Uma substancial e fina leitura de Peregrinatio ad loca infecta, pelo olhar arguto de António Carlos Cortez, que muito gentilmente nos faculta seu texto "em primeira mão".
A Mécia de Sena, com quem me correspondi, por carta, entre 1997 e 1998, recordando as suas respostas, generosas e cordiais, num papel quase vegetal e em que se firmavam palavras que não poderei esquecer. A Jorge Fazenda Lourenço, pelo seu amor à poesia, tendo na lembrança o efeito.
«Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído e foi roubado, e foi
privado em extremo de justiça justa […]»
Jorge de Sena, in Poesia-III, Lisboa, Ed. 70, 1989, p.48
I
Poderia ser este o momento em que, chegados a uma situação de sobrevivência pátria, os portugueses se interrogassem sobre que personalidades, igualmente portuguesas, os interrogaram, a eles (a nós) portugueses. Poderia ser também este o momento em que, para além de uma questão de sobrevivência económica e mental do país, fôssemos todos levados a um movimento de redescoberta daqueles que, como Sena, ousaram agir em nome de si e dos seus conterrâneos, na esperança (talvez cega e vã) de que, um dia, os seus contemporâneos os viessem a ler, a saber um pouco mais sobre quem são ou se pensam ser; sobre o que foram ou imaginaram ter sido.
Mas este é um momento – o de Portugal e o da Europa (do Mundo, em suma), em 2011 – em que poucos são os que percebem que o nosso presente histórico foi já previsto em múltiplos passados. Este é o momento em que o mundo ocidental, a sua cultura, ou se questiona em termos de civilização ou soçobra, gradualmente, como é também próprio de todas as civilizações…
Poucos saberão, na verdade, perceber como, nas artes em geral e na poesia em particular, o mundo é quase sempre antecipado, nas suas misérias e nas suas grandezas, nas suas esperanças e frustrações. Paradigmático é o mito romântico de um Camões que, ao morrer, se despede do país dizendo: «Morro, mas a pátria morre comigo». Pode muito bem ser um mito (com tudo o que o mito encerra de verdade e fantasia… que não é menos verdade), mas mostra exemplarmente como aos poetas imorredoiros, para lembrar Fiama, o futuro é o presente prolongando-se no tempo.
Se os poetas fundam alguma coisa é, justamente, o futuro. Mas fundam-no por entenderem a época a que pertencerem, e por saberem, de algum modo, que estão ligados a um elo fortíssimo de vozes e visões que, encadeadas entre si, constroem a tradição, a cultura e a memória, sem as quais o futuro não se integra numa compreensão dialéctica dos factos. Assim, a cultura é sempre um produto e um processo – ou é um compósito de produtos, de que a poesia é um dos mais dignos, e um complexo de processos que se entrecruzam: processos humanos, políticos, estéticos, económicos. O poeta, que vive dentro e para a compreensão desse produto e processso que é a cultura, traz consigo uma vontade de compreensão dos fenómenos humanos (o maior dos quais é, sem dúvida, o próprio homem).
Jorge de Sena, que quis compreender o seu mundo e o seu tempo concebeu a poesia como testemunho e como entrega à «fiel dedicação à honra de estar vivo», defenderá uma noção de poesia como manifestação de uma vida, testemunhalmente comprometida, que se faz de um passado, se vive e respeita num presente e se abre a um futuro honrado. É talvez nesse sentido que o poeta de Pedra Filosofal se torna uma das vozes mais solidamente incómodas da cultura e da poesia portuguesas da segunda metade do século XX. Relembremos que o próprio trajecto do poeta de Perseguição (1942) se realiza sob o signo da heterodoxia, da ruptura e da independência quando, ainda jovem como crítico e homem de cultura, escrevendo sobre Pessoa no último número da revista presença, em 1940.
Nos anos trinta e quarenta a literatura portuguesa está ainda refém de duas tendências que, como sabemos, não seriam, quanto ao trabalho de linguagem e segundo a herança de invenção do primeiro modernismo, tão antagónicas quanto, à primeira vista, se pode julgar. Fernando Pessoa, cuja obra completa apenas sete após a sua morte passará a ter uma chancela forte, a Ática, em 1942, tinha publicado na revista presença alguns dos seus mais representativos poemas: «Autopsicografia», «Isto» ou «Tabacaria». Quanto à segunda figura de proa do Modernismo, Mário de Sá-Carneiro, é ele, o «esfinge gorda», o preferido pelos presencistas Régio, Casais e João Gaspar Simões, e é editado ou reeditado pelo órgão de Coimbra. Não sofre contestação a tese segundo a qual os nossos primeiros modernistas ficam a dever ao papel de divulgador de Régio (principalmente), o facto de se tornarem mais próximos dos leitores. E deste ponto de vista, na verdade, a presença desempenha o papel reservado, quantas vezes, aos que, justamente, ficam com a responsabilidade de revelar, estudar, canonizar quem os precede e é tido por mestre.
Pois bem, nessa década de trinta, pela actividade crítica presencista, dir-se-ia que a poesia portuguesa se irá pensar a si própria em função de dois problemas que são, hoje, faces de uma mesma moeda: o problema da poesia como expressão de uma sinceridade ou o problema da poesia como fingimento de uma personalidade.
De facto, é como uma «espada de Dâmocles» que a acusação de artifício, feita por Régio, pode ser hoje entendida, à distância de cerca de oitenta anos. Mas para o poeta que vem a ser Jorge de Sena não deixa de constituir um pesado fardo o pensar o fenómeno poético nesses termos – enquanto caminho bifurcado -, ou seja, dicotomia entre sinceridade e fingimento. E, em rigor, esse fardo ser-lhe-á tanto mais pesado quanto é certo não ser Pessoa um poeta reconhecido pelos responsáveis dos balanços literários realizados entre 1939 e 1943, algo que, para alguém que por essa época se lança na compreensão da poesia, poderia ter contribuído para uma incompleta leitura das conquistas expressivas de primeiro e segundo modernismos.
