Dos mais de trinta textos críticos que João Gaspar Simões dedicou à obra de Jorge de Sena selecionamos o artigo do jornal Diário de Notícias que a seguir se transcreve, escrito dois anos e meio após o falecimento do poeta d'As Evidências. Pela trajetória intelectual e pelo pioneirismo de Gaspar Simões nos estudos pessoanos, com todas as restrições que hoje se lhe possam fazer, é inegável a importância, dentre outras muito pertinentes, das afirmações finais, a relacionar Pessoa e Sena.
Entre a publicação, em 1979, por Eugénio Lisboa, do volume Versos e Alguma Prosa de Jorge de Sena, obra destinada ao vasto público «estrangeirado» das comunidades portuguesas esparsas pelo Mundo, no âmbito das comemorações camonianas, ou do Dia de Camões, e o aparecimento da 2.a edição aumentada de O Reino da Estupidez — I, do mesmo Jorge de Sena (Morais), se inscreve a problemática do presente artigo. Por um lado, Jorge de Sena era um «estrangeirado» e, pelo outro, alguém que no estrangeiro se refugiara em pleno «reino da estupidez» nacional. Não o diz ele taxativamente? Não. Tanto mais que em termos de humor (ou de ironia, se quiserem), o «Reino da Estupidez» cantado, num poema herói-cómico, do poeta brasileiro Francisco de Melo Franco, que, por volta de 1785, o compôs em Coimbra e que viu a luz em 1819, teria deixado de ser «reino da Estupidez», para, continuando a ser estúpido, de alguma forma assumir, no tempo presente, foros de «reino da Inteligência». «Com efeito», escreve Jorge de Sena no capítulo desta nova edição do seu livro epigrafado com o título do poema de Melo Franco, «em 179 anos, as coisas mudaram muito. Já não é a Estupidez quem reina. Os seus lugares-tenentes, que, segundo Melo Franco, eram a Inveja, a Raiva, o Fanatismo, a Hipocrisia e a Superstição, abandonaram-na, mudaram de vida, sentindo quanto, com o esclarecimento e a libertação dos povos, a causa da Estupidez era urna causa perdida. E aderiram fervorosamente à Inteligência: são estudiosos, letrados, subtis, apoiam tudo que seja cultura, interessam-se por tudo que seja elevada expressão de pensamento, e a poesia, a crítica, a ficção e o teatro merecem-lhes a melhor e a mais devotada das atenções, Reina, pois, admirada, incontestada e intangível, a Inteligência». Ironicamente — mais à letra, sarcasticamente, que em Jorge de Sena há mais sarcasmo que ironia (ou humor) — , em 1956, data deste capítulo do seu livro, cuja primeira edição remonta a 1961, três anos antes do seu exílio (Jorge de Sena fixa-se no Brasil em 1959, onde adquire a nacionalidade brasileira, transitando, depois, para os Estados Unidos, onde morre em 1978, brasileiro ainda e ainda mais «estrangeirado»), ironicamente (ou sarcasticamente) o «reino da Estupidez», então convertido à «Inteligência», (da mesma maneira que os hebreus, no tempo da Inquisição, se convertiam ao catolicismo) atingira o auge em Portugal. Para fugir-lhe é que Jorge de Sena se exilara, «estrangeirando-se»? De certo modo, conquanto ele não isente o Brasil — pelo menos o Brasil—, dos «lugares–tenentes» que, segundo Melo Franco, constituíam o séquito do «Reino da Estupidez» ou de quem nesse reino reinava. E se era certo que tal «Estupidez» se convertera entretanto à «Inteligência» era porque, servindo esta, aqueles que a serviam fingiam apenas servi-la, numa espécie de culto externo, continuando, cristãos-novos ou, como quem diz, «inteligentes novos», a praticar, intramuros, secretamente, o culto antigo, falsos devotos da Inteligência que eram, arreigada que estava neles, embora sob novas formas, a fidelidade à Estupidez.
