergunta o que pode ser contemporaneidade enquanto o artista de cada época se depara com séculos atrás de si. A “mistura” de formas tem permitido, para o bem e para o mal, novas concepções estéticas. Isso não significa que o adjetivo “novo”, aqui, esteja bem empregado.
Sobretudo nas artes plásticas e na música, mais que na literatura, a tecnologia tem levado a artistas serem tomados como “novos”, quando na verdade o único que fazem é revestir com novos elementos aquilo que já estava concebido esteticamente em obras anteriores. Deste modo, a ausência de “progresso” na arte não chega a ser sequer aquela defendida por Sena. Não é o artista, com estes elementos novos aplicados a uma estética “velha”, que dá conta do seu tempo, sem precisar “progredir” o anterior, mas sim o artista que nem dá conta do seu tempo, nem estipula nenhum “avanço” das formas estéticas [22].
Como este trabalho não pode contemplar esta questão, deixo apenas o exemplo, encontrado na música, do tango argentino. O chamado tango eletrônico não é nada mais que uma repetição da maneira de se compor tango, agora com efeitos e peripécias sonoras realizadas por instrumentos que o tango desconhecia, ou, até, por meros artifícios tecnológicos, como a distorção, a duplicação, etc.
7. “Há que deixar na terra as ervas e a tristeza”
Como já apontado anteriormente neste trabalho, a recolha de vinte e seis séculos de poesia ultrapassa os limites da erudição “barata”. Não somente pela questão da afinidade, antes referida, mas também por aquilo que esta postura possui de ético e político.
Se as gerações mais jovens terão o poder de decidir o que lhe é pertinente no que diz respeito à tradição, cabe às gerações anteriores prepará-los para esta escolha. O modo mais adequado, senão o único, é o fornecimento da educação, não enquanto mecanismo através do qual se pretenda impor aquilo que se queira, mas oferecer meios e conhecimentos para que se possa chegar ao julgamento próprio.
Não se pode apostar, e não é disso que se trata, mas provavelmente Jorge de Sena terá o seu espaço na Poesia de 27 séculos, ainda a ser antologizada por algum espírito contemporâneo.
8. Bibliografia
SENA, Jorge de. A Arte de Jorge de Sena – Uma Antologia. Org. Jorge Fazenda Lourenço. Lisboa: Relógio D’água, 2004
______________ Poesia de 26 séculos. De Arquíloco a Nietzsche. Porto: ASA, 2001.
ELIOT, T.S. “Traditional and the Individual Talent”. In: CON DAVIS, Robert. Contemporary literary criticism. New York/London: Longman, 1986
IGREJAS, António M.A. „Metaformoses: contingências de historicidade poética“. In: LOURENÇO, Jorge Fazenda. FAGUNDES, Francisco Cota (Org.) Jorge de Sena – novas perspectivas, 30 anos depois. Lisboa: Universidade Católica, 2009
KANT, Immanuel. Schriften zur Anthropologie, Geschichtsphilosophie, Politik und Pädagogik 1. Frankfurt am M.: Surhkamp, 1977
_______________ Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. Trad. Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MAFFEI, Luis. O poeta em poetas: alguns Camões do século XX. Revista Camoniana, 3ª série, vol. 17. Bauru: Núcleo de Estudos Luso-Brasileiros da Univerisdade do Sagrado Coração, 2005
Notas:
1. Aqui, cabe ressaltar que um estruturalismo que nos ensine a entender a estrutura das obras não deve ser deitado fora, não significando que deva ser seguido enquanto escola. Este trabalho, inclusive, prima por um não-partidarismo.
2. Sena, 2001. p. 18 e ss.
3. Idem. p. 19
4. Idem. p. 18
5. Kant, 1977. p. 50
6. „Sem dúvida eles [nossos descendentes longínquos] avaliarão a história dos tempos mais antigos, da qual os documentos poderiam estar perdidos há muito, somente do ponto de vista daquilo que lhes interessa, ou seja, o que povos e governos fizeram de positivo e prejudicial de um ponto de vista cosmopolita“. Kant, 2003, p. 22.
7. Refiro-me a modelo, aqui, como referência.
8. Maffei, 2005. p. 160
9. Sena, 2004. p. 75 e ss.
10. Idem. p. 76
11. Eliot, 1986. p. 30. “Se se comparam várias passagens representativas dos grandes poetas, ver-se-á tão grande é a variedade de tipos combinação”.
12. Igrejas, 2009. p. 109
13. Aqui, uma problematização de certos topoi da tradição literária fica somente sugerida.
14. Idem. p. 69
15. Igrejas, 2009. p. 122
16. Idem. p. 122
17. A comparação com Kant, aqui, é meramente pontual, haja vista que o filósofo alemão apontava uma melhoria (progresso) da moral (Sittlichkeit).
18. Sena, 2001. p. 28
19. Sena 2004, p. 68
20. Idem. p. 59
21. Idem. p.61
22. Cabe marcar que a defesa de Sena quanto à ausência de “progresso” parte de uma ideia que não entende uma melhoria de uma nova forma em detrimento da outra. Isso não quer dizer que não se deva buscar sempre uma nova forma, muito pelo contrário, o artista deve ser sempre um insatisfeito, pelo menos no tocante ao propósito estético.