Aliás, a dificuldade de ler o «mistério» Pessoa, a «extrema dificuldade na compreensão do conceito estético, e não apenas periodológico, de modernismo», como explicita Jorge Fazenda Lourenço em A Poesia de Jorge de Sena – Testemunho, Metamorfose, Peregrinação (1998, 2010) acabavam por obnubilar a ampla compreensão dos matizes existentes entre «moderno» e «contemporâneo» e, sob este prisma, não espanta que fosse o Neo-realismo a assumir, em relação ao presencismo, uma posição de revolta ou, pelo menos, de incomodidade, questionando o papel do artista e do intelectual em face de um mundo que pedia, segundo a visão empenhada do poético desses anos trinta, a renúncia do formalismo em favor de uma implicação do Homem nos problemas do seu tempo. Não nos admire o elogio que recebe o livro de poesia de Joaquim Namorado, Sinfonia de Guerra, colectânea que revelava uma poesia «sem artificialismos», numa «simplicidade de linguagem [que enchia os versos] de um romantismo novo, humano, esclarecido, um novo heroísmo».
A aceitação de uma poética que não se concebia como aventura de linguagem e inquirição do sentido das palavras na relação do sujeito com o mundo, eis o que, de resto, acabava por familiarizar muitos dos poetas do movimento neo-realista com os poetas vindos da revista presença. Uma concepção de poesia que era mais um meio para ideologicamente se marcar uma posição partidária, do que propriamente uma ideia de poesia esteticamente autónoma, independente, centrada nas palavras, na linguagem e no seu trabalho.
Justamente, como dizíamos, Jorge de Sena responde a essa contraditória e dicotómica compreensão do fenómeno da poesia, instaurando uma revolução poetológica, de alcance fenomenológico, absolutamente inigualável e irrepetível no contexto da poesia portuguesa da segunda metade do século XX.
Contraditória era a poesia desses anos trinta e quarenta, por se ver se conceber o texto poético como meio e não como fim em si mesmo, e por o presencismo e o neo-realismo defenderem, de novo, um pérfido regresso ao romantismo ou idealismo líricos, mesmo se sob a capa de um «novo heroísmo. Ora, a reacção do poeta-crítico Jorge de Sena será uma reacção, antes de mais, estética, pela recusa da herança pós-simbolista que domina a linguagem presencista; mas também reacção contra ser a poesia um apêndice de quaisquer ideologias; reacção ainda a uma certa inflação surrealista, pese embora a aceitação do «potencial de transformação, a nível estético e estético» que esse movimento comportava.
Mas Sena igualmente rejeitará, do surrealismo, tudo quanto haja de inspiração ou impressão de imediatismo na expressão poética e restaura, do Modernismo, a certeza de que se fingimento é a mais alta forma de conhecimento, compete ao testemunho uma fidelidade integral do poeta no mundo. Assim, recusa-se o mascaramento ou projecção em um «outro» do sujeito empírico, e inverte-se a ideia de fingimento como moldagem, manipulação, dissimulação, tornando o conceito concomitante àquele testemunhar na linguagem o Homem e o mundo. No fim de contas, Sena apreende de Fernando Pessoa a axial certeza de que é no trabalho com palavras, originando uma realidade nova, que melhor se acede a um ser, a uma essência da linguagem, matéria que define o humano.
Nesse sentido, a obra seniana deve ser lida como radical proposta de linguagem poética, a que mais corajosamente combateu, no contexto das poéticas do século XX, essa «angústia da influência» estética que a sombra tutelar de Pessoa projectava por sobre toda a experiência de discurso de poesia pós-1935. No prefácio que redige em Julho de 1977 e no qual procede ao balanço do seu percurso de poeta, Sena considerará, justamente, o carácter independente da sua expressão literária e a sua compreensão fenomenológica da literatura. Uma poesia que, husserlianamente, está entre sujeito e mundo, entre Homem e objectos do conhecimento e se torna possibilidade cognoscitiva.
Pois bem, o que se nos afigura de capital importância é a capacidade de Sena, leitor de si mesmo, adicionar a uma poesia que nada sabe e questiona tudo, a certeza de que só independente pode ela ser pergunta e resposta relativamente a um mundo humano cruel, contraditório, hipócrita, pejado de aparências.
Assim, tenhamos em conta que o itinerário de Sena, podendo ser – como é – «testemunho, metamorfose e peregrinação», é também perseguição, independência e descrição. Diríamos, esclarecendo: perseguição de uma expressão dialéctica da literatura, por meio da qual o poema é representação de um «eu» que tudo perscruta e interroga, e é, em simultâneo, assunção do «desejo de independência partidária da poesia social»; e por isso pode ser ainda desejada independência de tudo quanto seja «qualquer disciplina ultrapassada», obedecendo àquele desejo de ser-se clássico e lapidar por oposição à poesia como sinónimo de absurdo ou linguagem do insólito, tal qual o surrealismo veiculava. Considerada ainda como descrição do mundo, já por meio do processo testemunhal que visa, lembremos: «dar expressão ao que o mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, não apenas de outros mundos […] possíveis, mas, principalmente, de outros que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que o sejam de facto», já por consciente domínio de uma tchné que fará do mundo um verdadeiro matter of fact linguístico a partir do qual o Homem delimita, restringe, selecciona, aliena o que da realidade lhe importa saber.
Quando, a pretexto de linguagem poética, Jorge de Sena fala em discursivismo, acabamos por nos encaminhar para o necessário plano da descrição em poesia, o qual, podendo não ser condição sine qua non para o objectivismo em poesia, pode, em todo o caso, esclarecer o poeta quanto a um ponto essencial – que a poesia e o poeta é que são objectivos em si, e que na relação do Homem com o mundo, objectividade não se separa de idealismo. Mas a poesia deve transfigurar estas dicotomias e fazer-se, como pretende Sena, «objectividade», ou melhor, encaminhamento da linguagem para um dos graus poéticos: ou objectividade ou subjectividade, sem cair na falsa questão ou confusão entre objecto e «subjectum». Em Peregrinatio ad Loca Infecta acabamos por perceber precisamente como podem esses diferentes estádios poéticos – o subjectivo e o objectivo – conviver numa mesma colectânea de poemas.