Eugénio Lisboa analisa a situação deste «estrangeirado» que, como tantos outros portugueses, o foi, mesmo sem sequer ter abandonado as fronteiras geográficas da pátria, «estrangeirado» intramuros, situação não menos dramática do que a dos «estrangeirados» extramuros. E fá-lo, em parte, pela necessidade em que está de apresentar ao leitor médio de um país onde, por assim dizer, não há leitores médios, não há cultura média, não há cultura, numa palavra, isto é, não há aquilo sem o que, muito dificilmente, pode haver leitores capazes de entenderem a obra de um escritor — esse o caso de Jorge de Sena — que escreveu sempre não só como «estrangeirado», mas, coisa ainda mais grave, «estrangeirado» dentro da sua própria pátria, dentro da sua própria cultura, cultura que não há. A selecção a que submete os textos que vieram a formar estes Versos e Alguma Prosa de Jorge de Sena é a única «possível» tendo em conta o leitor a que esses textos se destinam. «Não fazia realmente sentido», escreve o seleccionador e prefaciador da antologia em causa, «irmos recolher determinados textos, só porque são notáveis, se a sua acessibilidade ficasse reduzida a um pequeno núcleo reduzidíssimo de portugueses emigrados». E, de facto, não fazia. Mas a nossa pergunta visa mais fundo: serão estes textos seleccionados com vista a esse público reduzido de emigrados, e tendo em conta a sua débil cultura, acessíveis ao leitor médio não emigrado, aquele leitor que se pressupõe constituir o common reader nacional? Em nossa opinião, Jorge de Sena, não só pelo que nele se admite como peculiaridade do «estrangeirado», mas também pelo que se admite em qualquer português da cultura pressuposta num escritor do seu nível, estará sempre além do alvo do leitor médio, constituirá sempre, como sempre constituiu, entre nós, o escol de intelectuais da sua estirpe — intelectuais que servem a Inteligência e não a Estupidez —, o primeiro plano de uma cultura a que falta pano de fundo.
Quem, entre nós, não foi ou súbdito do «reino da Estupidez» ou súbdito do «reino da Inteligência» tal como o concebe, a esse reino, o Jorge de Sena de 56 (e naturalmente o de 78, data de sua morte), muito dificllmente obtém do leitor médio — daquele que se pressupõe culto ao nível da cultura do país, cultura que não há, segundo Jorge de Sena—, a acessibilidade necessária pura de se seleccionarem textos ad hoc susceptíveis de por elo serem entendidos, tanto mais que esses textos, mesmo ad hoc seleccionados, continuam a estar acima do nível médio da cultura do país.
Estes lugares-comuns merecem ser comentados muito particularmente no caso vertente, uma vez que com Jorge de Sena se dá o que, de certo modo, mais dificilmente se entende que é o entender-se porquê um escritor que se exila e desnacionaliza se «estrangeiriza» mental e geograficamente, o não faz em tal medida que passa a escrever noutra língua —não, claro, em brasileiro, língua que ainda há, mas em inglês, língua que é a dos norte-americanos, dentro de cujo âmbito Jorge de Sena viveu e trabalhou nas quase duas últimas décadas da sua vida. Já uma vez aqui analisámos as circuns-l.melas dramáticas deste caso —o caso de Jorge de Sena -, que é, no fim de contas, o caso de todo o escritor português que se «estrangeiriza» mental ou geograficamente, muito em particular geograficamente. Dissemos então desconhecer qualquer grande escritor português que houvesse renegado a sua língua, «estrangeirando-se» ao ponto de metamorfosear-se em escritor de outra língua. E se ressalvámos o caso dos nossos escritores quinhentistas — e alguns seiscentistas — foi para lhe explicarmos a singularidade linguística. Em verdade até mesmo aquele que como que abjurou por completo da sua língua pátria —Jorge de Montemor — , nos deixou alguns versos no idioma vernáculo, sendo a Iíngua em nome da qual abjurou a própria, a língua que mais perto estava da sua. Nos séculos xv, xvi e xvii o castelhano ainda era parte do português ou melhor, o português ainda era parte do castelhano. Mas, para além destes casos de bilinguismo — o caso do próprio Camões —, que outros casos há de «estrangeirismo» português a cem por cento? Sim, que grande escritor português pôde abjurar da sua língua e da sua cultum. — cultura que Jorge de Sena dizia não haver , para vir a ser grande em cultura alheia? Nenhum. O Pessoa, que esteve como que naturalizado inglês, desnaturai!zou-se inglês para renaturalizar-se português. E, se o não tivesse feito, receamos muito que, noutra língua -noutra pátria — a sua personalidade se não houvesse alçado ao nível a que veramente se alçou. Ora que lição haverá a extrair disto mesmo, deste fatal condicionamento de uma cultura (ou dos representantes dela) que não se reconhece como grande cultura, tudo faz para se superar em termos de cultura «estrangeira», e, no fim de contas, se confina ao que a confina, se condena à sua própria condição de cultura quando cultura, reconhecidamente alta cultura, cultura estrangulada?