Sobretudo, cremos que, quando Sena defende uma linguagem descritiva, isto é, quando conscientemente ataca o excesso de lirismo, fá-lo de um ponto de vista conceptual, teorético, questionando não o lirismo em si mesmo, mas aquele lirismo vazio que não traz consigo senão um método para facilmente emocionar, redundando a leitura da poesia em mera distracção que, de resto, culturalmente se inscreve numa tradição lírica de que esteve quase sempre ausente o concreto da vida, fosse por imposições de teor político e concentracionário (Inquisição, Absolutismo, Ditaduras…) fosse por um arreigado saudosismo e gosto nefelibata que, salvo excepções, encaminhou a expressão literária portuguesa para um estéril refinamento formal sem conteúdo de facto. Requer o discurso de poesia uma singularíssima capacidade inventiva, resgatando o Homem das mistificações várias, edificando a sua experiência de mundo; uma edificação poética. Portanto, a poesia:
«[…] é (ou resulta de) um compromisso – e sublinhe-se de uma vez para sempre que esse compromisso se não destina a captar o «inexprimível» … -, evidente se torna que a poesia só existe como relação: a relação que relata e a relação que relaciona entre si duas entidades.»
Deste ponto de vista, ganha relevo o Sena diz em 1977 no prefácio a que nos referimos. Aí, numa recusa de todos os dogmatismos estéticos, reitera o que nos Cadernos tinha sido, logo de início, um posicionamento crítico relativamente às tendências dominantes. Se a poesia é um trabalho e um estabelecimento de relações, então, declara, ela é, intrisecamente, relacional e comunicante. Defender-se uma linguagem descritiva, por vezes anti-lírica (evitando o que o lirismo tem, para além de vago, de excessivamente exasperado ou declamatório) conduzirá à obtenção daquela «expressão lapidar» e daquele tom clássico que, proveniente de Camões e mesmo de alguns barrocos, tornam densa e penetrante a consciência linguística e a condição verbal do poema. Essa responsabilidade de escrever poesia, enquanto arte entre as artes, e o reflectir, por meio dela, e nela meditar, sobre música e pintura, humanidade e vida, amor e morte, prazer dos corpos e esse Deus inacessível e alheado dos homens, eis o que a rede temática seniana acabará por fazer ver aos seus leitores.
Por outro lado, sublinhe-se que para Jorge de Sena, a poesia, ao representar o seu «desejo de independência partidária da poesia social, um desejo de comprometimento humano da poesia pura» e aquela expressão lapidar, intimamente se relaciona com uma noção de poesia quer como testemunho, quer como implicação explicativa do texto acerca do mundo experimentado.
Os poemas de Sena obrigam quem escreve a tecer, de modo concentrado e analítico, um texto (ou um mundo-texto) que se não exime a ser um «tipo de comunicação», participante desse mundo, sem evasões. Exige-se, portanto, uma poesia que, como mundo, tenha nela humanidade dentro, sendo que essa humanidade só plenamente se realiza, por sua vez, enquanto textualidade. Para usarmos de uma imagem representativa, não é por mera coincidência que um título como Visão Perpétua nos reenvia para a expressão da clausura eterna da prisão perpétua em que se transforma a entrega à poesia. Esta poesia que nega radicalmente a poética do fingimento e se apresenta, como se lê no poema «Pré-História», como «alimento imponderável» é, assim, prisão e ao mesmo tempo expressão da liberdade – uma liberdade de tudo perguntar, de nada aceitar como definitivo.
Uma Visão perpétua, confirmada, além do mais, por uma prática de crítica e ensaio que se fazem de uma forte consciência pessoal segundo uma perspectiva «superativa» desse mesmo trabalho crítico, o qual é iluminador do projecto de poesia – como diário, exílio, peregrinação e amor. O que se persegue, no limite, é a «visão profunda» que ultrapasse ou resolva, como se quer em Peregrinatio ad Loca Infecta, a dicotomia entre os planos da acção e do conhecimento.
Mas nada melhor que o próprio Jorge de Sena para assim percebermos a revolução de linguagem e as repercussões de um projecto de poesia que no livro de 1969 atinge um dos seus momentos mais altos. O parágrafo de abertura, no qual se comprova e firma o projecto seniano de vida (de uma vida ofertada à poesia), é a vários níveis revelador:
«Reclusa a vida em poesia, não para tirá-la da Vida, mas para encerrá-la dentro do mundo da transfiguração poética, o único capaz de abarcar inteiramente tudo, compreendendo tudo fitando tudo, aceitando tudo, menos aquilo que diminua a liberdade da criação, que o mesmo é dizer a liberdade do ser humano, recluso em poesia, para não fugir de maneira alguma para os campos da maldade e da infâmia, da mesquinhez e da vileza, aonde tanto tem andado à solta neste mundo que perdeu o sentido do que necessita de ganhar de novo. Deixem-me, para explicar melhor, usar os títulos dos meus livros, qual cronologicamente se sucederam. O homem corre em perseguição de si mesmo e do seu outro até à coroa da terra, aonde humildemente encontrará a pedra filosofal que lhe permite reconhecer as evidências. Ao longo disto e depois disto e sempre, nada é possível sem fidelidade a si mesmo, aos outros e ao que aprendeu / desaprendeu ou fez que assim acontecesse aos mais. Se pausa para coligir estas experiências, haverá algum Post-Scriptum ao que disse. Após o que a existência lhe são metamorfoses cuja estrutura íntima só uma arte de música regula. Mas, tendo atingido aquelas alturas rarefeitas, andou sempre, na verdade, e continuará a andar, os passos sem fim (enquanto a vida é vida) de uma peregrinatio ad loca infecta, já que os «lugares santos» são poucos, raros, e ainda por cima altamente duvidosos quanto à autenticidade. Que fazer? Exorcismos. E depois vagar como Camões numa ilha perdida, meditar, sobre esta praia aonde a humanidade se desnude, e declarar simplesmente que terminamos (e começamos) por ter de declarar: Conheço o sal… sim, o sal do amor que nos salva ou nos perde, o que é o mesmo. O mais que vier não poderá deixar de continuar esta linha de, sobretudo, fidelidade à «honra de estar vivo», por muito que às vezes doa.»
II
Fenomenologicamente compreendida, o posicionamento estético de Sena consistirá na assunção se que toda a linguagem, sendo produção humana não é necessariamente, quando poeticamente formulada ou usada, sinal de subjectividade. Todo o sujeito é produtor de linguagem e, nessa medida, mesmo quando se trate de enunciação literária, há sempre, mesmo que mitigada, a presença de um sujeito, alguém que diz/ escreve. Dizer e escrever, sendo poesia, têm de ser processos transformantes da percepção dos dados do real e transfiguração desses dados por uma intelecção deles, revelando as evidências, desmontando ou destruindo as aparências.
Jorge de Sena, enquanto poeta-autor, assume essa condição naturalmente subjectiva da poesia, mas não pratica, não adere, ao subjectivismo poético, tal qual ele é ainda praticado ou reiterado, seja pelos poetas da presença e seus epígonos, seja por lúcida fidelidade a um destino humano («soube-me sempre a destino a minha vida»).
Digamos que, a traços largos, subjectivismo e subjectividade não são exactamente a mesma coisa quando se fala de literatura. Nem significam o mesmo quando se fala em vida predestinada para a poesia… O subjectivismo de Sena está congraçado numa funda visão trágica do mundo. Não será o seu subjectivismo que, sendo lírica, será, preponderantemente, imediata e pouco meditada. Bem pelo contrário: a sua subjectividade reside naquilo que tem há de capacidade transfiguradora quando a expressão poética vem a concentrar-se na intrínseca matéria verbal e faz o poema ser o humano mundo da linguagem densa e intensa (e não diz Sophia, tão próxima de Sena, que os versos são tensos porque os dias foram intensamente vividos?).
Uma poesia que se afirma, como a do autor de Fidelidade, tão intrisecamente subjectiva, nem por isso deixa de ser meditação estética e, logo, questionamento filosófico e cultural transfigurados. Como lembra o próprio autor, referindo-se às séries Metamorfoses (1963) e Arte de Música (1968), importa que, na dialéctica e na evolução de livro para livro, se aprofunde a capacidade de transformar, metamorfosear poeticamente a vida que nos cabe viver. De acordo com Fazenda Lourenço, Sena «aplica a sua meditação de mundo ao mundo da criação estética – às artes visuais, à música e à linguagem poética – e, do mesmo passo, inaugura uma nova linhagem na poesia portuguesa, divergente do modernismo que entre nós se atarda até aos anos 70.»
No afã de pensar a arte, o poeta de Sobre esta Praia… (1972) concita, muito em particular a partir da década de sessenta, e até ao fim da sua vida, a ideia de poesia como testemunho, mas um testemunho activo e não de mera observação ou contemplação. Tal origina igualmente uma ideia de poesia como itinerância e peregrinação pelos textos-mundo da sua existência de poeta, mas sempre com um radical cepticismo. Não, a poesia não é salvação, mas antes «lugar infecto», isto é, contagiado, contaminado, infectado por diversos registos retóricos, multímodas visões do mundo dos homens e dos deuses (ou desse Deus ausente por detrás deles). O poema é como que o lugar infecto (e infestado) de uma dolorosa doença que, sendo dor, ao mesmo tempo causa prazer em quem escreve: a doença, ou melhor, o pathos, a lúcida inteligência de perceber que, para além da divisão na consciência entre conhecer e agir no Homem, a própria poesia lhe é afirmação absoluta de uma incapacidade para abarcar esse Homem e as suas circunstâncias. Condenação primeira e última: ter de escrever sobre tudo e todas as coisas, humanas e desumanas e não poder deixar, jamais, de o fazer.
Jorge de Sena, falando muito de si e considerando mesmo que a poesia lhe foi sempre como que um diário do seu quotidiano, encaminhará essa a marca da subjectividade – que é a de haver um sujeito que a escreve sem dissimular quem seja, mas sem se entregar a uma emocional e romântica expressão – para aquilo que poderíamos ver como uma estratégia discursiva centrada na narração de factos.
Com efeito, a adopção de uma estratégia de narração corresponde a essa procura de narratividade centrada num anti-esteticismo, conduzindo o dizer poético para uma historicidade e temporalidade humanas, longe da linha creacionista do poema ou da dimensão prometeica que, como foi com o surrealismo, figurava uma ideia de poesia e de poeta. Ao querer revelar o mundo empírico, ao querer pensar testemunhalmente o amor, a morte, o tempo, a poesia, Deus-deuses e o Homem, acaba-se por chegar a um Nada fenomenologicamente exacto, transparente, seguro e misterioso. Mas, entenda-se, esse combate contra o esteticismo não é sinónimo de separação, em Sena, entre palavra como mundo e mundo suprimido. O Nada em que muitas os poemas de Sena mergulham é um Nada grávido de vida, latência de novas visões sobre uma nova realidade que acabará por irromper desse mesmo Nada.
Para se chegar a uma espécie de amoralismo total, Sena, já em Peregrinatio escreve – como em Exorcismos fará de modo completo – disserta sobre um desconcerto muito seu, feito inteligência dolorida por saber que, da humanidade, daquilo que ela própria cria e vive, não restará senão o erro, a interrogação, e a dignidade de se ter falhado bem. A poesia é, então, poetização em si mesma, o único real absoluto, não à maneira de Rimbaud, mas um absoluto de linguagem, de amplos ritmos, de largo fôlego, compensado, por hipótese, o falhar-se ou perder-se na vida:
De amor eu nunca amei senão desejo visto
ou pressentido. Um corpo. Um rosto. Um gesto.
E nunca de paixão sujei o meu prazer
ou o de alguém. Por isso posso
mesmo as audácias recordar sem culpa.
Tudo o que fiz ou quis que me fizessem
o paguei comigo ou com dinheiro.
E só lamento as vezes que perdi
retido por algum respeito. Errei
por certo – mas foi nisso. O que me dói
não é tristeza de quem dissipou
no puro estéril quanto esperma pôde
gastar assim. O que me mata agora
é este frio que não está em mim.
Poesia-diário, a colectânea onde, de modo mais claro nos parece haver a passagem de um lirismo especulativo – passagem essa que se opera dentro do próprio livro e ao longo das secções que o formam – para uma estratégia declaradamente narrativa, é Peregrinatio. Como se o poema fosse construído segundo uma lógica de entrecruzamento discursivo, em que lirismo e narrativa mutuamente se confundem e mutuamente se complementam num sistema de vasos comunicantes entre os textos, esse livro é o que consta de setenta e um poemas, «alguns dos quais amáveis, com um apílogo altamente filosófico, e sem prefácio do autor»; um volume, de resto, onde se depuram muitas das ideias e muitas das opções estilísticas, ideológicas e metaliterárias ou metapoéticas que Sena, desde a sua estreia em 1942 com Perseguição, tinha postulado, ora por meio da poesia, ora através do seu ensaismo. Uma poesia que fosse, tal como o ensaio, um sentimento que pensa e um pensamento que sente, mas, e para além disso, uma poesia que fosse um lirismo que conta e uma narrativa que canta.