Não nos é permitido ler, indiferentemente, certos textos de Jorge de Sena — os textos como a maioria daqueles que formam O Reino da Estupidez-1 —, esses textos onde ele acusa sem piedade os limites compassivamente aceites pela maioria dos homens cultos portugueses, limites esses que Jorge de Sena tão cruelmente castiga, porque, afinal, muito cruamente os percebe e define. E porquê, sim, porque os não podemos ler indiferente? Por nos vermos retratados neles, nos termos cruéis em que Jorge de Sena os castiga? Talvez. Mas, mais ainda, por nos parecer que um homem da estatura mental do autor de Poesia III (Morais), obra entretanto vinda a lume, dessa obra e de tantas outras de alto coturno, se não devia ter preocupado tanto com aquilo que ele próprio superou e de que ele próprio muito conscientemente quis exilar-se — exilando-se. Não haverá nisso mesmo, no travo amargo com que ele a cada passo satiriza O Reino da Estupidez que é a cultura portuguesa, algo que o chumba a essa pátria castigadamente estúpida, tão castigadamente estúpida que ainda continua a ser estúpida mesmo depois de ter adoptado por lema a Inteligência? Era tarde, sem duvida, em 59, aos quarenta anos, na altura em que se exila para o Brasil, poder Jorge de Sena renegar a sua língua (e essa renegação só seria legítima quando ele se instala na Amérioa do Norte, em 1965, já com quarenta e seis anos), naturalizando-se noutra, na língua inglesa. Autores que renegaram a língua portuguesa para serem grandes em alheia língua só conhecemos um, que não sabemos sequer se ohegou a falar português, o norte-americano Dos Passos. Mas o que punge nas páginas quer poéticas quer prosaicas — críticas ou não críticas de Jorge de Sena é o fragor do seu sarcasmo, a ferocidade do seu humor, tendo em vista a cultura que, de modo algum, renega, uma vez que, renegando-a, seria como renegar-se a si próprio. Também para ele a sua «pátria era a língua portuguesa».
Mas talvez até mesmo por isso, porque era nele tão lucidamente ácida a consciência de que não lhe era possível renegar essa «pátria», chega a afligir-nos a sádica lucidez com que satiriza essa própria pátria, a pátria que é a da cultura que, no fim de contas, não pôde deixar de ser a sua, e de que ele, no fim de contas, não pode deixar de ser rebento. A sua obra está feita, o seu lugar na cultura portuguesa é grande — é mesmo imenso. Não podemos, contudo, deixar de referenciar a profunda contradição entre o que nele fatalmente era português — mácula de uma cultura alienada – e o que nele debalde parecia tudo fazer para deixar de o ser, deixar de ser esse mesmo português, sem cuja cultura boa ou má, viciosa ou não, «Estúpida» ou «Inteligente», nada seria; nem ele, nem a obra que nos legou. Há momentos em que pensamos em Jorge de Sena como se víssemos nele, à semelhança do que aconteceu com Pessoa, «supra-Camões», uma espécie de «supra-Pessoa». Em verdade, se Fernando Pessoa pode hoje ser encarado como a encarnação do por ele próprio anunciado «supra-Camões», talvez nos seja permitido admitir que em Jorge de Sena se perfila uma sorte de "supra-Pessoa". Nem Pessoa era possível em Portugal . Caso não tivesse havido Camões, nem Sena se nos afigura legítimo entre nós, caso não tivesse existido Pessoa. E porquê? Porque ambos envolvem toda a cultura portuguesa numa problemática de totalidade, só totalidade porque é problemática, e só problemática por inserir-se numa tradição cultural que nem mesmo chegaria a ser tradição cultural, caso não tivesse havido antes: Camões e Pessoa. É cedo para levarmos mais longe o paralelo. Mas o paralelo existe. E até em termos de naturalização, no caso de um — o de Pessoa —, e de desnaturalização, no caso de outro — o de Sena. Tanto este como aquele não puderam subsistir desnaturalizados. Tanto este como aquele representam, alego ricamente, a impraticabilidade de qualquer desnaturalização em quem nasceu, simultânea e fatalmente, em Portugal e no idioma português.
(in Diário de Notícias, caderno «Cultura», Lisboa, 31.1.1980.)