Visitam-se, pois, os lugares infectos do Homem. Poderia ser essa «peregrinatio» um libelo contra os Estados Unidos, atolados nas suas contradições históricas, particularmente as que se inserem no contexto histórico-social desses terríveis anos sessenta, da luta dos direitos sociais, da Guerra do Vietname? Não só, mas também. Poderia ser essa peregrinação, a viagem aos infernos da própria condição da poesia, tanto mais poética quanto humana? Eventualmente.
Será essa peregrinação, por outro lado, o roteiro, o diário dos anos que vão de 1959 até a 1969; viagem mais interior que propriamente visitação de locais referencialmente localizáveis? Ou, se não, viagem mais projectada que real?… E, a ser assim, de que modo uma poesia que se quer de circunstância se dá a ver em registos vários – dos poemas em verso branco, de ritmos ora longos (hendecassílabos e dodecassílabos e outros tantos com quinze sílabas métricas), ora breves, em redondilha, sem esquecer o decassílabo de não poucos sonetos… – como se ao mesmo tempo se perseguisse a anulação entre subjectivo e objectivo?
Peregrinatio ad Loca Infecta tem, em pano de fundo, sem dúvida, a experiência americana e aquela temática do exílio que Francisco Cota Fagundes em altura própria explorou e desenvolveu com sagacidade. Mas há nesse volume a repercussão de uma vida e de uma visita, cremos e dessa ambivalência – entre poesia de situação e poesia feita diário íntimo, entre confissão meditativa e aplicação cognoscitiva – vive muita da produção literária seniana. Com efeito, Sena, em 1968, vem à Europa por vários meses. É esse o ano em que a revista O Tempo e o Modo lhe dedica integralmente o nº 59 (Abril) e é nesse ano que também publica Arte de Música. O livro de 1969 revela, de modo oblíquo, mas de modo também explícito, a poesia-diário de Sena e a vida-peregrinação do poeta. A enunciação multifacetada deste volume denota, se quisermos, uma primeira ideia-chave: a poesia, se é testemunho, sê-lo-á nos mais diversos andamentos, numa liberdade absoluta de formas poéticas e de linguagens, pois detém em si o poder de ser todas as linguagens. Num tão vasto mundo, só uma poética de longo alcance retórico pode abarcar o muito que deseja conhecer.
A abrir temos um prefácio que ironicamente se auto-intitula «Isto não é um prefácio», procedimento provocatório, colocando sob um anátema não tanto este prefácio – que o não é, diz-nos o seu prefaciador – mas todos os anteriormente escritos e que, prazeirosamente, Sena escrevia para chocar, esclarecer e fazer o que, segundo ele, a crítica especializada não sabia nem podia fazer: estudá-lo.
Pelo designativo «Isto não é um prefácio», como que temos uma desautorização do próprio gesto do ensaio enquanto exercício de uma inteligência. Em Peregrinatio encena-se, antes de mais, por ironia, a improcedência ou o desinvestimento do lugar, forma e função do prefácio tal qual o mesmo Jorge de Sena o idealiza: «ensaio-emoção-da-inteligência», até porque se retira a autoridade da categoria ou género «ensaio» a um texto que acaba por ter de ser lido, então, como mais um comentário aos poemas-comentários que configuram essa Peregrinatio ad Loca Infecta. Deixando de o fazer, o prefácio, já o livro se insinua como «apenas» poesia-diário, com datação dos escritos e representação / encenação da viagem ou viagens feitas ao longo de determinado tempo, colocando sob o signo da circunstância a escrita referencial que se apresenta. Não é, logo, preciso um prefácio.
Nada mais certo: a uma poesia que tudo quer perscrutar cabe bem a representação de um autor-poeta que, conhecendo como mais ninguém as motivações da sua escrita, chega a um ponto em que declara não ser o seu prefácio mais um dos tantos até essa data escritos, mas antes um «não-prefácio», dado que a sua poesia se coloca num plano já autónomo e absolutamente «fora» de quem sobre ela detém autoridade. Os poemas, assim vistos, são dos outros, daqueles que, ao lê-lo, dispensam o prefácio, por faceto, e querem agora ler não o poeta-prefaciador que não pode já escrever sobre eles, mas apenas ler o poeta-diarista que irá inquirir do sentido pessoal e colectivo de uma «peregrinatio». Vê-los ao longe, como se de outros fossem, eis uma segunda impressão que os poemas, por um efeito de distanciamento, datados no tempo, acabam por provocar.
Deste modo, os poemas de Peregrinatio começam antes de começar. Ou seja: sob a égide do equívoco ou de uma ficção irónica em que poemas são «como que uma selecção de comentários do próprio poeta à sua situação no mundo», escreve Sena no seu «não-prefácio». Obedecendo à ordenação da sua poesia segundo «tempos», estamos, em 1969, no período medial da sua obra. Pertence esta colectânea de setenta poemas ao mesmo «tempo», à mesma «época» – os anos sessenta – em que se tinham já publicado, em 1963, Metamorfoses. E é este o período riquíssimo em que escreve e publica «O Poeta é um Fingidor» (ensaios), O Reino da Estupidez (polémica, ensaios culturais, história e crítica); ainda Os Sonetos de Camões e o soneto quinhentista peninsular (que virá a ser publicado emm 1969, apesar de redigido antes); em 1964 defende a sua tese de doutoramento, aos 45 anos, o magistral Uma Canção de Camões e é ainda nessa década que adquire nacionalidade brasileira (1964) e transita para a Universidade de Wiscosin (1965), como professor de Literatura Portuguesa e Brasileira. Em 1966 publica a sua tese sobre Camões e Novas Andanças do Demónio (em 1960 tinham sido editados os contos de Andanças do Demónio), onde se inclui a novela O Físico Prodigioso e, em 1968, para além do reconhecimento geral da intelectualidade portuguesa, encimado, esse reconhecimento, pelo número de O Tempo e o Modo, não se esqueça que é logo em 1970 – findando um ciclo importantíssimo de experiência humana – que Sena passará para a Universidade da Califórnia para dirigir os Departamento de Espanhol e Português daquela Universidade. Pelo caminho, ao fechar os anos sessenta: Peregrinatio.
Sob o signo do equívoco, dissémos. Sete poemas, escreve, referem-se à sua viagem à Europa ocorrida entre fins de 1968 e princípios de 1969 e neles se patenteia e aí se afirma também que, para além de ser um livro organizado com poemas avulsos, pese embora a coerência de temas e motivos, é concomitantemente um livro com poemas de circunstância.
Para Sena, de acordo com a sua concepção fenomenológica da linguagem poética: «toda a poesia é circunstancial; e a específica circunstancialidade dela será precisamente o que contribui para a particular unidade desta peregrinatio: de certo modo um diário poético dos anos de 1959-69, paralelamente à composição das duas séries sobre obras de arte (plásticas ou musicais).» e será em Peregrinatio ad Loca Infecta que Jorge de Sena, a partir da alusão ao guia espiritual, de peregrinação à Terra Santa, da autoria provável de Egéria (ou Etéria), «freira talvez de Braga», que terá escrito esse documento em 395 d. C, levará também até ao limite essa associação entre testemunho-peregrinação e metamorfose e aquilo que é perseguição, independência e descrição. A consumar a unidade deste livro está, cremos, uma coesão estilística, de teor narrativo por meio de cuja estratégia discursiva o poeta responsavelmente põe a nu as evidências que a hipocrisia humana oculta. Justifica-se plenamente o juízo segundo o qual, diz o autor, «[estes] poemas representam momentâneas descidas críticas do poeta ao seio da sua visão do mundo.» e, apesar de pedir para que não se associe esta «peregrinação» a uma qualquer «expressão das amarguras de ser-se peregrino na América», por ingratidão que seria quanto ao muito que Brasil e Estados Unidos lhe ofereceram, não deixa de admitir que «[viveu], fosse onde fosse, no lugar infecto que é o nosso mundo de hoje, em que brutalmente, insidiosamente, e teimosamente persiste, seja em que hemisfério ou regime, uma concepção do mundo e da vida como tirânico vale de lágrimas.»
Após apresentar um livro que acaba por constituir um momento de transição entre a sua poesia da década de sessenta e a que fará depois (em 1972 publicará Exorcismos, livro de poemas em que ainda se percebe a contaminação dos lugares infectos visitados em 1969, mas onde igualmente se percebe a fidelidade a uma expressão de circunstância na poesia. Ou melhor: a fidelidade de dizer claramente do mundo circundante, procurando no poema a função exorcizadora que ele, «desde os tempos mais vetustos» tem), o poeta lança-se numa estrutural ou arquitectural «viagem» a realizar-se num plano mental: projectando em livro o que exteriormente é da ordem biográfica ou da ordem existencial e se torna matamorfoseado, subjectivado pela rememoração. Exigindo uma mitação (ao cabo de mais de dez anos, curiosamente…):
As flores, solícitas, desfolham-se.
Há mais de uma década, ao fim de um longo poema,
Verifiquei que assim era.
Que as flores se desfolhem não é novidade alguma.
Que o façam solícitas, tão prontas como tudo
a despetalar-se de si mesmas, assumindo
o destino implícito na frágil inserção
das próprias pétalas, eis o que constitui
peculiar observação. Mas
será que importa muito registar
analogicamente este saber de nada,
tão antigo e vulgar, que não se vê,
não se ouve, não se considera
senão como imagem de como perdemos
de boa mente, de boa vontade, ou
gostosamente, numa resignação que é alegria,
numa jovial complacência, aquilo mesmo
por que sendo, nos somos e vivemos? […]»
Se, na verdade, a poesia se afirma como perseguição intelectiva do ser e estar no munmdo, se é poesia tudo quanto, na ordem do discurso, é procura de sentido para um universo tantas vezes misterioso e de quem nem os deuses serão senão imperfeitas e cruéis emanações; poesia vem a ser, ainda e sempre, e por meio de outras formas de mundo – as artes visuais, a música, a literatura, e restantes produções culturais humanas (comportamentos, pessoas, gestos…) que responde a uma das mais inquietantes perguntas de Sena na sua «peregrinatio»: a que diz respeito, no fundo, à «miséria das palavras», segundo o tópico modernista (e da modernidade) das «palavras gastas» à força de um excesso de linguagem:
«E a miséria é isso: não imaginar
o nome que transforma a ideia em coisa,
a coisa que transforma o ser em vida,
a vida que transforma a língua em algo mais
que o falar por falar.»
A voz que fala em Peregrinatio vai recriar uma realidade por meio das palavras, a vida verdadeira e única, ainda que sabendo da miséria de não poder haver linguagem poética suficiente para que o acto de nomear se faça, concretamente coisa dita. Desocultar, em peregrinação dialéctica pela vida, a realidade; desvendá-la ou tirar-lhe o manto, o véu de Maya, que são as convenções e a segurança das leis quotidianas, primeiro fito de uma viagem ao labirinto da própria criação de literatura como criação de vida.
No central «Em Creta com o Minotauro» – um ser metade homem e metade touro, associado à luta entre bestialidade e humanidade, símbolo da própria condição humana, que está sempre entre animalidade e instinto e inteligência e razão – a voz da enunciação que autobiograficamente se apresenta, como num palco, vai-se revelando e revelando ao mundo vivido. Se bem que seja o problema do exílio aquele tópico que mais patente se pensa nesse poema, essa sensação de exílio – de Portugal e que o faz coleccionar «nacionalidades como camisas se despem» – acaba por levar Sena a uma das raras afirmações verdades que foi capaz de afirmar: «Eu sou eu mesmo a minha pátria», que não por acaso é a língua portuguesa em que por acaso escreve. Esse poema, precedido do poema «Amor» (verdadeira hermenêutica do sentir amoroso como «Amor de amor de amar»), e seguido dos «Sete poemas da Visão Perpétua», é também, sendo de exílio, uma alegoria da vida como labirinto, da vida «pelo mundo em pedaços repartida» e que, revelando a condição de peregrino de Sena, é revelação da vida humana, da humanidade que desde de a Grécia, esqueceu o próprio Minotauro, surgido antes da pátria de Péricles, anterior a «esta merda toda que nos cobre há séculos, / cegada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos / os escravos dos outros».
A familiaridade com o Minotauro – que vai tomando café com o sujeito do poema – é a única pátria possível. O Minotauro do poema: não apenas a figura mitológica, transfigura-se em «alter ego» do poeta («Nem eu nem o Minotauro / teremos nenhuma pátria. Apenas o café, / aromático e bem forte […]») e vem a ser, se quisermos, representação da sua própria obra; obra de «monstro rangendo os dentes na treva», como escreve numa «Carta a um Jovem poeta», parodiando Rilke. É que a poesia seniana é isso mesmo: a «minotáurica» expressão de vários exílios: o da pátria, o da literatura (longe de escolas e grupos), o de si mesmo, corpo, razão e sentidos, sondados nesta «peregrinação» a um mundo exterior e interior, de grave balanço existencial. E talvez que a própria numeração dos fragmentos em que se organiza o poema nos remeta, afinal (e tão ao gosto do seu autor) para o significado esotérico do número cinco, o do Homem…
III
Já no fundador poema «La Cathédral engloutie» se preconizava, tendo em conta os versos nos quais, devido à audição de uma obra musical de Debussy, a irrupção da poesia vem desvelar a primeira das realidades feitas só de aparência – o «eu», o sujeito:
«Submersa catedral inacessível! Como perdoarei
aquele momento em que do rádio vieste,
solene e vaga e grave, de sob as águas que
marinhas me seriam mer destino perdido?
É desta imprecisão que tenho ódio:
nunca mais pude ser eu mesmo – esse homem parvo
que, nascido do jovem tiranizado e triste,
viveria tranquilamente arreliado até à morte. […]»
A revelação poética é uma revelação do si a si próprio: o jovem, tiranizado e triste, torna-se «soma teimosa do que não existe / exigência, anseio, dúvida e gosto / de impor aos outros a visão profunda, / não a visão que eles fingem, / mas a visão que recusam […]». Repete-se, de certo modo, em Peregrinatio ad Loca Infecta a mesma sensação de excepcionalidade do poeta, quando comparado com «os outros». O poeta é, em Sena, não o inspirado ou o tomado por um qualquer daimon, mas não desconhece que esse sentido do demoníaco ou do dionisíaco existiu um dia e está presente, ou latente, quando o poema surge. O eu / os outros torna-se, assim, uma das linhas-de-força do conjunto, transversal, essa oposição, nas quatro secções. Mas um eu dubitativo e mesmo receoso ou desconfiado de quanto o exercício do poema-visão-diário lhe faculta.
Dir-se-ia que o gesto encenado no poema «Os Trabalhos e os Dias» é retomado de forma subtil em Peregrinatio, na medida em que se pretende aprrender o que se escreve e, com isso, solicitar a vinda do mundo inteiro para o poema, matter of fact. A poesia constante, por exemplo, nos sonetos de «Heptarquia do Mundo Ocidental» é ainda a invocação do poema como mesa do mundo, e é o chamamento do texto que se traduz na inescapável interpretação do mundo, que faz com que o texto seja texto ou literatura significativa, por tudo transmudar em linguagem. Embora haja sempre a sensação de que «no limiar do tempo», «limbo perdido» só se possa ser feliz «à estupidez das coisas», pois que aos olhos do «eu» tudo se dissolve entre esperança e desesperança de o entender, toldando de uma dúvida essencial a própria «visão profunda» que se julgaria possuir pela poesia:
«Como quando era ténue a minha esperança,
a desperança é ténue, retraída.
Mas ténue apenas que uma e outra sejam,
tão diminutas que se não diferem,
à transparência vejo que não tenho
nada. Que em nada creio, nada espero,
nem desespero de não ter que creia.
À luz do mundo, que atravessa tudo,
sequer importa ver esta miséria
imensa. Imensa? Não. Porquê – imensa?
Porquê – miséria até? Se só resquício
de vida humana que nem chega a ser,
se apenas é visão de quanto vale
a própria luz com que não vejo nada?
A poesia como exercício vital, a integração do mundo na poesia e da poesia no mundo, como indicia o gesto afirmativo daquele primordial verso «Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro» pode reiterar-se enquanto crença na escrita como respiração inescapável («e principio a escrever como se escrever fosse respirar»).
Esse poema, inserto em Coroa da Terra, constitui-se como «ars poetica» que, na primeira secção de Peregrinatio ad Loca Infecta, com o poema de abertura – num tom anafórico que repercute o tipo de poesia elevada, apropriada a um elogio – dedicado a Sophia de Mello Breyner, constitui, também, uma meditação sobre a condição do escritor, pois se associa o dar filhos ao mundo com o dar versos a esse mesmo mundo. Quer dizer: o poeta é um fecundador, alguém que na relação intersubjectiva com a realidade se abre a essa mesma realidade, por mais cruel e insidiosa seja a vida real. Portanto, é Sophia de Mello Breyner, e não outro destinatário, quem é convocada também como nome e emblema, quem acaba por funcionar como «alter ego» da senianan voz que a configura. O poema de circunstância torna-se, assim, palco enunciativo, espaço onde a voz da escrita se vai representando como uma voz vidente, que se vai multiplicando ao ver a diversidade dos lugares, espaços, tempos, disciplinas… A Poesia de Peregrinatio: «uma evidência da realidade concreta, um mundo onde os passos do poeta marcam o ritmo da aparição e da revelação do sentido das coisas.».
No limite, a atenção à realidade concreta deriva e ao mesmo tempo origina (d)esse mesmo testemunho, facto que, no caso do volume de 1969, é transposto «para o campo da estrutura da linguagem poética», porquanto a circunstancialidade «já não consiste em algo de interior e imanente: uma marca ou propriedade da linguagem que estrutura o poema.», como considera Luís Adriano Carlos. Assim é que, dialecticamente, Jorge de Sena acabará por fazer a sua peregrinação aos lugares infectos na companhia de outros, que são como seus companheiros de viagem e que, como ele, Dante a passar o cabo dos cinquenta anos, terão de ver o que ele vê, segunda uma «visão profunda» que lucidamente é cepticismo e realismo absoluto ou integral.
A seguir ao poema «A Sophia de Mello Breyner Andresen Enviando-lhe um Exemplar de «Pedra Filosofal»», comparece um poema, «Vampiro», em que o sujeito do enunciado e da enunciação se misturam e narram, elipticamente, os factos exteriores (gatos que brincam, um automóvel cortando o ar da noite, risos na distância e, mais longe, «o rodar de um eléctrico»). A evocação, tão similar à que ocorre no romance Sinais de Fogo, quando o protagonista descobre a poesia e tem de escrever com as mãos tremendo os versos «sinais de fogo os homens se despedem…» e igualmente um eléctrico vem a ser motivo ou pretexto da escrita; a evocação, diziamos, logo se faz especulação, meditação (no acto de lembrar, as mãos do «eu» tremem-lhe, pois que se inicia a escritura do poema?) e se chega à clarividente certeza de que, recordando, «as coisas [lhe] são estranhas» e, questionando tudo, o sujeito como que se divide, e cindido sabe que uma voz, de fora, pergunta: «Os gatos brincam? Outro carro passa? / Outros regressam? Viram-te? Tiveram-te? / Sou eu quem está dentro de ti com eles? […]».
Justamente, dir-se-ia, o modus faciendi deste livro oscila entre testemunho e circunstância («[a sua poesia é] o diário poético de uma testemunha», sentencia no prefácio à segunda edição de Poesia-III), mas tem em linha de conta que a peregrinação encetada, enquanto itinerário, compreende essa necessidade última de testemunhar de si e dos outros, universalizando a poesia, não a circunscrevendo a uma projecção emotiva ou sentimental de um indivíduo que assim peregrina num diário que passa, na datação e na arquitectura e edição, por sobre outros tantos livros dados à estampa entre o ano do poema mais antigo constante em Peregrinatio (de 1950) e o que encerra o volume, «Relatório», com data de 7/5/1969.
Em última análise, Peregrinatio ad Loca Infecta, sendo testemunho daquele «não esperar» nada do Nada que é o mundo, conclui, ao findar os anos sessenta, um ciclo poético marcado por aquela necessidade de construir lapidarmente, classicamente, uma personalidade independente, uma poética da perseguição incessante do que possa definir a humanidade como mais que a «carne seca» que a condiciona, tudo segundo uma revolução estética que participa de uma propensão descritiva. Descrever testemunhando, descrever abrindo a expressão lírica ao poema longo, forma que abarca uma prosódia variável, e exige uma profunda meditação feita de diálogos, citações, narrações, tal como Peregrinatio, apesar das suas quatro secções, se organiza. Modo outro de dizer exílio, «de amor, de poesia e de ter pátria» – os quatro tempos, os quatro blocos que de Portugal (1950-1959), Brasil (1959-1965), Estados Unidos da América (1965-1969) a Notas de um Regresso à Europa (1968-1969) – numa circularidade perfeita que confirma esta poesia como projecto pensado até ao fim. Projecto que termina, camonianamente, onde começou – na fidelidade ao seu destino, podendo declarar, com conhecimento de mundo e de humanidade:
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.
Obras de Jorge de Sena
(consultadas para realização deste ensaio)
«Conceito de Poesia», Conferência. Ateneu Comercial do Porto, 7 de Jul.1951
Correspondência 1959-1978, com Sophia de Mello Breyner. 2006. 3ª ed. Aumentada, Lisboa: Guerra e Paz, 2010.
Correspondência com Eduardo Lourenço, Ed. Mécia de Sena, Lisboa: Imprensa Nacional, 1991
«Da compreensão em Poesia», Diário Popular [Lisboa], 15 de Jun.1955, [Poesia e Cultura, 2005]
Dialécticas Aplicadas da Literatura. Lisboa, Edições 70, 1978.
Dialécticas Teóricas da Literatura. Lisboa, Edições 70, 1977.
O Dogma da Trindade Poética (Rimbaud) e Outros Ensaios, ed. Mécia de Sena, Porto, ASA, 1994.
Fernando Pessoa e C.ª Heterónima (Estudos Coligidos 1940-1978), ed. Mécia de Sena., 3ª ed., aum., Lisboa: Edições 70, 2000.
Sobre Teoria e Crítica Literária, Porto, Edições Caixotim, 2008.
«Pátria ingrata o meu país». A Capital [Lisboa] 5 de Maio 1977. Discurso do XV Prémio Internacional de Poesia Etna-Taormina, Taormina, Sicília, 25 de Abril, 1977. [Poesia e Cultura, 2005]
Poesia – I, 3ª ed., rev., por Mécia de Sena. Lisboa: Edições 70, 1988.
Poesia – II, 2ª ed., rev. Por Mécia de Sena. Lisboa: Edições 70, 1988.
Poesia – III, 2ª ed., rev., por Mécia de Sena. Lisboa: Edições 70, 1989.
Poesia e Cultura. Ed., Mécia de Sena. Porto: Caixotim, 2005.
«A Poesia e a vida», [Poesia e Cultura, 2005]
«A poesia é só uma 1940-1951», com José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, José-Augusto França e Tomaz Kim, Cadernos de Poesia [Lisboa] 6 (2ª Série), 1951, pp.5-8. [Poesia e Cultura, 2005]
«O Poeta é um fingidor», Lisboa, Ática, 1961.
40 Anos de Servidão, ed. Mécia de Sena, 1979, 3ª ed. Lisboa: Edições 70, 1989.
O Reino da Estupidez – I, 1961, 3ª ed., rev., por Mécia de Sena, Lisboa: Edições 70, 1984.
«Sobre a objectividade da poesia». Diário Popular [Lisboa] 15 Jul. 1943, p. 5 +. [Poesia e Cultura, 2005]
«Sobre o discursivismo em poesia». [Poesia e Cultura, 2005]
Sobre Teoria e Crítica Literária. Ed. Mécia de Sena. Porto: Caixotim, 2008.
Visão Perpétua, ed. Mécia de Sena, 1982, 2ª. ed., Lisboa: Edições 70, 1989.
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CRUZ, Gastão e Paulo TEIXEIRA. ORG. Jorge de Sena, N. esp. de Relâmpago [Lisboa], nº 21, 2007.
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___________. O Brilho dos Sinais. Estudos sobre Jorge de Sena. Porto: Caixotim, 2001.
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